"O nosso homem em Lisboa" de Eduard Kovaliov, agente do KGB soviético
FINALMENTE EM LISBOA (capítulo III)
Em Lisboa, fomos realmente recebidos como os dois primeiros jornalistas soviéticos no Portugal revolucionário. Luzes de flashes, exclamações de alegria. Com pouco à vontade, perguntámos às pessoas que nos esperavam: "Onde está o nosso colega Vadim Poliakovski?". Ele, no mínimo, deveria ter ficado registado nos serviços de emigração do aeroporto. Mas nem sequer havia tastos do "ousado Vadim", tinha-se sumido.
No dia seguinte, os jornais da capital publicaram fotografias da recepção dos "primeiros jornalistas soviéticos" no Aeroporto da Portela. No fim do dia, desvendou-se também o "mistério de Poliakovski": uma forte tempestade, que desabou sobre o aeroporto de Lisboa algumas horas antes da nossa chegada, impediu a aterragem do avião onde ele vinha, que foi desviado para Faro. Os passageiros foram enviados de comboio para a capital e chegaram aí apenas na manhã seguinte. Por isso nós, sem desejarmos tal coisa, apenas por um capricho cego da natureza, mais exactamente, devido a uma tempestade de Maio, ultrapassámos Vadim Poliakovski na nossa corrida jornalística. Todavia, juntámo-nos felizmente todos um dia depois na hospitaleira terra de Lisboa.
Quero recordar aqui um episódio curioso que aconteceu na primeira tarde da minha permanência em solo português. Claro que eu, enquanto um dos primeiros correspondentes soviéticos no novo Portugal, pretendia enviar informação o mais rapidamente possível de Lisboa. Por isso, depois de nos instalarmos no Hotel "Embaixador", eu e Vladimir Kuznetsov concentrámos a nossa atenção num cidadão que passeava calmamente na Avenida da Liberdade e dirigimo-nos a ele para conversar. Então, o meu português ainda não era lá muito bom, mas, em todo o caso, conseguíamos explicar-nos com o novo conhecido. De súbito, ele atrapalhou-se, mas, para grande alegria minha, passou inesperadamente a falar espanhol. "O Sr. sabe espanhol?" - perguntei-lhe alegremente, prevendo que o nosso diálogo se tornaria mais fácil. "Claro que sim" - respondeu ele. "Sou um jornalista cubano da "Prensa Latina". "Oh, companero!" - exclamei eu. "Que alegria é encontrar ocasionalmente um cubano em Lisboa!". Tratava-se de um colega cubano que vieram por esses dias a Portugal pelo mesmo motivo que o nosso: estudar de perto a Revolução de Abril, o povo português e os seus novos heróis.
Assim terminou mais ou menos bem o nosso primeiro encontro numa rua de Lisboa. É verdade que este não teve consequências no desenvolvimento das boas relações com os amigos cubanos em Lisboa, mas, nos primeiros tempos, ajudou-nos a entrar em contacto directo com a Embaixada de Cuba em Portugal, o que nos deu grande alegria. Constatei que eu e Fernando Astraia, Encarregado de Negócios, tínhamos conhecidos comuns em Cuba, o que tornou imediatamente cordial e amiga a atmosfera da nossa permanência em Lisboa. Durante os anos revolucionários seguintes, esses contactos foram-nos muito úteis.
Todavia, consegui enviar em boa hora o primeiro serviço da TASS a partir da Lisboa revolucionária: era dedicado à tomada de posse do presidente português António Spínola, dirigente da Junta de Salvação Nacional, órgão formado por representantes das Forças Armadas de Portugal.
Quando eu, em Moscovo, li as primeiras notícias das agências internacionais de informação, vindas de Portugal, fiquei um pouco incomodado com o nome do órgão supremo da revolução portuguesa, porque "junta", na União Soviética, tinha um sentido pouco agradável, retrógrado e reaccionário. Essa palavra fazia lembrar "gorilas", "militaristas latino-americanos", "golpe militar". Resumindo, era uma palavra completamente inaceitável para a "consciência revolucionária" soviética.
O emprego na informação de um dado termo constituia um problema de como apresentar a revolução portuguesa à opinião pública soviética: ou como algo progressista, ou como um simples golpe militar, que nada diferia de dezenas de outros que, segundo a comum mentalidade soviética, "nada traziam ao povo além do jugo capitalista com novo aspecto".
