Quando
escrevi e publiquei, ontem, o artigo sobre a Estónia, não quis
supor que espero ver, dentro em breve, as tropas russas a
“libertarem” os “russófonos oprimidos”, embora já nada se
possa excluir. Queria, sim, chamar a atenção para o facto de o
Kremlin estar a incentivar desestabilização nos países vizinhos
para colher o máximo de frutos na sua política externa.
Como
é sabido, na origem da mais grave crise na Europa depois do fim da
guerra fria, estiveram as manifestações em Kiev a favor da
integração europeia e contra a repressão policial. A oposição
ao Presidente Ianukovitch tentou aproveitar a oportunidade para o
derrubar e a forma utilizada, apoiada pela UE e os EUA, foi a mais
desastrosa: foi assinado, tendo a UE como garante, uma acordo para a
saída da crise, mas os termos do documento foram imediatamente
violados pela oposição. Ianukovitch teve de fugir para a Rússia,
pois ninguém lhe dava garantias de segurança e o destino do líder líbio Kadaffi ainda está fresco.
Não
sei se por ignorância ou excesso de confiança, mas os analistas da
UE e dos EUA parecem não ter medido as consequências do que estava
a acontecer e deram ao Kremlin um pretexto há muito esperado para
responder “à russa”. O Presidente russo, Vladimir Putin, reagiu,
violando todos os princípios que dizia defender: soberania dos povos
e países, inviolabilidade de fronteiras, etc., etc.
Este
pretexto serviu também para a continuação da revisão das
fronteiras herdadas da União Soviética, processo iniciado logo após
a queda do império soviético e que teve um dos pontos altos em
Agosto de 2008, quando a Rússia invadiu a Geórgia.
Se
alguns estudiosos e políticos ocidentais tivesse tentado analisar a
mentalidade dos actuais dirigentes russos, não ficariam
surpreendidos com a reacção da Rússia e poderiam ter impedido a
anexação russa da Crimeia. Claro que não através das armas, mas
cumprindo o acordo assinado entre a oposição e Ianukovitch. Era
preciso esperar mais alguns meses para que Ianukovitch se retirasse,
pois o seu regime corrupto não tinha qualquer apoio. Mas o essencial
era derrubar Ianukovitch e viesse o que viesse depois.
Mas,
como já escrevi há uns tempos atrás, a Rússia é, grosso modo,
dirigida por dois grupos que esperavam de uma oportunidade para se
desforrar do chamado Ocidente: os siloviki (criaturas dos serviços
secretos) e os descendentes da velha nomenclatura soviética.
Eis
um exemplo: Viatcheslav Nikonov, neto de Viatcheslav Molotov, antigo
ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS estalinista. Tal como o
avô, que não saiu em defesa da esposa quando Estaline a enviou para
um campo de concentração, o neto também não foi para a rua
defender a União Soviética. Pelo contrário, transformou-se num
“democrata” e “ocidentalista”. Vladimir Putin, referindo-se à
oposição, disse um dia que os seus membros andavam “como chacais”
pelas embaixadas ocidentais. Ora Nikonov era um desses, vi-o várias
vezes na Embaixada de Portugal, apresentando-se como um “verdadeiro
defensor dos direitos universais do homem”, etc.
Mas,
quando os ventos mudaram, Nikonov mudou com eles e, hoje, além de
deputado da Duma Estatal, dirige a “Russky Mir” (Mundo Russo),
organização que tem como objectivo reunir a diáspora russa no
mundo e incentivar a cooperação com outros povos.
Em
termos ideológicos, este político, que apoia incondicionalmente a
actual política externa, também evoluiu muito. Ao discutir a forma
como apresentar a História da Rússia aos alunos das escolas,
Nikonov falou, em Dezembro de 2011, da “grande raça ariana russa”.
Este doutorado em História, precisou: “Devemos sempre recordar em
que país vives e trabalhas, conhecer as suas tradições. A nossa
Pátria tem um grande passado. Um ramo da tribo ariana desceu dos
Cárpatos, povoou pacificamente
a Grande Planície Russa, a Sibéria, a parte mais fria do planeta,
chegou até ao Pacífico, fundou o Fort Ross, bebeu as seivas das
riquíssimas culturas de Bizâncio, Europa, Ásia, derrotou o mais
terrível inimigo da Humanidade, abriu o caminho para o Espaço. Mas
há poucos lugares onde se sabe tanto pouco e tão pouco se aprecia o
passado e o presente”, explicou.
Depois
vem a “medição de crânios”: “Se dividirmos toda a humanidade
em três grupos: 1) criadores de cultura, 2) portadores de cultura e
3) destruidores de cultura, os representantes dos dois primeiros
grupos só são arianos. Foram precisamente os arianos que criaram,
se assim se pode dizer, os alicerces e paredes de todas as criações
humanas. Os outros povos deixaram apenas o seu sinal na forma e cor
externas”.
Nikonov
talvez se tenha esquecido que a sua avó era judia, ou talvez não,
decidiu seguir o exemplo do avô.
