Contributo para a História da Lusofonia
Guerrilheiros africanos no Centro de Preparação na Crimeia
A
União Soviética preparou milhares de guerrilheiros para “combater
o imperialismo” nas mais diferentes regiões do globo. Deixo aqui a
tradução de um texto publicado no jornal ucraniano Vzgliad a 14 de
Novembro de 2013.
N.B.
Publico isto no meu blogue para que todos possam ler e utilizar estas
informações. Porém, gostaria de pedir aos que irão utilizar isto
em futuros livros ou artigos que citem de onde retiraram as
informações. Faço este apelo porque andam aí uns Joaquins a
aproveitarem-se do trabalho dos outros.
“Durante
a época da URSS, o Centro de Treinos na Crimeia, na vila de
Perevalnii, fornecia quadros de comando aos exércitos e
destacamentos de guerrilha nos países da Ásia e da África. Muitos
dos que passaram por ali e tiveram a sorte de sobreviver na luta
contra os imperialistas e colonizadores, chegaram a generais,
comandantes de exércitos e ministros da Defesa em Moçambique,
Guiné-Bissau, Iémene, Tanzânia, Angola, Namíbia, Laos, Etiópia,
Afeganistão e noutros países em desenvolvimento. Durante 25 anos de
funcionamento do centro (mais tarde, transformado na Escola Militar
de Simferopol) foram preparados mais de 10 mil oficiais para os
exércitos de libertação nacionais.
No
período soviético, o Utz-165 (assim era de forma conspirativa
conhecido o Centro de preparação de militares estrangeiros junto do
Ministério da Defesa da URSS) era considerado um local secreto e
estava sob o comando direto da Direção do Estado-Maior General. Mas
não foi possível manter tudo em segredo, porque o funcionamento da
escola de Perevalnii exigia a participação de quase 500 civis,
fundamentalmente habitantes das aldeias vizinhas e de Simferopol.
Porém, eles não sabiam toda a verdade, nem podiam saber, por isso
inventavam coisas e contavam lendas e mitos sobre os “soldados
negros”, “franco-atiradores amarelos” e “escorpiões
vermelhos”. Então, era impossível aproximar-se da escola sem
autorização e a simples curiosidade podia acabar numa detenção e
algumas horas na “prisa” para identificação. Hoje, nesse lugar,
encontra-se uma cidade militar e o polígono da divisão da 36ª
brigada especial da guarda-costeira da Armada da Ucrânia.
“Centúria
Negra”
Os
primeiros alunos foram trazidos na Primavera de 1965. Tratava-se de
guerrilheiros da Guiné-Bissau que, nessa altura, combatiam pela
independência contra os colonizadores portugueses. Os recrutas foram
recebidos por Vladilen Kintchevskii, primeiro comandante do centro de
treino . O avião, que vinha da Bulgária mas não estava no horário
dos voos, aterrou já a noite ia avançada.
Segundo
recorda Vladilen Kintchevskii, o secretismo era tão grande que os
que os recebiam não sabiam de que país vinham os pupilos.
“Na
rua estava escuro, não se via as caras, mas apenas silhuetas, diz
Kintchevskii. - Só quando nos aproximámos é que vimos que eram
africanos negros. Os nossos tradutores tiveram de suar antes de
compreenderem que a única língua que os guerrilheiros entendiam um
pouco era o português. E nem todos, muitos falavam nos seus dialectos locais, era preciso recorrer à linguagem dos gestos para nos
compreendermos uns aos outros”.
Dormir
debaixo da cama, não comer arenque
O
número de enviados por Amílcar Cabral, secretário-geral do Partido
Africano da Independência da Guiné e Cabo-Verde, foi de 75 pessoas
com idades compreendidas entre 16 e 35 anos.
Os
“estudantes” guineenses foram transportados para a URSS com
transferências, por vias indiretas para não provocar o interesse da
espionagem inimiga. Logo após a aterragem, foram enviados para a
base para um período de quarentena. Ainda bem que, embora a base
ficasse a pouco mais de um quilómetro da estrada de Ialta, ela
estava completamente cercada por colinas e montanhas. Por isso, os
banhistas que corriam para o mar, de nada suspeitavam.