Sabia que semelhante ponto de vista gozava de apoio nos "círculos dirigentes soviéticos", que, principalmente, simpatizavam com os movimentos de libertação nacional africanos, que, há já vários anos, lutavam pela independência dos seus países em relação à metrópole portuguesa.
Quanto a mim, tendo sido educado no papel político revolucionário e progressista dos militares latino-americanos, não duvidava que era preciso, no texto russo, substituir a palavra "junta" por outra que não provocasse desconforto. Considerei que a melhor alternativa seria a palavra "soviete" (conselho), que adulava os ouvidos dos soviéticos e, principalmente, dos seus dirigentes.
E que grande alegria senti quando recebi, algumas semanas depois, recebi jornais soviéticos e li no "Pravda" o meu primeiro serviço para a TASS, onde figurava o "Soviete de Salvação Nacional de Portugal". A minha palavra foi reconhecida e, depois, deu um grande contributo para que a imagem da revolução portuguesa fosse bem recebida na União Soviética.
Nos primeiros dias, tive a oportunidade de me encontrar com Álvaro Cunhal, então Secretário-Geral do Partido Comunista Português, político muito popular que, nesses dias de Maio, fora nomeado vice- primeiro-ministro do governo revolucionário. Para mim, educado nas tradições soviéticas, esse homem era um herói nacional, símbolo da resistência antifascista, numa palavra, um homem lenda. E quando me encontrei com ele, não fiquei desiludido. O seu porte nobre obrigava a assimilar as suas palavras como uma boa-nova, como uma verdade em última instância e, só depois de alguns anos, comecei a olhar para o dirigente do PCP de forma mais crítica, embora isso não fosse tanto o resultado dos seus actos e comportamento quanto a consequência do comportamento dos seus camaradas mais próximos, as suas atitudes face aos camaradas soviéticos.
Por fim, compreendi que esse homem, com um passado indubitavelmente heróico, comunista, como se costumava dizer na URSS, de tempero estalinista, era, na realidade, um homem com os seus erros e fraquezas, que ele tudo fazia para não os revelar. Ele, enquanto político educado num luta cruel, nos anos do estalinismo, não sabia o que eram dúvidas ou pesos de consciência. Não tinha nem podia ter nada mais importante do que o partido dos comunistas. Semelhante educação e alto cargo levavam-no a tomar sozinho decisões que para ele eram infalíveis. A convicção da sua infalibilidade pessoal tornavam-no frequentemente vaidoso, teimoso. Mas possuia, então, um extraordinário sentido de realismo político, o que dava às acções do PCP força e eficácia.
Com isto não quero dizer que os camaradas de Cunhal ou ele próprio tivessem atitudes de inimizade para connnosco. Pelo contrário, agiam com toda a amizade, mas, ao mesmo tempo, mostravam-nos que não faziam intenções de obedecer cegamente às nossas ordens ou à linha de comportamento por nós definida. Mas mudemos de assunto.
Recordo que, quando da minha primeira entrevista com Álvaro Cunhal, ele foi extremamente simpático comigo e penso que respondeu sinceramente a todas as minhas perguntas. Penso que ele inha perfeita consciência que um jornalista da TASS era um homem de confiança da direcção soviética que, como era compreensível, estava interessada no verdadeiro estado das coisas em Portugal. Entendíamo-nos muito bem: durante a conversa, quando abordei um problema delicado, eu escrevi a pergunta numa folha de papel e, nessa mesma folha, ele deu-me a resposta com uma letra caligráfica. Compreendi que não se excluia a possibilidade de o gabinete do vice-primeiro-ministro estar sob escuta. O conteúdo da entrevista satisfez-me completamente. Parte dela, onde se abordava a situação política no país, transmiti por telefone para Paris, de onde os nossos rapazes da TASS enviaram imediatamente para Moscovo, onde foi publicada.
