O post abaixo publicado foi publicado no blog do Sr. João Vasconcelos Costahttp://no-moleskine.blogspot.pt/. Publico-o na íntegra para que não seja acusado de mais coisas ainda. Farei apenas alguns comentários no fim.
"Um livro abaixo de qualquer consideração
Vou falar do livro de José Milhazes, “Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril”.
É um livro ao nível dos leitores do Correio da Manhã e que não seria
aceite como relatório final de uma licenciatura em história. No entanto,
Milhazes é doutorado e, com isto, merece atenção.
Declaração inicial:
não sou membro nem simpatizante do PCP, de que saí há mais de 30 anos;
não tenho tido actividades no seu âmbito de influência; critico muitas
coisas da sua concepção de partido leninista e do seu comportamento;
tenho dúvidas sobre o que poderiam ser os efeitos por arrastamento
destas práticas para a sociedade, se tivessem o poder; mas há limites
para o anticomunismo primário, coisa que julgava em extinção.
Vítor Dias gastou algum do seu tempo valioso a criticar, no “Jardim das Cerejas”,
esse livro recente de José Milhazes. Deixei lá no blogue uma crítica
amigável a dizer, admito que com alguma sobranceria, que não se devia
gastar cera com tão ruim defunto. Mais tarde, à medida que lia o livro e
o comentava com o meu grilo falante (não confundir com o da gastronomia),
insistia ela que não pode haver condescendências, que a sua geração foi
manipulada por grande demagogia e desinformação e que é dever de quem
viveu as coisas e ainda tem valores lutar pela verdade e pelo
esclarecimento das pessoas.
Valha
que Milhazes ajuda. Doutorado ou não, o seu funcionamento mental é
indigente e primário, totalmente desprovido de rigor. Não usa fontes
credíveis, não as submete a crítica racional, não consegue analisar
factos no seu contexto nem estabelecer relações entre eles. Pode ser um
bom jornalista-propagandista mas de forma alguma um historiador, muito
menos de história contemporânea, perigosa por não se dispor de muito
material ainda classificado. Assim, Milhazes é um deturpador.
Infelizmente, haverá gente séria que goste do livro, por ir ao encontro
dos seus preconceitos, tidos como verdade. Eu tentarei uma análise
objectiva e rigorosa.
O
livro é tão esquemático que facilita a crítica. O primeiro capítulo, de
narizes de cera e discurso de casste (onde é que ouvi isto, tantas
vezes, de outro lado?) é a exposição do quadro de fundo: 1. o PCP,
depois de Cunhal e principalmente depois da fuga de Peniche, foi o mais
dilecto filhote do PCUS, prestando-se a todos os trabalhos ao seu
serviço no movimento comunista internacional; 2. a URSS foi apanhada de
surpresa pelo 25 de Abril e não o apoiou; 3. o PCP mandou para a URSS os
arquivos da PIDE; 4. o PCP foi o agente da URSS na influência junto dos
movimentos africanos e na luta fria depois da independência dos novos
países africanos; 5. o PCP era financiado por Moscovo.
1. As relações internacionais.
É indiscutível que as relações entre o PCP e o PCUS – e outros partidos
comunistas, no poder ou não – sempre foram desenvolvidas com o maior
interesse pelo PCP. Que mal tem isso? Não se passava o mesmo com outras
“internacionais”, mormente as relações entre o PS e a Internacional
Socialista? Como é que um partido na clandestinidade, a precisar de
fazer funcionar todo um aparelho de funcionários, imprensa, viagens,
podia dispensar apoios? E sabem que na prática, foi muito mais
importante o apoio do PCE e do PCF do que o do PCUS? E que a rádio
funcionava em Bucareste, não em Moscovo? E que Cunhal se instalou em
Paris, porque Moscovo era uma “gaiola dourada”?