Desde
a primeira “fornada” que o comandante passou a ter muitas dores
de cabeça. Como se veio a saber, muitos dos guerrilheiros nunca
antes tinham dormido em camas e, depois do recolhimento, deitavam-se
a dormir por debaixo delas, como se fosse um teto. Além disso,
praticamente nenhum guineense sabia o que eram botas e tivemos de
lhes dar sapatos a todos, mas, nos tempos livres, eles voltavam a
andar descalços.
Segundo
Kintchevskii, os “estudantes” interessavam-se principalmente pelo
mundo que os rodeava. Diz que os guineenses insistiam constantemente
em ver o que havia para além dos muros da base.
“Tínhamos
de os puxar à força pelas calças, como alunos mal comportados,
recorda o tenente-coronel na reserva. - Isto porque os habitantes
locais apanhavam valentes sustos quando viam cabecinhas pretas por
cima do muro. As coisas também não corriam bem com a alimentação.
Não, havia comer com fartura, mas os cozinheiros militares não
conheciam as particularidades da cozinha guineense e ficaram durante
muito tempo surpreendidos pelo facto de a comida ficar intacta.
Afinal os africanos não comiam porque pensavam tratar-se de arroz
estragado. Por exemplo, servíamos ao jantar ovos cozidos e eles,
esquisitos, rolavam-nos pela mesa e riam-se, porque não sabiam o que
fazer com eles. Ou arenque ao almoço: arrastavam-no pelo rabo no
prato, mas não comiam”.
De
guerrilheiros a ministros
Visita de hóspedes estrangeiros
Um
ano depois de os primeiros pupilos terem começado os treinos na
Crimeia, foram visitados por líderes africanos da revolução. Na
base estiveram Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC e
Agostinho Neto, dirigente do Movimento Popular pela Libertação de
Angola. Mostrámos às visitas as casernas, o refeitório, os
polígonos e até os deixaram dar tiros com armas de guerra.
“Inicialmente,
propusemos pistolas, recorda Vladilen Kintchevskii. - Cabral não
disparava nada mal, mas Neto ficou nervoso por alguma razão, as mãos
tremiam fortemente. Ele nem sequer acertou no alvo. Mas, depois,
deixámos-lhes disparar de canhões sem recuo, que tinham sido
antecipadamente preparados pelos nossos artilheiros: apontaram,
fixaram o alvo e restava apenas disparar. Mas mesmo assim não
acertaram e os pupilos viram a pontaria dos dirigentes da revolução”.
É
triste, mas foi precisamente um aluno do Centro da Crimeia que matou
a tiro o líder do movimento de libertação nacional. O jovem foi
durante vários anos guarda pessoal de Amílcar Cabral, mas, no fim
de contas, foi subornado e matou o seu chefe. Por outro lado, um tal
José Marques chegou até ao cargo de comandante da secção operativa
do Estado Maior.
Depois
do primeiro curso, o centro recebeu combatentes de Angola e de
Moçambique, do Laos e do Vietname, de Cuba e do Afeganistão. E deve
reconhecer-se que os ensinamentos aprendidos pelos guerrilheiros na
Crimeia deram resultados. Por exemplo, em Abril de 1974, Portugal
reconheceu a República da Guiné-Bissau como Estado soberano e
começou a retirada de tropas do seu território.
Sabotadores
do imperialismo
O
coronel Mikhail Strekozov foi o autor dos primeiros programas da
“escola de guerrilheiros”. Em 1965, regressou da Síria, onde
foi, durante quatro anos, conselheiro militar de comandante de frente
e dirigiu a secção de ensino do centro em Perevalnii. O programa de
treinos, além das disciplinas práticas de combate, havia tempo para
a preparação política. Como era devido, os africanos, que mal
sabiam ler, eram obrigatoriamente sobrecarregados com a teoria do
marxismo-leninismo, tinham curso de história dos movimentos
revolucionários internacionais. Continua a ser um mistério se eles
conseguiam assimilar alguma coisa ou não, pois os professores de
ciências sociais não testavam os conhecimentos dos alunos e os
guerrilheiros não tomavam notas. Mais,
até as mais simples operações aritméticas eram ensinadas segundo
um método especial para os analfabetos.
“No
campo militar, eles estavam à altura, recorda Mikhail Vassilievitch.
