quarta-feira, agosto 02, 2006

Contributos para a História de Portugal - 14


"O NOSSO HOMEM EM LISBOA"

Ao arrumarmos livros e papéis nas prateleiras de nossa casa, encontramos escritos que vale a pena partilhar com os outros. É o caso das memórias de Eduard Kovaliov (na foto), agente secreto soviético que trabalhou em Portugal logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 a coberto do cargo de correspondente da agência noticiosa soviética TASS. Inseridas no livro Roteiro do KGB das Cidades do Mundo, vamos publicar a tradução da parte das memórias directamente ligadas ao seu trabalho em Portugal. Devido à sua longa extensão, decidimos publicá-la em capítulos separados.


Curriculum Vitae Nº

Apelido - KOVALIOV
Nome - EDUARD
Patronímico - VASSILIEVITCH
Data de nascimento - 12 de Março de 1932
Instrução - Superior, terminou o Instituto Estatal de Moscovo de Relações Internacionais, Faculdade de Estudos Ocidentais, especialidade "Economia" e "Jornalismo".
Línguas estrangeiras que domina - espanhol, português, inglês. Leio em francês e italiano.
Graus académicos - não tenho.
Patente militar - coronel.
Países onde trabalhou - Cuba e Portugal.
Estado Civil - Casado.
Desportos - ténis, xadrez.
Cigarros - não fumo.
Hobby - Bibliógrafo, colecciono literatura e obras políticas.

