segunda-feira, junho 07, 2010

Blog do leitor (Arte e sociedade civil: Uma Hora e Dezoito Minutos)

Texto enviado pelo leitor António Campos:

"Notícias animadoras chegam-nos de Moscovo: a companhia de teatro Teatr.Doc decidiu encenar uma peça, intitulada "Uma Hora e Dezoito Minutos", retratando o calvário e a morte de Sergei Magnitsky, advogado da empresa de investimentos Hermitage Capital, preso e acusado de conivência em fraude e evasão fiscal enquanto lutava para desmascarar um dos piores casos de corrupção envolvendo altos funcionários governamentais. Estes terão defraudado o estado em cerca de 230 milhões de dólares através de um esquema de "raiderstvo", seguido de falsificação de documentos contabilísticos que levou ao maior reembolso fiscal de que há memória na Rússia, que foi aprovado em dois dias pelas autoridades.

O título da peça, "Uma Hora e Dezoito Minutos", refere-se ao tempo que decorreu entre o colapso de Magnitsky com pancreatite aguda e a sua morte. Como é do domínio público, em vez de o tentar ressuscitar, a médica que o "assistiu" limitou-se a chamar os guardas para o prender num colete de forças e abandonou-o de seguida. Antes disso, os tribunais terão recusado todos os pedidos insistentes de Magnitsky para receber tratamento médico. Quando Magnitsky se queixou que o estavam a matar, a médica diagnosticou-lhe "doença mental" e chamou um psiquiatra.

Mikhail Ugarov, director da companhia teatral afirmou aos jornalistas: "procurámos fazer alguma coisa entre activismo e teatro (...) não podemos continuar para sempre a encenar produções do "Cerejal". O teatro não é só lazer, devendo também abordar o que acontece na sociedade". A peça foi concebida para envolver o público, que faz o papel de júri, ao qual os diversos intervenientes no processo apresentam o seu caso. Nas palavras de Ugarov, "eles organizam os seus julgamentos contra as pessoas, mas agora é a nossa vez de os julgar".

Segundo o Times, a peça baseia-se nas transcrições oficiais, nos relatórios de organismos independentes e nos diários que o próprio Magnitsky escreveu enquanto esteve preso. Até agora, o grupo não recebeu quaisquer "telefonemas de aviso" para encerrar a produção, nem visitas dos bombeiros procurando pretextos para interromper a exibição.
Para além de alguns funcionários prisionais despedidos, o caso Magnitsky não desencadeou ainda qualquer processo-crime contra os responsáveis pela sua morte. O relatório de Valery Borshchev que analisou as circunstâncias do caso foi, até agora, ignorado pelas autoridades e o governo tem vindo visivelmente a arrastar os pés nesta investigação. Assim, ao levar o caso a público através de uma peça de teatro baseada em factos reais, os encenadores esperam conseguir um grau de discussão pública sem precedentes sobre o estado do sistema judicial russo e a corrupção estatal.

http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/europe/article7145173.ece

2 comentários:

Cristina disse...

Se a peça continuar em cena será um bom sinal de que a sociedade civil russa, embora incipiente, tem vindo a despertar. Refira-se que os artistas russos, os intelectuais em geral sempre foram muito activos nas questões cívicas, políticas, sendo respeitados e ouvidos pela população, que tem grande amor à arte. Muitas vezes o teatro, a literatura, o cinema na Rússia foram formas de comunicar coisas que não podiam ser comunicadas e debatidas de outra forma.
Não tive muita oportunidade de ver teatro da Rússia mas o pouco que vi mostrou uma arte vigorosa, criativa e de altíssima qualidade.
Parabéns, António! (eu sei que não nos quiseste falar só de arte, mas também das arbitrariedades. De facto, para quem morreu a defender as suas opiniões, a arte já não faz falta!)

António disse...

Olá Cristina! De facto, Magnitsky foi um herói. Tudo o que as autoridades queriam era que ele testemunhasse contra a Hermitage e contra a Firestone Duncan, a sociedade de advogados para a qual trabalhava. Ate ao final, fiel aos seus princípios, nunca o fez. E morreu por isso.

É extremamente triste que, ao invés de lhes dar o mérito devido, o estado russo seja cúmplice no assassínio de pessoas que demonstram qualidades que seriam preciosas para a evolução do país.

Segundo o que li, a audiência da peça em Moscovo tem sido composta fundamentalmente por intelectuais, que já não precisam de ser "convertidos". Mas espera-se que a futura tournée sirva para levar a mensagem muito mais longe. Os encenadores planeiam também apresentar a peça a públicos prisionais, o que seria extremamente interessante.

António Campos