Não, caros leitores, não quero escrever sobre uma viagem a Jerusalém, cidade disputada por Israel e a Palestina, mas do Mosteiro de Nova Jerusalém, situado a pouco mais de cem quilómetros a norte de Moscovo.
Começado a construir em meados do séc. XVII pelo Patriarca Ortodoxo Nikon, este mosteiro tem cópias de monumentos de Jerusalém como o Santo Sepulcro. Mas o mais interesante é ver uma extraordinária combinação do barroco europeu com a arte sacra ortodoxa, vísivel principalmente no imponente Templo da Ressureição.
Infelizmente, esta obra-prima encontra-se parcialmente em ruínas, não só devido à política anti-religiosa comunista na era soviética, mas principalmente por causa da barbárie nazi, pois as tropas alemãs tentaram arrasá-lo à bomba durante a segunda guerra mundial.
O que resta, porém, permite ver a grandiosidade desse templo, tanto mais que estão a ser feitas obras de restauro, que devolverão a beleza inicial ao monumento.
Fui com cinco amigos e tudo corria às mil maravilhas até que ouvimos um sacerdote ortodoxo fazer um sermão a um grupo de peregrinos, que mais parecia um discurso num comício de nacionalistas russos. Ficamos a saber, entre outras coisas, que só a Rússia é santa...
Mas, depois da visita a uma fonte santa e um passeio pelo enorme parque, esquecemo-nos do sermão.
O seu eco ouviu-se quando regressavamos a Moscovo de comboio. Um russo, que trezandava que nem uma adega, decidiu conversar precisamente com o único português do grupo que não falava língua russa. Como o luso não reagia, o homem começou a levantar a voz, sentindo-se ofendido por não quererem conversar com ele. Só a intervenção (verbal e pacífica) dos portugueses russófonos fizeram-no abandonar a carruagem na próxima estação, mas, antes de abandonar, gritou alguns insultos anti-semitas na nossa direcção, mais precisamente, dirigindo-se a mim, talvez impressionado pelas minhas longas barbas brancas.
Mas as coisas não se ficaram por aqui. Na estação em que o alcoólico saiu, entrou um casal idoso que se sentou num dos extremos da carruagem, que ia praticamente vazia. O português não-russófono, grande amante de fotografia, estava de pé para fotograr paisagens, enquanto trocava umas palavras com outros lusos na língua de Camões.
A senhora levantou-se e exigiu, primeiro, que ele se sentasse, e, segundo, que falasse russo, ao que ele respondeu : “Не понимаю по-русский” (Não compreendo russo). Melhor seria se tivesse ficado calado, pois ela parece ter ficada convencida de que o português estava a gozar com ela.
Quando um de nós explicou à senhora que ele não pretendia sentar-se, nem nós tencionavamos falar entre nós em russo, ela contra-atacou: “Se querem viver aqui falem russo”.
Falhadas todas as tentativas de explicar à senhora que respeitamos e falamos russo (nesse momento, veio-me à cabeça o verso do poeta Maiakovski: “Eu apredenria russo só porque nela falou Lénine!”), ouvimos da boca da anciã: “é por isso que a Rússia continua de joelhos!”.
A propaganda oficial parece dar resultado, embora de forma retardada, pois os dirigentes russos afirmam que “a Rússia já está a levantar-se!” .
Terminada a conversa, lembrei-me de que, na semana passada, um deputado do Parlamento Municipal de Moscovo decidiu pôr à votação um “código de conduta dos estrangeiros” na capital russa. Segundo esse documento, os estrangeiros devem falar russo entre si e não vestir “trajes nacionais”!!!!
Um dos críticos deste documento original chamou a atenção para o facto de os estrangeiros (na sua esmagadora, imigrantes da Ásia Central e Transcaucásia que procuram emprego emn Moscovo) vestirem fatos de treino, peça de roupa que, pela popularidade que goza entre os homens russos, pode ser considerada “traje nacional russo”.
No Forum Económico Internacional de São Petersburgo, o Presidente russo, Dmitri Medvedev declarou: “A Rússia deve tornar-se um país atraente, para onde queiram ir pessoas de todo o mundo à procura do seu sonho especial, de melhores possibilidades para o êxito e para a auto-realização que a Rússia pode dar a todos os que estão prontos a aceitar este desafio e a amar a Rússia como o seu novo lar ou como segunda casa.
