quinta-feira, outubro 04, 2018

NAVEGADORES RUSSOS E IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS - 3

Por-do-sol em Belém, Ivan Aivazovski


… receber ordens de São Petersburgo e passe a cumprir ordens do conde Tolstoi, embaixador russo em Paris, que funcionaria como uma «correia de transmissão» sua.
A esquadra do almirante Seniavin chegou a Lisboa – escrevia Napoleão a Alexandre a 7 de Dezembro de 1807 – Felizmente, as minhas tropas já se devem encontrar lá. Seria bom se Vossa Alteza incumbisse o conde Tolstoi de ter poder sobre essa esquadra e sobre as suas tropas, para que, em caso de necessidade, possam ser utilizadas sem esperar ordens directas de Petersburgo. Penso também que este poder directo do embaixador de Vossa Alteza teria boa influência no sentido em que poria fim à desconfiança que por vezes revelam os comandantes face aos sentimentos de França12.
A pressão sobre o almirante Seniavin aumenta através da instrução da Corte Russa, enviada no início de 1808 para Andrei Dubatchevski, representante diplomático russo em Lisboa, e dirigida a todos os militares russos: «Em relação ao governo que irá existir em Portugal, é necessário que os vossos actos correspondam em tudo à disposição amiga actualmente existente entre a Rússia e a França»13. E, por fim, a 1 de Março do mesmo ano, Alexandre I envia uma ordem aos três comandantes de armadas russas que se encontravam no estrangeiro, entre as quais estava a comandada por Seniavin: «Reconhecendo como útil para o êxito da causa comum e para que seja feito o maior prejuízo ao inimigo colocar as nossas forças navais que se encontram fora da Rússia à disposição de Sua Alteza, o Imperador dos Franceses, ordeno-vos que, em conformidade com isso… o cumprimento indiscutivelmente mais preciso de todas as ordens que vos forem dadas por Sua Alteza, o Imperador Napoleão»14. As relações entre Seniavin e Junot tornavam-se cada vez mais tensas, pois os franceses necessitavam de mostrar à Europa a solidez da aliança russo-francesa. Tanto mais num momento em que a guerra popular contra Napoleão em Espanha tomava formas cada vez mais abertas e a Áustria se armava. A entrada em acção da armada russa ancorada em Lisboa contra os ingleses seria um sinal para todos aqueles que consideravam a aliança russo-francesa uma utopia. Mas o comandante russo não estava disposto a sacrificar a vida dos seus homens e os seus navios em nome da defesa dos interesses franceses em Portugal e, por isso, recorre a um subterfúgio para tentar adiar ou mesmo evitar totalmente o cumprimento das ordens de Napoleão: alega falta de armamentos e homens. Tendo recebido um relatório enviado por Dmitri Seniavin, datado de 21 de Abril de 1808, Napoleão dá-lhe algumas ordens: estar pronto para sair para o mar a qualquer momento e, para isso, «manter a tripulação em estado de alerta». E vendo que o navio «São Rafael» não se encontrava devidamente equipado, o Imperador francês ordenou ao almirante russo que contactasse Junot para que este recrutasse marinheiros suecos e outros que se encontravam em Lisboa. Além disso, se faltassem munições, pólvora ou quaisquer outros materiais, deveria conseguir tudo isso em Lisboa15. Mas o oficial russo consegue, sob os mais variados pretextos, manter a neutralidade, explicando a sua posição numa missiva enviada ao czar Alexandre I: «Uns dias antes de me encontrar com o duque [Junot], recebi informação segura de que a Espanha se fez inimiga clara da França e as armas espanholas tinham vencido em várias ocasiões, ao mesmo tempo que as províncias setentrionais de Portugal começaram a fugir do poder dos franceses… e a mais insistente exigência do duque para o reforçar com soldados convenceu-me da situação fraca das tropas francesas em Portugal. Eu, encontrando-me em situação tão difícil, considerei: se tomar o lado dos franceses e assim me ver claramente envolvido em medidas hostis contra os portugueses, ingleses e espanhóis, ficarei sem qualquer meio para salvar a esquadra de Vossa Alteza Imperial do poder desses povos unidos…». Junot passa dos pedidos pessoais a exigências formais com vista a obrigar Seniavin a cumprir as ordens vindas de Paris e São Petersburgo. A 3 de Julho de 1808, o general francês escreve ao oficial russo: «Senhor almirante, nas difíceis circunstâncias em que me encontro e que advêm nomeadamente da necessidade de defender a esquadra de Sua Alteza, o Imperador Russo, eu penso que o nosso dever comum, bem como o interesse dos nossos senhores, consiste em chegar a um acordo sobre os meios possíveis de ajuda mútua». O objectivo era conseguir fazer com que Seniavin desembarcasse com as suas tropas na margem esquerda do Tejo para defendê-la dos