Fiquei
abismado com uma longa descrição de Milhazes (ou uma transcrição,
segundo ele) de uma conversa entre Gorbachov e Cunhal (cap. 3). É de
morrer de riso, mas também é devastador para a imagem que se possa ter
da cabeça do nosso Rasputine de barba à boiardo. A fonte é o Arquivo da
Fundação Gorbatchov (?). O discurso de ambos parece uma composição de
escola primária, cheio de clichês que se podem tirar de qualquer cassete
de propaganda. Admita-se que de um escriturário burocrata do KGB, mas
obviamente que nunca dos dois líderes. Que Milhazes não perceba diz
tudo.
Gorbatchov
ensina a Cunhal o bê-à-bá da política, em termos quase estalinistas,
coitado, e Cunhal, sempre humilde, vai pedindo repetidamente ao mestre
explicações e orientações. Quando se conhece o orgulho de Cunhal, a
autoestima em relação à sua capacidade de elaboração sobre o pensamento
comunista e como ele desconfiava de Gorbatchov, só uma cabecinha à
Milhazes é capaz de acreditar neste conto.
2. A surpresa do PCUS.
Para Milhazes (cap. 2 e 3), o PCUS foi apanhado de surpresa pelo 25 de
Abril. É claro, que novidade! Até certo ponto, talvez também o próprio
PCP, que tinha boa informação sobre o MFA mas que, segundo a opinião que
tenho de um homem chave do MFA, nunca foi completamente informado,
tendo-lhe sido pedidas principalmente informações operacionais.
Para
Milhazes, digerida essa surpresa, o PCUS não engoliu o 25 de Abril e
quis travá-lo. A tese de Milhazes, do domínio do PCUS sobre o PCP, joga
contra ele. O PCP foi sempre acusado de voluntarismo depois do 25 de
Abril, de sectarismo, de falta de realismo. Mas como é que o PCUS,
alegadamente tão dominador do PCP, não foi capaz de o disciplinar e de o
submeter à lógica das esferas de influência, pós-Ialta, para já não
falar da teoria da “soberania limitada” que levou à intervenção na
Checoslováquia, a que um partido vassalo (?), como o PCP, teria de se
sujeitar? (E note-se que até escreverei sobre o que para mim foi de
inaceitável essa intervenção, causa da minha primeira rotura com o PCP).
3. Os arquivos da PIDE.
É história estafada e só suportada pelo testemunho de dois dissidentes
do KGB, que aliás se revelam bem por episódios pitorescos mas
inverosímeis de histórias à James Bond, com amantes, jóias e champanhe.
Toda a gente sabe o que valem esses testemunhos, como (verdadeira?
falsa?) moeda de troca no negócio de passagem para o outro lado. Ao usar
exclusivamente essas fontes, aliás sem novidade (é preciso vender
livros), o historiador Milhazes fica desacreditado. Deixo só, porque
julgo que é considerado por toda a gente como homem honesto, um testemunho do major Sousa e Castro, responsável pela Comissão de Extinção da Pide-DGS.
4. O PCP e os movimentos de libertação.
Este capítulo do livro é revelador de ignorância crassa ou de
desonestidade, é vergonhoso e ofensivo. Qualquer anti-fascista
(Milhazes?) sabe como o 25 de Abril esteve imbricado com a luta de
independência das colónias e, cá, com a solidariedade com essa luta. Com
falha de qualquer destes componentes da luta global, não sei onde ainda
hoje estaríamos. Ninguém desconhece que os grandes quadros africanos
estiveram muito próximos do PCP ou até foram militantes (creio que
Neto, Mário Pinto de Andrade,
Marcelino dos Santos, não sei se o próprio Amílcar Cabral, os muitos da
Casa dos Estudantes do Império e do Kimbo dos Sobas) até
seguirem o seu caminho na construção dos seus movimentos libertadores.
Meus camaradas, como éramos camaradas pretos e brancos. E também havendo
brancos do lado de lá.