12 comentários:
Provincianismo bacoco!
É por isso que a Rússia tem de se abrir mais.
Se quiser ser uma potência mundial terá de se tornar muito mais cosmopolita.
Cumpts
Manuel Santos
JM
Situação muito familiar, que presenciei muitas vezes. O que sempre me aborrecia era de facto a mal dissimulada intolerância dos russos em relação aos estrangeiros. Naturalmente que entre vizinhos de longa data ou amigos isso não se verificava mas em situação anónima, nas ruas, quantas vezes pessoas de aparência não-eslava não eram humilhadas e convidadas abertamente a "voltarem para a sua terra". No fundo, a Rússia, sendo (ou tendo sido) um império, não compreende que a sua capital atrai as franjas desse império, que é natural os caucasianos ou naturais das ex-repúblicas da Ásia Central quererem viver e trabalhar em Moscovo. Ser imigrante não é fácil em lado nenhum mas na Rússia é especialmente difícil.
Não existe nada semelhante aos nossos CLAIs (centros locais de apoio ao imigrante, com mediadores, tradutores, assistentes sociais, técnicos de emprego, advogados gratuitos) e o que existe tem um componente fortemente policial.
Esse novo projecto-lei de obrigar os estrangeiros a falar russo entre si é de facto notável! Um verdadeiro hino à intolerância!
Rússia, quo vadis?
Caro Manuel Santos, perdoe-me a intromissão, mas explique-me lá se a sua conclusão deriva apenas de uma ingenuidade a roçar o infantil ou é algo ainda pior? Para atribuirmos estes comportamentos a "provincianismo bacoco", tal como se o episódio tivesse ocorrido fortuitamente num qualquer vilarejo das profundezas da Sibéria a meio-mundo da civilização, teríamos que ignorar o facto sobejamente conhecido de o ultranacionalismo e os comportamentos xenófobos serem tacitamente encorajados ao mais alto nível pelo estado russo, como parte da sua campanha de retorno à mitologia soviética do "império, ideologia, superpotência e orgulho nacional".
Estranhamente, apesar de o governo ter promulgado legislação destinada a combater o extremismo, esta aparentemente serve apenas para calar vozes críticas da administração, e não para reprimir a abundância de organizações extremistas e xenófobas, tais como o Grupo de Unidade Nacional, a União Nacional-Socialista e o Partido Nacional do Povo. Nem tão pouco para dispersar manifestações de neonazis com o mesmo empenho diligente que é usado para reprimir protestos de activistas democráticos.
Recentemente, um tribunal russo considerou que a frase "Rússia para os Russos" não fomenta ódios raciais, na sequência de uma investigação de um espancamento de um adolescente caucasiano que quase resultou na sua morte. A expressão teria sido usada profusamente pelos agressores. Dmitry Rogozin, conhecido pelos seus slogans panfletários do tipo "Vamos limpar o lixo", ou "Moscovo para os moscovitas" continua a ocupar cargos oficiais.
E já toda a gente se esqueceu do projecto de estimação de Surkov, o Komsomol putinista chamado Nashi? Estou tentado a chamar-lhe também "provincianismo bacoco", porque, ao final do dia, é o que aquilo é. Só que neste caso, em vez de termos apenas um casal de velhotes a ser provincianamente bacoco, temos um movimento de bases inteiro, a beneficiar do alto patrocínio do primeiro-ministro.
António Campos
A mentalidade dessa gente é de assustar até o mais renhido discípulo da klan.
Povo atrasado.
Sem duvida que só quem vive ou viveu em terras Russas é que pode compreender e constatar a verdadeira incoerência , estupidez e burrice de alguns adormecidos e saudosistas de um regime, que lhes entorpeceu o cérebro .
Analisando a situação actual da Federação Russa a frio...chega-se facilmente a conclusão que as coisas não mudaram muito , nem em relação ao passado recente , nem ao passado mais distante...
Os Czares são outros , mas continuam e proliferam na sua pilhagem desmedida e "des"controlada !
O povo mais sofrido continua pobre,ingénuo,infantil,medroso e cada vez mais confuso(encontro-o por todo o lado , quer nas grandes cidades quer nas aldeias mais esquecidas)...pois dá sempre jeito à "maquina" instaurar um certo "terror ao jeito matriarcal" para continuar o seu projecto.