ingleses: «o efeito colossal dessa medida seria incalculável»16. Dmitri Seniavin responde imediatamente, começando por sublinhar que ele compreende muito bem o seu dever, que consiste em cumprir à risca as ordens de Napoleão, mas arranja nova argumentação para evitar isso. Desta vez, o almirante russo alega que, caso ele desembarcasse na margem esquerda do Tejo, teria de combater não só contra os ingleses, mas também contra os insurrectos portugueses, coisa de que não tinha sido incumbido. Além disso, considerava que era mais útil para os monarcas francês e russo não atacar a esquadra inglesa, mas continuar no mesmo lugar17. Junot ficava cada vez mais furioso e, a 26 de Julho, foi visitar Seniavin ao navio «Tverdii» («Firme») para tentar uma vez mais convencê-lo, mas em vão. Dois dias depois, escreve uma nova carta: «Senhor almirante, visto que a situação em que me encontro se torna dia a dia cada vez mais complicada, considero ser meu dever e uma questão de minha honra conhecer positivamente as vossas intenções e saber se posso esperar receber de Vossa Excelência alguma ajuda. Este é o meu dever, visto que o Imperador, o meu Senhor, considera que a significativa esquadra que o Imperador russo colocou à sua disposição deve, obrigator iamente, em circunstâncias tão críticas, ajudar com todos os meios o seu exército terrestre, tal como o exército terrestre deve ajudar a esquadra». Na mesma missiva, Junot passa para o campo das ameaças: «É necessário que o meu Senhor e o vosso saibam que a esquadra russa não desejou prestar-me a mínima ajuda. É preciso que os militares, que irão analisar a minha situação, saibam que eu não estive apenas cercado por todos os lados de inimigos, mas que a esquadra aliada da França, que se encontra em guerra contra Inglaterra, se declarou neutra no momento mais decisivo perante a esquadra inimiga e no momento do desembarque substancial de tropas inglesas, e que o seu comportamento foi para mim mais prejudicial do que se ela estivesse contra mim». A ira do general Junot é tão grande que começa a referir-se a Seniavin, na mesma carta, na terceira pessoa: «Se o senhor almirante Seniavin se encontra realmente em estado de guerra com os ingleses, como pode ele pensar um só momento que a sua armada não cairá nas mãos deles caso tomem Lisboa? Se o senhor almirante Seniavin tem algum acordo com o almirante inglês, se ele recebeu de alguma forte garantias para a sua armada, será que a honra lhe permitirá abandonar o aliado sem aviso?»18. O almirante russo respondeu à missiva no mesmo dia, reafirmando a sua obediência a Napoleão e negando qualquer acordo com os ingleses. Porém, continua a considerar que é inútil fazer desembarcar os seus homens não só porque são menos de mil, mas também porque os russos não compreendem português!19. Após a derrota das tropas francesas em Vimieiro, a 9 de Agosto de 1808, Junot vê-se obrigado a abandonar Portugal e o almirante Seniavin, que já tinha estabelecido contactos com o comando da armada inglesa que bloqueava Lisboa em meados de Julho, tentou fazer tudo para que a sua armada não fosse apreendida pelas autoridades de Londres, pois a Rússia e a Inglaterra continuavam formalmente em estado de guerra. Argumentando a sua posição numa carta dirigida ao almirante inglês Cotton, Seniavin escreve: «O meu comportamento durante os dez meses de permanência em Lisboa, as minhas recusas constantes de participar mesmo que da forma mais mínima nas medidas hostis que me eram propostas [contra os ingleses]… Todos esses motivos convencem-me firmemente que Vossa Excelência terá em atenção as circunstâncias acima assinaladas e que a situação neutra legal seja observada em relação à minha esquadra, enquanto ele estiver no rio Tejo»20. A armada russa acabou por ser conduzida para o porto inglês de Portsmouth e, em 1809, os oficiais e marinheiros russos regressaram ao seu país, deixando os navios em Inglaterra, tal como exigiram as autoridades de Londres. E não obstante o Governo de Londres ter, em 1812, devolvido alguns dos navios e pago por aqueles que ficaram em Inglaterra, o czar russo acusou o almirante de ter «entregue» a esquadra ao «inimigo». (continua)

13 Архив внешней политики России (АВПР). Ф. Канцелярия МИДа, 1808, д. 6660, л. 2 (Arquivo da Política Externa da Rússia (APER), f. Chancelaria do MNE, 1808, d. 6660, folha 2). 
14 ACEFM, f. Departamento do Ministério da Marinha para a Esquadra de Seniavin, d. 579, f. 52-53.
15 Correspondance de Napoléon, t. XVIII. P., 1865, p. 83-84. 16 APER, f. Chancelaria do MNE, 1808, d. 5191, f. 30-31. 17 Ibidem, f. 25.
18 Ibidem, f. 28-29. 19 Ibidem, f. 30-31. 20 Ibidem, f. 45. B.


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