São
ideias semelhantes ou iguais a estas que estão na moda entre a elite
política russa.
Na
véspera, um grupo de deputados da Duma Estatal exigiu do Procurador
da Rússia que investiga a forma como a URSS ruiu e apure as
responsabilidades de Mikhail Gorbatchov, então Presidente do país,
nesse processo.
Ou
seja, volta a vir à tona a mentalidade imperial sob formas
agressivas, que nunca trouxe nada de bom à Rússia. Moscovo deveria
preocupar-se mais com o seu crescimento intensivo, com a modernização
das suas infraestruturas, da sua economia, com o combate à
corrupção, mas volta a cometer o erro de gastar forças no
alargamento da sua zona de influência, mesmo que com “pretextos
dignos”.
10 comentários:
Bom dia,
Não acredito que os russos, cheguem a esse ponto de tentar destabilizar paises como a Estonia ou a Litoania, pois são paises que estão protegidos pela UE e NATO, uma tentativa de fazer teria consequências imprevisieis tanto para a Russia como para UE e NATO, e se a Russia num caso hipotetico começa se a concetrar uma força militar junto a essas fronteiras desses paises acho que teriamos uma 3ª Guerra Mundial. Espero que o bom senso e os desejos imprialista dos senhores do Kermelin se acalmem se não vamos ter um seculo XXI, muito complicado, para todos nós.
Ui! Esse rapaz fala dos arianos (que existiram) de forma tão leviana... saberá ele que os povos arianos terão tido origem na Ásia Central?
Terão sido depois os descendentes de uma data de outros povos, desde sakas e citas a germanos, eslavos e latinos, aos quais transmitiram, sobretudo, as bases linguísticas.
Nada de sobrenatural, portanto.
Quanto à "mentalidade imperial sob formas agressivas, que nunca trouxe nada de bom à Rússia"... JM, é impressão minha ou foi a "mentalidade imperial sob formas agressivas" que permitiu à Moscóvia conquistar Kazan e Astrakhan e desbravar toda a Sibéria até ao Pacífico?
E conquistar os territórios a Oceidente? E a Nova Rússia e a Crimeia? E a Ásia Central?
O que é que isso "nada trouxe de bom à Rússia"?
"Russky Mir” (Mundo Russo). Não seria mais acertada a tradução como "Paz Russa"?
Quanto às historias do arianismo: isso é uma má noticia. Tivesse os homem bebido muita vodka, e até se compreendia qual a origem da estupidez. Mas ele proferiu essas palavras estando sóbrio.
Preocupante.
Queria, sim, chamar a atenção para o facto de o Kremlin estar a incentivar desestabilização nos países vizinhos para colher o máximo de frutos na sua política externa.
Mas as pessoas que vivem na Estónia também pensam por si. Ou seja, muitas têm opinião formada, estão informadas e sabem o que querem, afinal estão num país livre.
Se por um lado existe guerra de propaganda, ela EXISTE dos dois lados. Se a Rússia incentiva a desestabilização nos países vizinhos, outros TAMBÉM o estão a fazer e fizeram-no PRIMEIRO.
E se num país democrático e europeu, o acesso à informação parece ser um direito dos europeus, o que alguns países bálticos estão a fazer é grave:
Letônia e Lituânia suspendem canais de emissora russa
A Letônia está se juntando à Lituânia na proibição de transmissões internas da televisão estatal russa, após avaliar que vários programas sobre a crise na Ucrânia eram tendenciosos ou estavam em desacordo com interesses de segurança dos países bálticos...
http://www.dgabc.com.br/Noticia/521525/letonia-e-lituania-suspendem-canais-de-emissora-russa?referencia=minuto-a-minuto-topo
Se uma coisa destas me chama a atenção, que dizer de muita gente que vive nos páises bálticos, nomeadamente na Estónia?
Só pelo o facto de estar a haver censura, já é motivo suficiente para colocar as pessoas apreensivas e a procurar a informaçaõ que pretendem por meios alternativos. Ou seja, as pessoas ainda vão tomar mais atençaõ sobre o que se está a ser dito pelo o "outro lado".
Se o Kremlin incentiva a desestabilização em países vizinhos, esses países vizinhos AMPLIFICAM esse desestabilização na sua própria população.
E a seguir o que vamos ter? penas de prisão para quem disser em público o que pensa?
Mesmo antes de hoje, finalmente, a Blogger me ter permitido escolher não receber mais mensagens do seu blogue... Eis que vi eu o texto inicial desta sua colocação mais recente, no topo da minha lista de leitura, onde sobressaiu a frase:
«Queria, sim, chamar a atenção para o facto de o Kremlin estar a incentivar desestabilização nos países vizinhos para colher o máximo de frutos na sua política externa.»
Tem o autor provas desse facto?
(Ou é esta mais uma afirmação do tipo, "as tropas crimeanas são, na verdade, tropas russas disfarçadas" - ainda que existam provas em contrário?)