Não escrevo estas linhas tendo como objectivo ferir susceptibilidades ou roçar o insulto.
Escrevo estas linhas com a tristeza de quem presenciou medos humilhações e desgraças de um povo que se quer nobre , culto e educado!
Finalizo estas linhas deixando o desabafo e a preocupação de ver um povo cada vez mais abandonado e perdido , susceptível aos fomentadores de ódios raciais , uma juventude desprovida de valores ético morais , uma sociedade cada vez mais fria ,individualista , anarquista e sobre tudo mais podre...
Um Abraço a todos os Russos e estrangeiros que merecem o meu respeito pelo seu altruísmo e coragem na odisseia difícil e por vezes inglória que é tornar uma sociedade melhor.
Anónimo das 15:55
Palavras muito lúcidas!
Gostei muito da sua perspectiva. De facto, os amigos melhores são aqueles que nos dizem onde erramos.Só assim podemos vir a ser melhores.
António Campos
Acho que o meu comentário é simplicíssimo e claríssimo para ser entendido.
O que estaria à espera que eu afirmasse?
Cumpts
Manuel Santos
Caro Milhazes:
infelizmente, nada do que relata é novo. Também eu já tinha sentido essa animosidade durante a visita que fiz a S.Petersburgo e Moscovo em 2006.
Embora compreenda a sua indignação, é de evitar falar em língua estrangeira quando há pessoas que não a compreendam. Sobretudo quando não é em inglês, para a qual as hipóteses de compreensão são maiores. A pessoa pode pensar que estão a falar mal dela e depois é a reacção que descreveu.
Isto é valido tanto na Rússia, como na França ou nos EUA. Nem todos os povos são tão abertos como o nosso.
Cumprimentos.
Caro Nuno B
Por amor de Deus, em toda a Europa (e Américas e outros continentes) se fala nas ruas as mais diversas línguas e ninguém se indigna com isso. Não faltava mais nada ter que mudar a língua que se fala só porque os transeuntes não gostam...
Essa sugestão que deu é justificada só em privado, quando se juntam pessoas que não falam o mesmo idioma e, por uma questão de educação, escolhe-se um que seja entendido por todos...
Agora na rua, é impensável.
Mesmo assim, gostava de referir aqui um aspecto que passou despercebido. Como é hábito quando se juntam conterrâneos portugueses no estrangeiro, a conversa costuma animar e falamos todos um pouco mais alto. Ora na Rússia, falar alto em locais públicos, nomeadamente nos transportes, é muito mal visto, sinal de falta de educação e até de desafio. Na Rússia, geralmente só quem costuma falar alto nos transportes são os alcoólicos ou os bandos de jovens sub-urbanos.
Uma conversa em alto tom de voz em local público é vista como falta de respeito, como atrevimento e, normalmente, provoca uma reacção negativa. Recordo-me dos olhares de reprovação que os grupos de turistas italianos suscitavam nos passageiros russos do metro sempre que aqueles, em alegre galhofa, irrompiam na carruagem.
Provavelmente, não foi o caso dos amigos do JM, mas este não é um aspecto a descurar.
Cara Cristina,
tem lógica o seu comentario, o que não tem logica é a reacção das pessoas quando confrontadas com varios idiomas.
O "no sense" é tão grande que chega ao ponto de algumas pessoas colocarem problemas a menos que a língua falada seja o inglês (latim da globalização) ou o francês (associado a alguma nobreza).
Nestes casos, essas pessoas não se manifestam para não demonstrarem a sua ignorância nessas línguas (como se tivessem de falar alguma delas para n serem considerados estúpidos).
Desculpe, mas esta à a minha experiência ao cabo de 8 anos a viver no estrangeiro, entre a França, EUA e Rússia.
Cumprimentos.
Cara Cristina
Relativamente aos outros países não sei, mas no caso da França o Nuno B tem alguma razão, em particular nas classes sociais mais elevadas.
E neste caso não é falta de cosmopolitismo mas é simplesmente o tradicional chauvinismo francês que na minha opinião quando é a doer até vence os alemães.
Cumpts
Manuel Santos
"Nem todos os povos são tão abertos como o nosso."
Os portugueses são abertos?
Não me faça rir, amigo.
Enviar um comentário