Mas
afirmar, como faz Milhazes, que isto foi coisa combinada entre o PCUS e
o PCP para atribuir essa tarefa a militantes do PCP, insinuando que se
mantiveram nessa situação e sob o controlo do PCP, á a miséria da “moral
em história”. É ofensa a todos os que, no meu tempo e conheci muitos,
saíram para a luta na mata, é certo que com a ajuda do PCP, mas para
assumirem com total autonomia a luta independentista. Milhazes era nessa
altura politicamente ignorante, mas devia ser hoje mais humilde. Já
agora, e como se disse, foi o PCP, com o PCUS a apoiar, que fez o 27 de
Maio em Angola?
5. O PCP foi financiado pela URSS,
nomeadamente por meio de empresas criadas pelo partido. Claro que sim. E
as malas de Macau, do PS? E as fundações alemãs por detrás do PS e do
PSD? E como é que Milhazes faz larga descrição e identificação das tais
empresas? Tudo opaco? E qual foi a vantagem dessas empresas no período
de sufoco do nosso comércio internacional, a seguir ao 25 de Abril? Que o
diga um amigo meu de infância, grande responsável pelo comércio externo
com os países socialistas a seguir ao 25 de Abril, quando a “Europa
connosco” nos dizia "nim".
A baixeza.
Deixo para o fim o aspecto mais desagradável e repelente deste livro.
Sobre ele, discordei de Vítor Dias, quando ele escreveu que Milhazes era
“um filho de pescadores que graças à ajuda do PCP e da URSS tirou
naquele país um curso superior que cá não poderia tirar”. Achei que era
um argumento “ad hominem” despropositado e achincalhante, até contra a
promoção de filhos do povo que ambos defendemos. Hoje, depois de ler o
livro, acho que ele se pôs a jeito.
Os
últimos capítulos são sobre uma outra forma de domínio da URSS e do
PCUS sobre o PCP: o acolhimento de combatentes políticos portugueses
exilados, o pagamento de viagens para contactos políticos
(inclusivamente a socialistas), a criação de escolas para filhos de
comunistas a lutar em Portugal, na clandestinidade, a concessão de
bolsas para frequência de cursos nas universidades soviéticas.
Tudo
isto era domínio sobre o PCP? Esses lutadores eram “apenas” comunistas
ou eram antifascistas merecedores da solidariedade do internacionalismo,
por mais que esse já estivesse pervertido no jogo dos poderes? Note-se
que as bolsas universitárias não eram destinadas apenas a filhos de
comunistas. Claro que a URSS tirava efeitos de propaganda, mas tenho
testemunho directo de alguns desses estudantes quanto a nunca terem tido
a obrigação de enquadramento político partidário.
Se
toda a primeira parte do livro é de mau nível, este final é moralmente
abjecto, de quem morde a mão de quem o ajudou. Não quero dizer que o
reconhecimento deva ser absoluto e tolher a crítica, mas há limites de
decência.
À MARGEM – Com
o passar dos anos, e principalmente com a perestroika, veio a
conhecer-se com certeza muitos aspectos absolutamente condenáveis da
vida soviética. Muitos dos meus camaradas de 1968 se interrogaram sobre
isso, ao acompanharmos o que se passava na Checoslováquia (para nós
muito mais importante do que a anarqueirada de Paris). Mas era
angustiante. Em plena guerra fria e guerra de propaganda, o que era a
verdade?
Hoje,
há quem nos acuse de não termos sabido ver nessa altura o que era, para
eles "indiscutivelmente", essa verdade (como sabiam?). É certo que já
havia a denúncia do estalinismo e alguns se mantinham nessa onda, mas
éramos nós estalinistas, nos anos 60?
Se
quiserem classificar-me assim, não me importo que me chamem hoje de
anticomunista, embora isto não seja bem verdade. Vou pelo que disse
acima: creio que o PCP, em 1975, cometeu graves erros, creio que a sua
concepção de partido leninista de vanguarda, do centralismo democrático e
do funcionalismo aparelhístico é viciadora de uma mentalidade ajustada à
vida social de hoje.