Nos primeiros dias, a ligação através de Paris era fundamental: ficava-me bem caro telefonar directamente de Lisboa para Moscovo e daqui ainda não se podia telefonar para a capital portuguesa, porque, na URSS, ainda não tinham sido definidas os preços das chamadas telefónicas para Portugal. Isso foi feito algumas semanas depois. A partir desse acontecimento importante para mim, passava horas a fio ao telefone para enviar as últimas notícias portuguesas para a sede da TASS. Zamiatin estava satisfeito comigo, o que não se pode dizer das secretárias da TASS. Quando, no ano seguinte, fui passar as férias a Moscovo, claro que chegaram até mim opiniões corrosivas sobre a quantidade da informação por mim enviada: "As nossas mãos quase secaram ao escrever as suas infinitas divagações. E como estará a língua dele, não secou?". Mas claro que, durante a minha primeira viagem de serviço, o meu trabalho de cobertura enérgico e activo ajudava-me a desviar os alheios olhos curiosos da outra minha actividade, não completamente legal.
As minhas primeiras semanas em Lisboa apenas afirmaram em mim o sentimento de simpatia para com os portugueses. Na realidade, durante a minha estadia em Portugal, passei a amar este povo bondoso, um tanto desordenado, mas sincero e aberto, amigo, paciente e forte, embora um pouco ingénuo. Muito parecido aos russos. Isso reduzia a minha solidão, porque os meus chefes de Moscovo apenas decidiram enviar a minha esposa para Lisboa meio ano depois, só em Dezembro de 1974.
A propósito, mais tarde, os meus amigoe e conhecidos portugueses falaram-me várias vezes das semelhanças dos nossos povos, dos seus destinos históricos. Um deles, o general Mário Firmino Miguel, na altura Ministro da Defesa e, depois da minha partida, chefe do Estado Maior das Forças Armadas de Portugal, falou-me uma vez de um historiador português que, no século passado , se dedicava aos problemas da origem da nação portuguesa, chegou à conclusão ousada de que os antepassados remotos dos portugueses tinham chegado à Península Ibérica vindos do extremo oriente da Europa, das estepes sarmatas, entre os rios Don e Dniepre, tinham raízes comuns com as tribos proto-eslavas. Este ramo primeiro dos proto-eslavos avançou para a Europa durante as invasões bárbaras, porque as tribos vizinhas, mais agressivas, empurravam os portugueses cada vez mais para o Ocidente, até que eles se viram no canto noroeste da Península Ibérica, no local da actual Galiza espanhola ou um pouco mais a Sul. Mais tarde, os portugueses, já como nação, conquistaram aos mouros todo o extremo ocidental da península. Não poso dizer com exactidão se se trata de um belo conto ou de uma história verdadeira... Não consegui ler o livro desse historiador português, não tive tempo para isso...
Mas era agradável ouvir falar dos meus segundos e terceiros primos no extremo do Universo e, ao pensar nesta milagrosa transformação dos nossos parentes num dos povos latinos, procurava sempre os traços comuns entre os russos e os portugueses simples, detectando-os frequentemente. E no aspecto exterior e nalguns traços nacionais.
No respeitante ao aspecto externo, os camponeses do Alentejo são surpreendentemente semelhantes aos nossos: barrete, colete, calças dentro das botas - tudo faz lembrar a imagem do nosso homem rural da província do Sul da Rússia: de Voronej a Rostov-no-Don. Os "mujikes" portugueses reúnem-se normalmente na tasquinha local: beberricando um excelente vinho tinto, discutem, durante horas a fio, problemas locais ou nacionais. E as "babuchkas" no Norte de Portugal, com as suas saias largas e compridas, invariavelmente com lenços negros ou escuros na cabeça, tementes a Deus... São as nossas beatas russas!
Recordo como, certa vez, ia de carro numa estrada próxima de Braga. Numa das paragens, estavam duas ou três velhotas, que tinham perdido o autocarro acabado de passar. Estavam desorientadas.
"Senhoras - dirigi-me eu a elas - posso ajudá-las e levá-las a algum lugar?". "Claro que sim, ficaríamos muito gratas. O nosso autocarro já passou e pudemos chegar tarde..."
Da conversa vim a saber que elas se apressavam para a missa, no templo da aldeia vizinha. A opinião das velhotas sobre os acontecimentos recentes em Portugal e sobre a longínqua União Soviética fazia lembrar muito a "propaganda pró-Fatima", com a qual entrei em contacto na biblioteca da TASS em Moscovo. Elas tentavam-me convencer que, na longínqua Rússia, os comunistas "obrigam todos, sem excepção, a dormir debaixo do mesmo cobertor", que "as mulheres são comuns", que "as crianças são imeditamente tiradas aos pais ", etc.