UM POUCO DE HISTÓRIA
A Revolução de Abril em Portugal desabou inesperadamente sobre mim no fim da Primavera de 1974. Mas, no fim de contas, ela alterou também radicalmente a minha vida pessoal e, principalmente, a minha carreira profissional.
Ao derrubar fulminantemente o podre regime de Salazar-Caetano, "A Revolução dos Cravos Vermelhos" de 25 de Abril de 1974 despertou para uma nova vida o velho país situado no Extremo Ocidente da Europa, o último império colonial no mundo; colocou, temporariamente, Portugal no centro da atenção geral, deu ao nosso mundo uma nova e valiosa experiência revolucionária.
Os acontecimentos revolucionários em Portugal reflectiram-se da forma mais inesperada também no meu destino pessoal, nos meus planos pessoais. Então, eu dedicava-me a assuntos da América Latina, conhecido como o "continente em chamas", que fervia devido a agudos conflitos sociais. Um dos países latino-americanos já estava pronto a receber-me como funcionário de uma instituição soviética e já tinha recebido o respectivo visto.
Restava apenas escolher o voo de avião mais cómodo e, reconheço, a minha principal preocupação consistia em convencer os meus chefes a autorizarem-me a partir para a longa missão de servir só após os feriados do 1º de Maio, que gostaria de passar com a família em Moscovo.
Mas os acontecimentos sensacionais que ocorreram então: a revolução democrática, antifascista em Portugal e a queda do último regime fascista na Terra, não podiam deixar de despertar em mim o mais vivo interesse, como em todo o funcionário que actua na linha da frente da política externa.
No fundo da alma, senti pena de a revolução em Lisboa se ter realizado "demasiadamente tarde" para mim. O belo sonho de trabalhar no novo Portugal democrático parecia-me de impossível realização. Primeiro, porque a minha nomeação já tinha sido acordada em Moscovo e no país para onde deveria ir trabalhar. Segundo, porque, na União Soviética, a prática do envio de funcionários para missões no estrangeiro requeria numerosas discussões e concordâncias, bem como a existência de instituições soviéticas num dado país.
Era absolutamente impossível acreditar que, em alguns meses, em Portugal pudessem abrir uma embaixada soviética, representação comercial ou escritórios de meios de informação soviéticos. Por isso, eu devia pôr completamente de parte a ideia da possibilidade de trabalho em Portugal, que, no fundo, vivia em mim.
Mas o destino de um oficial de espionagem muda como "o coracion de una bella", cantada pelos italianos. Na véspera do 1º de Maio, no dia 30 de Abril, telefonaram-me para o meu local de trabalho oficial e ordenaram-me que me apresentasse imediatamente em Iassenevo, quartel dos serviços de reconhecimento soviéticos.
Não era costume explicar por telefone a razão dessa chamada, mas era tão urgente que me permitiram mesmo apanhar um táxi para me dirigir ao Instituto de Estudos Científicos , nome sob a qual se escondia, nessa altura, a instuição soviética conhecida em todo o mundo e desagradável para o Ocidente. Tratava-se de uma violação clara e incompreensível da conspiração para mim . Esta chamada urgente escondia algo de inesperado e misterioso.
Porém, as ordens são para ser cumpridas. E, a contragosto, fui encontrar-me com os chefes. Logo que cheguei, fui imediatamente recebido pelo chefe da Secção de Quadros. Ele foi direito o assunto: "Ouviu falar dos acontecimentos em Portugal?". "Tem de partir para lá" - continuou ele. "E o mais depressa possível..."
Fiquei estupfacto pela notícia inesperada, mas feliz: "Claro que estou de acordo. Mas na qualidade de quem? A União Soviética não tem lá nem embaixada, nem qualquer outra instituição..."
"Você fala português, tem experiência como jornalista" - disse-me alegremente o chefe da Secção de Quadros. "Foi decidido enviá-lo como correspondente da TASS, dirija-se imediatamente ao gabinete de Zamiatin. Se lhe servir, tudo bem. Caso contrário, você irá como turista..."
"Obrigado pela confiança" - balbuciei com dificuldade.
Leonid Mitrofanovitch Zamiatin, chefe da TASS, recebeu-me no seu gabinete, instalado comodamente num sofá fofo de "produção estrangeira". "Eu não o conheço - começou ele preguiçosamente - mas já prometi a Iúri Vladimirovitch Andropov[chefe do KGB - serviços secretos soviéticos]. Confundi-o com uma pessoa que tem o mesmo apelido. Ele trabalhou comigo e nada mau... na Ásia... Contudo, já não posso fazer nada... Você conhece a língua, tem alguma experiência. Bem, vá e dedique-se aos seus assuntos, mas envie-nos para Moscovo pelo menos a revista da imprensa".
Depois da aprovação de Zamiatin, nada mais me restava do que mergulhar séria e urgentemente nos assuntos portugueses: dediquei os dias feriados à leitura das informações das agências internacionais sobre os primeiros dias dos "cravos vermelhos portugueses"...
A despeito da longa preparação burocrática soviética das viagens ao estrangeiro, a minha viagem para Lisboa foi preparada em apenas uma semana, não obstante o grande número de feriados (dois dias no início de Maio, mais o Sábado e Domingo).
Deste modo, o meu modesto desejo de ir para a América Latina mais tarde, só depois da Festa da Vitória, em 9 de Maio, teve para mim consequências imprevistas. Inesperadamente, eu parti para o Portugal revolucionário. Um sonho outrora irrealizável tornava-se realidade. Mais uma vez se confirmou o provérbio: "Devagar se vai ao longe".
Claro que as minhas consultas "rápidas" nos arquivos da TASS apenas me deram uma ideia muito geral de Protugal e dos seus problemas da altura. O poder de Salazar, que vigorou nesse país durante quase metade do século XX, tinha como objectivo - segundo numerosas fontes ocidentais sobre Portugal antes da Revolução de Abril - transformar o país "numa casa branca e luminosa, construída entre um belo jardim, numa casa onde a vida é pacífica, feliz e digna".
E, realmente, quando me vi em Portugal, muitas das suas belezas naturais, o seu povo bondoso e amável faziam lembrar frequentemente esses quadros. Todavia, como tive oportunidade de constatar, as pessoas simples que viviam nesse "belo jardim não sentiam paz e alegria na sua vida real . O seu quotidiano era completamente diferente dos quadros propagandísticos sobre a "casa branca" construída para eles pelo "amado" pai da nação Salazar e sobre o que eu tinha lido muito durante os dois ou três dias que passei na biblioteca da TASS em Moscovo.
... O culto de Fátima, oficializado em 1946 pelo Papa Pio XII, e por isso chamado o "Papa de Fátima", não só substituiu a Salazar a necessidade de ter de ser ele próprio a "magnetizar" as multidões, mas também desempenhou um papel importantíssimo enquanto forma eficaz e massiva de propaganda governamental anticomunista. Como afirmavam insistentemente os propagandistas salazaristas, a Virgem de Fátima teria dito: "Todas as desgraças e tristezas na Terra partem da Rússia Vermelha, temam-na mais do que as chamas do Inferno, não deixeis entrar na vossa alma o satanás comunista..." E não deixavam. Durante cinquenta e sete anos...
Muitos cidadãos locais, como pude mais tarde constar durante o meu trabalho em Portugal, olhavam para a União Soviética dessa forma. Semelhantes disposições da população do interior português, a nossa atitude, soviética, bastante contida em relação à Revolução do 25 de Abril e à possível transformação em "revolução popular-democrática" ou mesmo "socialista" foram a causa de Portugal ter enveredado pela "via neocapitalista" da Europa unida.
(Próximo capítulo: O primeiro contacto indirecto)

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