No
entanto, afinal, os anticomunistas bem seguros de hoje, os que sabem
tudo sobre o que se passava na URSS, eram muitas vezes, nos anos 60 (e
depois esquerdistas a seguir ao 25 de Abril) maoístas fanáticos, de
forma alguma democratas e defensores dos direitos burgueses. Tive erros,
mas só aceito que me acusem os que têm autoridade para isso."
P.S. Não vou enveredar pela via do insulto, pois essa seria a mais fácil. Os leitores do meu livro julgarão.
Não conheço este Sr. João Vasconcelos Costa pessoalmente, nem o seu currículo profissional, por isso também não faço comentários neste campo.
Mas convém fazer algumas considerações, porque, este senhor ou não leu o livro com atenção, ou então distorce e mente sobre o que lá está escrito.
1) Onde é que está escrito no meu livro que o PCUS não engoliu o 25 de Abril e quis travá-lo? O senhor não estará a fazer confusão com o 25 de Novembro?
2) Quanto aos arquivos da PIDE, este sr. mente quando escreve que no livro são publicados apenas testemunhos de dois dissidentes. No livro é publicado o nome de um agente soviético que trabalhava para a CIA e que os soviéticos descobriram essa "toupeira" através do arquivo da PIDE, mas o senhor deve ter passado ao lado disso.
3) Adoro o velho argumento de que os outros fizeram isso, por isso o PCP também podia fazer. Isso não é história, mas justificar as asneiras de uns com as asneiras de outros. Eu escrevi sobre o PCP, porque apresentei provas. Se o meu trabalho fosse dedicado a outro partido, eu faria o mesmo.
4) A dada altura, o senhor escreve que "foi muito mais importante o apoio do PCE e do PCF". Baseia-se em que documentos. Esses partidos ainda gastavam mais dinheiro com o PCP do que o PCUS? E de onde é que esses partidos recebiam o dinheiro? Eram das quotas dos militantes?
5) Quanto à crítica das fontes, quem acha que eu deveria citar, só pessoas devidamente autorizadas e sancionadas pelo PCP? Se a conversa entre Cunhal e Gorbatchov lhe faz lembrar uma "composição da escola primária", o problema não é meu, mas dos dirigentes que tinham esse nível intelectual. Gostaria de lhe lembrar, e isso está escrito no meu livro, que Álvaro Cunhal reconheceu publicamente que essas e outras conversas coincidiam, em geral, "com as minhas notas".
Se também acha que agentes do KBG e altos funcionários do PCUS não são fontes fiáveis, o problema é claramente seu, ou melhor, da sua honestidade intelectual.
6) Quanto ao PCP e os movimentos africanos, remeto-o para os livros que já escrevi sobre o assunto. Quanto ao que eu escrevo e você me critíca, tome em atenção que cito um conceituado historiador português.
N.B. Fico-me por aqui e, antes de insultar os outros, olhe para o espelho. Como se costuma dizer, quando não se gosta da cara, a culpa não é do espelho.
Quando ao insulto do Rasputine, isso só pode ser "dor de cotovelo" ou algo mais grave.
Quando ao insulto do Rasputine, isso só pode ser "dor de cotovelo" ou algo mais grave.
2 comentários:
Katyn também era negado ... até que foi admitido.
Os tanques soviéticos em Luanda, combinados no Alvor ao abrigo de uma posição estratégica no hotel que permitia aos "negociadores" portugueses conversar com o MPLA à socapa também será mentira.
Os cubanos e os conselheiros militares para aguentar o MPLA também será invenção.
Sr José Milhazes. Sinceros parabéns pela obra, que devorei. Tenho apenas 27 anos, o que me coloca muita distância temporal desta época. Obrigado. Em relação a este espernear comunista em relação ao seu livro... A carapuça!
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