A propósito, despedimo-nos da forma mais cordial: as avós não se cansavam de agradecer ao "anticristo soviético" que lhes dera uma boleia até ao templo de Cristo...
No dia seguinte, os jornais da capital publicaram fotografias da recepção dos "primeiros jornalistas soviéticos" no Aeroporto da Portela. No fim do dia, desvendou-se também o "mistério de Poliakovski": uma forte tempestade, que desabou sobre o aeroporto de Lisboa algumas horas antes da nossa chegada, impediu a aterragem do avião onde ele vinha, que foi desviado para Faro. Os passageiros foram enviados de comboio para a capital e chegaram aí apenas na manhã seguinte. Por isso nós, sem desejarmos tal coisa, apenas por um capricho cego da natureza, mais exactamente, devido a uma tempestade de Maio, ultrapassámos Vadim Poliakovski na nossa corrida jornalística. Todavia, juntámo-nos felizmente todos um dia depois na hospitaleira terra de Lisboa.
Quero recordar aqui um episódio curioso que aconteceu na primeira tarde da minha permanência em solo português. Claro que eu, enquanto um dos primeiros correspondentes soviéticos no novo Portugal, pretendia enviar informação o mais rapidamente possível de Lisboa. Por isso, depois de nos instalarmos no Hotel "Embaixador", eu e Vladimir Kuznetsov concentrámos a nossa atenção num cidadão que passeava calmamente na Avenida da Liberdade e dirigimo-nos a ele para conversar. Então, o meu português ainda não era lá muito bom, mas, em todo o caso, conseguíamos explicar-nos com o novo conhecido. De súbito, ele atrapalhou-se, mas, para grande alegria minha, passou inesperadamente a falar espanhol. "O Sr. sabe espanhol?" - perguntei-lhe alegremente, prevendo que o nosso diálogo se tornaria mais fácil. "Claro que sim" - respondeu ele. "Sou um jornalista cubano da "Prensa Latina". "Oh, companero!" - exclamei eu. "Que alegria é encontrar ocasionalmente um cubano em Lisboa!". Tratava-se de um colega cubano que vieram por esses dias a Portugal pelo mesmo motivo que o nosso: estudar de perto a Revolução de Abril, o povo português e os seus novos heróis.
Assim terminou mais ou menos bem o nosso primeiro encontro numa rua de Lisboa. É verdade que este não teve consequências no desenvolvimento das boas relações com os amigos cubanos em Lisboa, mas, nos primeiros tempos, ajudou-nos a entrar em contacto directo com a Embaixada de Cuba em Portugal, o que nos deu grande alegria. Constatei que eu e Fernando Astraia, Encarregado de Negócios, tínhamos conhecidos comuns em Cuba, o que tornou imediatamente cordial e amiga a atmosfera da nossa permanência em Lisboa. Durante os anos revolucionários seguintes, esses contactos foram-nos muito úteis.
Todavia, consegui enviar em boa hora o primeiro serviço da TASS a partir da Lisboa revolucionária: era dedicado à tomada de posse do presidente português António Spínola, dirigente da Junta de Salvação Nacional, órgão formado por representantes das Forças Armadas de Portugal.
Quando eu, em Moscovo, li as primeiras notícias das agências internacionais de informação, vindas de Portugal, fiquei um pouco incomodado com o nome do órgão supremo da revolução portuguesa, porque "junta", na União Soviética, tinha um sentido pouco agradável, retrógrado e reaccionário. Essa palavra fazia lembrar "gorilas", "militaristas latino-americanos", "golpe militar". Resumindo, era uma palavra completamente inaceitável para a "consciência revolucionária" soviética.
O emprego na informação de um dado termo constituia um problema de como apresentar a revolução portuguesa à opinião pública soviética: ou como algo progressista, ou como um simples golpe militar, que nada diferia de dezenas de outros que, segundo a comum mentalidade soviética, "nada traziam ao povo além do jugo capitalista com novo aspecto".
Sabia que semelhante ponto de vista gozava de apoio nos "círculos dirigentes soviéticos", que, principalmente, simpatizavam com os movimentos de libertação nacional africanos, que, há já vários anos, lutavam pela independência dos seus países em relação à metrópole portuguesa.
Quanto a mim, tendo sido educado no papel político revolucionário e progressista dos militares latino-americanos, não duvidava que era preciso, no texto russo, substituir a palavra "junta" por outra que não provocasse desconforto. Considerei que a melhor alternativa seria a palavra "soviete" (conselho), que adulava os ouvidos dos soviéticos e, principalmente, dos seus dirigentes.