(E, já agora... Foi você quem apagou os comentários a uma colocação sua anterior, onde apresentava eu tais provas e denunciava o facto de ser mentira a afirmação anterior sobre as tropas?)
Justino disse:
Se bem me lembro, o povo que mais sofreu à custa dos que se reclamavam dum puro arianismo foi justamente o povo russo, 23 milhões de mortos entre soldados e civis, representando 13% da sua população, ou seja, morreram vária vezes mais russos que em todo o holocausto judeu.
Foram também os russos a libertarem os campos de extermínio Majdanek, Belzec, Sobibor, Treblinka e o maior de todos eles, Auschwitz, a quem os sobreviventes, maioritariamente judeus, devem as suas vidas.
São factos históricos inegáveis, julgo, os quais deveriam levar a uma certa reserva e até a um justo tributo antes de se lançar uma qualquer anacrónica cartada de antissemitismo ou a novidade de um exacerbado arianismo a leste.
Senão , voltando ao presente, atendamos ao que diz Yuri Kanner, presidente do Congresso Judaico Russo: “Os judeus viveram na Rússia dos czares, na de Estaline, em todas as situações. O que temos hoje é a melhor situação dos últimos 200 ou 300 anos”.
O facto de tanto se insistir na cartada antissemita desde que o governo legítimo da Ucrânia foi derrubado, leva-me a pensar se tal não se trata de tentar lançar poeira sobre os dramáticos acontecimentos que aconteceram na Ucrânia quando os cossacos se aliaram aos invasores nazis então acolhidos como libertadores, tendo colocado em marcha a vergonha o chamado genocídio de balas que terá vitimado cerca de milhão e meio de judeus, poeira ainda mais justificada pelo facto de uma das forças mais activas no recente golpe em Kiev ser o ultra-nacionalista Svoboda cujo nome inicial era, calculem só, Partido Nacional-Social da Ucrânia, cujo símbolo parece uma suástica modificada.
É pois claro que quem beneficia com o discurso ao antissemitismo ou arianismo russos são as exóticas figuras que ilegitimamente tomaram o poder em Kiev,e ainda mais beneficiava se a "potência regional" russa viesse a cair na armadilha de colocar questão análoga à Crimeia nos países bálticos, em que nenhuma similitude se consegue enxergar , por mais forço visual que se empregue.
...Moscovo deveria preocupar-se mais com o seu crescimento intensivo, com a modernização das suas infraestruturas, da sua economia, com o combate à corrupção, mas volta a cometer o erro de gastar forças no alargamento da sua zona de influência, mesmo que com “pretextos dignos”...
Depende da perspectiva com que se veja o assunto. Se você vir a Rússia com más intenções, pensa na Rússia a querer expandir a sua zona influência e com intenções hostis.
Mas se vir no contexto em que a Rússia responde aos avanços de outras potências, a Rússia está a impedir o expansionismo de outros.
Ou seja, a tal "invasão" da Geórgia como você está referir, foi apenas depois desta bombardear as regiões separatistas.
A Rússia ao REAGIR como reagiu, além de proteger aquelas regiões, impediu o alargamento da NATO.
Agora na Ucrãnia, após anos de instabilidade, onde ora pendia para a UE ora pendia para a Rússia, sempre com a ameaça da entrada da NATO, o terem forçado a saída prematura do presidente e com aquela linda decisão de querer acabar com a língua russa, deixou uma porta aberta para resolver parte do problema ucraniano, ou seja, impedir que o alargamento da NATO num país que é tão importante para a Rússia.
A Rússia ao anexar a Crimeia, impede a entrada da NATO.
Outras potências forçaram a saída prematura do presidente, a Rússia reagiu e impede a entrada da NATO, independentemente de quem passe a ser o presidente e independentemente para onde a Ucrãnia se vire.
A Rússia só forçou a sua jogada, DEPOIS de outros o terem feito.
Em ambos os casos, (Geórgia e UCrânia), se não tivesse havido uma jogada pelos os outros interessados, a Rússia também não teria avançado.
A Rússia está a avançar? está.
Mas muito cautelosamente.
Algo que não estou a ver ser feito pelos os seus oponentes.
não há necessidade de desculpar o violador ou assassino usando os argumentos do que a vítima os "provocou"...
"não há necessidade de desculpar o violador ou assassino usando os argumentos do que a vítima os "provocou"..."
É bem verdade. Não há desculpa para o comportamento desumanizante da Estónia (e Letónia), que considera parte dos seus habitantes sub-humanos, não lhes garantido o mais elementar dos direitos, o direito de cidadania do sítio onde nasceram e sempre viveram, apenas porque não querem aprender uma língua, que, de repente, alguém impòs como oficial!
Deviam ser julgados no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem!
Em Portugal dá-se a cidadania a indívíduos que imigraram para lá vindos de outros continentes, só por viverem cá há X anos;
na Estónia não se condece a cidadania a indivíduos nascidos naquele território antes mesmo do país se ter tornado independente, tudo com base em critérios étnicos. Seria um escândalo se isso se passasse com ciganos ou judeus, mas como se passa com russos, no problem.
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