- Não sabiam o que era cansaço no polígono. Eles eram treinados,
no fundamental, com armas da época da Grande Guerra Pátria (2ª
Guerra Mundial) em todas as especialidades do exército. Era o ideal
para a luta de guerrilha. Insistia-se particularmente na preparação
de sapadores de minas. Ensinávamos-lhes a fazer explodir vias
férreas, pontes, edifícios. No fim do curso, sabiam trabalhar com
explosivos, sabiam montar e desmontar minas. Mas mais nada, não
conseguiam fazer um detonador. Nós não precisávamos de
extremistas.
Recrutas
árabes
Até
ao início dos anos 70, o Centro preparava fundamentalmente
combatentes e comandantes para os países africanos permanentemente
em guerra. A URSS apoiava a luta armada das “forças progressistas”
pela independência em Angola, Moçambique, Congo, Zimbábue, Guiné.
E só em 1975 na Península da Crimeia apareceram os primeiros
recrutas dos países árabes. Inicialmente, eram pequenos grupos de
guerrilheiros de Omã: soldados da Frente Popular de Libertação de
Dofar. Depois começaram a chegar os rapazes de Yasser Arafat, que,
nessa altura, era muito amigo de Brejnev.
No
Outono de 1975, a Simferopol chegaram 90 palestinianos. O primeiro
escândalo com eles ocorreu no aeroporto. Os nossos
guardas-fronteiriços detetaram que um dos combatentes do “Movimento
de Libertação da Palestina” (FATH) não tinha declarado que
trazia consigo 10 mil dólares! O chefe do grupo, para salvar os
dólares do subordinado, tentou explicar que esse era dinheiro comum
que lhes foi dado para gastos pela direção da FATH.
Porém,
posteriormente, viu-se que os palestinianos estavam longe de ser uma
prenda. Depois de chegarem à base, eles recusaram-se a cumprir
horários e exigiam para si horário mais brando com o direito de
sair do quartel. Então, a fim de evitar um escândalo, depois de
consultas intensas com Moscovo, os nosso oficiais fizeram cedências.
Porém, as consequências não se fizeram esperar: os combatentes de
Arafat começaram a ser apanhados nos braços de prostitutas mesmo em
Sevastopol, cidade fechada aos estrangeiros. Ocorriam sérios
problemas dentro do Centro: quando chegaram rapazes da Síria para
treino, representantes do Partido BAAS. Os seus conflitos com os da
FATH acabavam frequentementeà facada.
Quadros
para todo o mundo
Depois
da base, em 1980, se ter transformado no Instituto Militar de
Simferopol (IMS-80), do programa desapareceram “disciplinas
guerrilheiras” específicas e o curso de preparação passou para 2
anos. A geografia dos recrutas alargou-se: chegaram grupos do
Vietname, Laos, Cambodja,
Mongólia, Cuba, Afeganistão, Líbano, Índia, Nicarágua e até de
Granada. Além disso, o ensino era lecionado só em russo. No centro
já não se preparava guerrilheiros, mas oficiais de carreira para os
exércitos dos amigos da URSS: tanquistas, artilheiros, operadores de
armas anti-aéreas, ligações e condutores. Paralelamente, no
IMS-80, funcionavam breves “cursos de melhoramento da
qualificação”. Por exemplo, em 1983, oficiais de Muamar Kaddafi:
um coronel e três majores, foram à Crimeia receber treino especial
de sapadores.
Com
a autorização do CC [do PCUS], os pupilos passaram a fazer
excursões a Ialta e Aluchta. . Um lugar especial era o kolkhoz de
vanguarda “Amizade dos Povos”. Mostravam-lhes as casas dos
kolkhozianos para mostrar como as pessoas simples viviam bem. Quatro
pupilos cubanos casaram-se com jovens locais. Outros tentavam levar
para a pátria pesados instrumentos musicais.
“Um
jovem de Madagáscar martirizava toda a gente com a perguntas sobre
onde comprar um piano, recorda Vldilen Stepanovitch. - Eu fiquei
surpreendido: para que quer um piano em África? E ele responde-me:
“Não compreendes, chefe, que um piano, no nosso país, são dois
“mercedes”? Leve para casa, vendo e compro dois carros: um para
mim e outro para o meu pai”. “E assim fez, quando partiu,
fizeram-lhe um contentor de madeira e ele levou um piano no navio.