E que grande alegria senti quando recebi, algumas semanas depois, recebi jornais soviéticos e li no "Pravda" o meu primeiro serviço para a TASS, onde figurava o "Soviete de Salvação Nacional de Portugal". A minha palavra foi reconhecida e, depois, deu um grande contributo para que a imagem da revolução portuguesa fosse bem recebida na União Soviética.
Nos primeiros dias, tive a oportunidade de me encontrar com Álvaro Cunhal, então Secretário-Geral do Partido Comunista Português, político muito popular que, nesses dias de Maio, fora nomeado vice- primeiro-ministro do governo revolucionário. Para mim, educado nas tradições soviéticas, esse homem era um herói nacional, símbolo da resistência antifascista, numa palavra, um homem lenda. E quando me encontrei com ele, não fiquei desiludido. O seu porte nobre obrigava a assimilar as suas palavras como uma boa-nova, como uma verdade em última instância e, só depois de alguns anos, comecei a olhar para o dirigente do PCP de forma mais crítica, embora isso não fosse tanto o resultado dos seus actos e comportamento quanto a consequência do comportamento dos seus camaradas mais próximos, as suas atitudes face aos camaradas soviéticos.
Por fim, compreendi que esse homem, com um passado indubitavelmente heróico, comunista, como se costumava dizer na URSS, de tempero estalinista, era, na realidade, um homem com os seus erros e fraquezas, que ele tudo fazia para não os revelar. Ele, enquanto político educado num luta cruel, nos anos do estalinismo, não sabia o que eram dúvidas ou pesos de consciência. Não tinha nem podia ter nada mais importante do que o partido dos comunistas. Semelhante educação e alto cargo levavam-no a tomar sozinho decisões que para ele eram infalíveis. A convicção da sua infalibilidade pessoal tornavam-no frequentemente vaidoso, teimoso. Mas possuia, então, um extraordinário sentido de realismo político, o que dava às acções do PCP força e eficácia.
Com isto não quero dizer que os camaradas de Cunhal ou ele próprio tivessem atitudes de inimizade para connnosco. Pelo contrário, agiam com toda a amizade, mas, ao mesmo tempo, mostravam-nos que não faziam intenções de obedecer cegamente às nossas ordens ou à linha de comportamento por nós definida. Mas mudemos de assunto.
Recordo que, quando da minha primeira entrevista com Álvaro Cunhal, ele foi extremamente simpático comigo e penso que respondeu sinceramente a todas as minhas perguntas. Penso que ele inha perfeita consciência que um jornalista da TASS era um homem de confiança da direcção soviética que, como era compreensível, estava interessada no verdadeiro estado das coisas em Portugal. Entendíamo-nos muito bem: durante a conversa, quando abordei um problema delicado, eu escrevi a pergunta numa folha de papel e, nessa mesma folha, ele deu-me a resposta com uma letra caligráfica. Compreendi que não se excluia a possibilidade de o gabinete do vice-primeiro-ministro estar sob escuta. O conteúdo da entrevista satisfez-me completamente. Parte dela, onde se abordava a situação política no país, transmiti por telefone para Paris, de onde os nossos rapazes da TASS enviaram imediatamente para Moscovo, onde foi publicada.
Nos primeiros dias, a ligação através de Paris era fundamental: ficava-me bem caro telefonar directamente de Lisboa para Moscovo e daqui ainda não se podia telefonar para a capital portuguesa, porque, na URSS, ainda não tinham sido definidas os preços das chamadas telefónicas para Portugal. Isso foi feito algumas semanas depois. A partir desse acontecimento importante para mim, passava horas a fio ao telefone para enviar as últimas notícias portuguesas para a sede da TASS. Zamiatin estava satisfeito comigo, o que não se pode dizer das secretárias da TASS. Quando, no ano seguinte, fui passar as férias a Moscovo, claro que chegaram até mim opiniões corrosivas sobre a quantidade da informação por mim enviada: "As nossas mãos quase secaram ao escrever as suas infinitas divagações. E como estará a língua dele, não secou?". Mas claro que, durante a minha primeira viagem de serviço, o meu trabalho de cobertura enérgico e activo ajudava-me a desviar os alheios olhos curiosos da outra minha actividade, não completamente legal.
