sexta-feira, abril 06, 2007

Recordações de Páscoas diferentes


Acabo de chegar a casa da rua, onde a neve volta a cair, como que a recordar que o calor que sentimos nos últimos tempos ainda não veio para ficar. Digo como que a recordar, porque se trata de uma neve que se derrete ao mínimo contacto com o solo. Indecisões da Primavera russa..
Não é do tempo que quero falar, mas da Páscoa que se aproxima, pois é das festas que melhores recordações me deixaram na memória. E por várias razões...
(Apenas um parentesis para dizer que esta escrita está a ser intervalada pelo consumo de uma chávena de café com dois bons pedaços de "kulitch" (na foto), bolo pascal russo que faz lembrar o nosso pão-de-ló...)
Da infância e adolescência, ficaram os cheiros, os sabores e os ritos ligados a essa festa. As idas em grupo à hera lá para os lados dos Arcos e Argivai, pois era preciso enfeitar a entrada da casa dos meus pais para receber condignamente o Cortejo da Cruz. Recordo-me particularmente do soar do sino que anunciava a aproximação do padre. Era preciso ajoelhar-me para beijar a enorme cruz de prata.
Como a casa dos meus pais não era casa de ricos, o padre e os acólitos demoravam-se pouco tempo, pois ainda havia muito caminho a percorrer e paragens com melhores manjares.
Não se trata de uma crítica ao padre da paróquia, pois sei, por experiência própria, que é muito difícil gerir forças nesse dia, mesmo quando se é jovem.
Quando eu frequentava o seminário, participei num desses cortejos na Paróquia da Senhora da Lapa (Póvoa deVarzim). Ora ia à frente a tocar o sino, ora transportava a cruz e, nas casas mais abastadas ,não havia forma de recusar um petisco ou um cálice de vinho do Porto. Bem, no fim do dia...
Na tarde da Páscoa, era a vez de ir buscar a rosca (folar) ao padrinho e madrinha e jogar à pêla. O meu padrinho é o Senhor d'Agonia, cuja imagem se pode ver na Igreja da Senhora da Lapa, que me "dava" uma rosca de trigo. Claro que mais tarde descobri que era a minha mãe que ia depositar no altar o folar , marcado com uma fita colorida para que não me enganasse na escolha. Havia sempre a tentação de levar um "pão de ló", era mais saboroso...
O jogo da pêla juntava praticamente toda a Rua da Alegria, ali no lugar da Poça da Barca, Caxinas, Vila do Conde. Um banco e uma bola de borracha eram suficientes para alegrar toda a gente.
Claro que ao falar da Páscoa entre as "gentes do mar" da Póvoa de Varzim e Vila do Conde, não me posso esquecer da "Segunda-feira do Anjo". Farnel e garrafões de vinho à cabeça ou às costas, e rumo às matas e pinheirais dos arredores. Jogo da malha, danças e cantares. "Ai quem me dera casar com uma poveirinha, que tem a perninha gorda para vender a sardinha...", soava ao fim da tarde...
Pois é, o destino decidiu de outra maneira e transportou-me para a União Soviética, onde tive a oportunidade de ver uma Páscoa diferente, surrealista. Quem não passou por isso, terá dificuldade em acreditar, mas os que passaram, sabem que não fujo à verdade.
A Páscoa na União Soviética era uma festa semi-clandestina. Por um lado, as autoridades comunistas, que tinham oficialmente declarado e cientificamente provado que Deus não existe (em todos os cursos universitários era obrigatório estudar "Ateísmo Científico"), deixavam realizar a Liturgia Pascal nos poucos templos ortodoxos e católicos de Moscovo , mas, ao mesmo tempo, tudo faziam para que ninguém conseguisse lá entrar. Os estudantes eram avisados que iriam ter problemas caso ousassem frequentar os templos na noite de Sábado, mas como nem todos davam ouvidos aos avisos, grupos de "milícias populares" (drujiniki) e polícias cercavam as igrejas e controlavam os documentos de todos aqueles que queriam ir ver a bonita cerimónia pascal ortodoxa.
Nós, os estrangeiros, pouco ou nada arriscavamos ao ir assistir ao serviço religioso, mas os soviéticos arriscam muito, até toda uma carreira.
Para que os jovens não se aproximassem dos templos, as autoridades organizavam também nas residências de estudantes e trabalhadores discotecas que começavam ao início da noite de Sábado e estendiam-se, a título excepcional, até depois da meia noite.
Além disso, o primeiro canal de televisão começava por brindar os telespectadores com um concerto de Alla Pugatchova, diva da música ligeira soviética nem sempre acessível através dos ecrãs, e terminava, já depois da meia noite, com o programa "Melodias de Palcos Estrangeiros", onde os soviéticos podiam ver a actuação de cantores e grupos ocidentais como Albano, Rafael, Abba, Bee Gees, Boney M., etc.
Normalmente, a televisão e rádio soviéticas ficavam-se pelas estrelas oficiais da União Soviética e dos "países socialistas" e os discos de música ocidental eram vendidos no mercado negro a preços de ouro.
Esta política das autoridades comunistas não podia deixar de dar origem a anedotas e vou deixar-vos aqui uma. Porém, antes de a contar, devo esclarecer que, no dia da Páscoa, os russos se saúdam de forma especial. Um crente dirige-se a ti com as palavras : "Cristo ressuscitou!", e tu deves responder: "Em verdade ressuscitou!".
No dia de Páscoa, o Secretário-geral do Partido Comunista Soviético, Leonid Brejnev, encontra, num dos corredores do Kremlin, Mikhail Suslov, ideólogo desse partido, que se dirige a Brejnev com as palavras: "Cristo ressuscitou!".
Brejnev responde: "Já sei. Andropov (chefe da polícia política soviética) já me informou disso!

Uma Páscoa feliz para todos!

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