Era assim que os africanos me davam lições de economia de
mercado”...
Bem
vestidos e alimentados como pilotos
...A
propósito, todos os pupilos durante a sua permanência na URSS
tinham garantida roupa civil: um fato, duas camisas, sapatos, meias,
no valor total de 250 rublos. Para despesas recebiam 20 rublos
mensalmente. Por isso não era surpreendente quando os pupilos mais
despachados conseguiam juntar quantias bem boas. Eles eram melhor
alimentados do que os soldados do Exército Vermelho. Os pupilos
ultramarinos tinham direito a uma ração segundo a “norma de
verão”: 3 rublos e 50 kopeques, quase como numa casa de repouso
dos sindicatos. Além disso, recebiam cada um uma farda militar:
gabardina, fato, duas camisas, gravata, chapéu, meias e sapatos. Em
média, a URSS gastava e cada um de 6,5 a 8 mil rublos. Por isso, a
manutenção do centro de ensino não ficava barata à direção
soviética, porque só a Líbia, Laos e Etiópia pagavam os cursos
dos seus alunos com dinheiro vivo. Todos os restantes preferiam
estudar a crédito.
Para termo de comparação, o salário mínimo na URSS rondava os 80 rublos
Texto publicado em:
http://vz.ua/novosti/obshchestvo/vuz_dlya_diversantov_kak_v_krymu_gotovili_povstantsev_dlya_azii_i_afriki
Texto publicado em:
http://vz.ua/novosti/obshchestvo/vuz_dlya_diversantov_kak_v_krymu_gotovili_povstantsev_dlya_azii_i_afriki
7 comentários:
Artigo é muito antigo, foi publicado pela primeira vez ainda no final dos anos 1990, em 1997, salvo erro...
Os autores não poderiam saber, que neste centro estudou um dos atuais presidentes de um dos países do PALOP (eleito em 2008)...
Este artigo não é antigo. Você deve estar a pensar noutro sobre esta escola que eu citei num dos meus livros sobre Angola. Este artigo tem dados novos. Por exemplo, sobre a pontaria de AC e AN.
Que coincidência!
Hoje mesmo falei com um Capitão de Mar-e-Guerra angolano que esteve numa Academia Naval (imeni Kirov, ou Zhukov?) em Baku, e ele falou também desta escola na Criméia.
Agora está em formação nos Altos Estudos Militares (Pedrouços) com vista a tornar-se Brigadeiro.
Aqui está a elite africana que coloca o governo português de cócoras...
Pobre Portugal que um dia teve o mundo inteiro a seus pés e agora não passa de uma mosca que vive à conta da m***a que os porcos cagam.
(Excepção para o Joaquim, porque esse é uma melga - suga o sangue alheio)
Abraço amigo, Zé milho!
Repugna chafurdar neste imundicie.
Será que já não resta nada de decente ao José Milhazes para oferecer a quem o lê?
Por favor contenha-se, tenha um minimo de respeito por as pessoas.
Com que então os Guineenses matarruanos incultos e selvagens não sabiam o que eram ovos?
Agostinho Neto não sabia disparar uma arma ligeira na segunda metade da década de 60?
Quem diz isto ignora que Neto viveu e acompanhou muitas operações de guerra no interior de Angola.
Com que então os Guineenses eram treinados a sabotar caminhos de ferro?
Só para colocar fora dos carris os guindastes do porto de Pindjiguite.
Por outro lado se os Guineenses apresentavam essa situação de atraso era da inteira responsabilidade do colonialismo .
E isso devia envergonhar o José Milhazes como cidadão Português.
Mas ao que parece ainda se fanfarroneia julgando que está a humilhar aqueles que viviam subjugados ao atraso secular imposto por o seu próprio país.
É uma tristeza ler os seus comentários José Milhazes.
Meteram-lhe um curso na mão e nem assim teve capacidade de evoluir.
Mandume Ya Ndemufayo
Excelente artigo!
Publiquei:
http://historiamaximus.blogspot.pt/2013/11/preparacao-de-quadros-para-revolucao.html
Contacto: historiamaximus@hotmail.com
Muito obrigado por compartilhar essa informação valiosa com todos nos que falamos português, em meu país esse tema tende a ser marginalizado e esquecido obrigado sr. José Milhazes
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