As minhas primeiras semanas em Lisboa apenas afirmaram em mim o sentimento de simpatia para com os portugueses. Na realidade, durante a minha estadia em Portugal, passei a amar este povo bondoso, um tanto desordenado, mas sincero e aberto, amigo, paciente e forte, embora um pouco ingénuo. Muito parecido aos russos. Isso reduzia a minha solidão, porque os meus chefes de Moscovo apenas decidiram enviar a minha esposa para Lisboa meio ano depois, só em Dezembro de 1974.
A propósito, mais tarde, os meus amigoe e conhecidos portugueses falaram-me várias vezes das semelhanças dos nossos povos, dos seus destinos históricos. Um deles, o general Mário Firmino Miguel, na altura Ministro da Defesa e, depois da minha partida, chefe do Estado Maior das Forças Armadas de Portugal, falou-me uma vez de um historiador português que, no século passado , se dedicava aos problemas da origem da nação portuguesa, chegou à conclusão ousada de que os antepassados remotos dos portugueses tinham chegado à Península Ibérica vindos do extremo oriente da Europa, das estepes sarmatas, entre os rios Don e Dniepre, tinham raízes comuns com as tribos proto-eslavas. Este ramo primeiro dos proto-eslavos avançou para a Europa durante as invasões bárbaras, porque as tribos vizinhas, mais agressivas, empurravam os portugueses cada vez mais para o Ocidente, até que eles se viram no canto noroeste da Península Ibérica, no local da actual Galiza espanhola ou um pouco mais a Sul. Mais tarde, os portugueses, já como nação, conquistaram aos mouros todo o extremo ocidental da península. Não poso dizer com exactidão se se trata de um belo conto ou de uma história verdadeira... Não consegui ler o livro desse historiador português, não tive tempo para isso...
Mas era agradável ouvir falar dos meus segundos e terceiros primos no extremo do Universo e, ao pensar nesta milagrosa transformação dos nossos parentes num dos povos latinos, procurava sempre os traços comuns entre os russos e os portugueses simples, detectando-os frequentemente. E no aspecto exterior e nalguns traços nacionais.
No respeitante ao aspecto externo, os camponeses do Alentejo são surpreendentemente semelhantes aos nossos: barrete, colete, calças dentro das botas - tudo faz lembrar a imagem do nosso homem rural da província do Sul da Rússia: de Voronej a Rostov-no-Don. Os "mujikes" portugueses reúnem-se normalmente na tasquinha local: beberricando um excelente vinho tinto, discutem, durante horas a fio, problemas locais ou nacionais. E as "babuchkas" no Norte de Portugal, com as suas saias largas e compridas, invariavelmente com lenços negros ou escuros na cabeça, tementes a Deus... São as nossas beatas russas!
Recordo como, certa vez, ia de carro numa estrada próxima de Braga. Numa das paragens, estavam duas ou três velhotas, que tinham perdido o autocarro acabado de passar. Estavam desorientadas.
"Senhoras - dirigi-me eu a elas - posso ajudá-las e levá-las a algum lugar?". "Claro que sim, ficaríamos muito gratas. O nosso autocarro já passou e pudemos chegar tarde..."
Da conversa vim a saber que elas se apressavam para a missa, no templo da aldeia vizinha. A opinião das velhotas sobre os acontecimentos recentes em Portugal e sobre a longínqua União Soviética fazia lembrar muito a "propaganda pró-Fatima", com a qual entrei em contacto na biblioteca da TASS em Moscovo. Elas tentavam-me convencer que, na longínqua Rússia, os comunistas "obrigam todos, sem excepção, a dormir debaixo do mesmo cobertor", que "as mulheres são comuns", que "as crianças são imeditamente tiradas aos pais ", etc.
A propósito, despedimo-nos da forma mais cordial: as avós não se cansavam de agradecer ao "anticristo soviético" que lhes dera uma boleia até ao templo de Cristo...
2 comentários:
llegué aquí simplemente porque vi el nombre de Vadim. Es que hoy me he enterado, con mucha pena, que el querido amigo Vadim Poliakovsky murió en febrero de este año.
Es que yo lo conocía a él.
Saludos,
Meu grande Amigo Vadim foi meu companheiro nos tempos da decadência final do regime. Ele sabia muito mais do que dizia. Posso garantir
Obertal Obertalovitch
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