segunda-feira, outubro 07, 2013

O forte apoio da União Soviética ao PCP levou o líder histórico comunista a ter um tratamento de privilégio durante o exílio em Moscovo

Artigo publicado hoje no diário I sobre o meu novo livro "Cunhal, Brejnev e 25 de Abril"
 
 
 
Por Luís Rosa
publicado em 7 Out 2013 - 05:00
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Livro. Os privilégios de Álvaro Cunhal no exílio na União Soviética

"Quem paga, encomenda a música". É um provérbio russo que descreve na perfeição a relação do Partido Comunista Português (PCP) com o Partido Comunista da União Soviética (PCUS). A relação financeira existente entre os dois partidos, em que o "pai" soviético era o grande financiador da acção do partido liderado por Álvaro Cunhal explica boa parte da subserviência do PCP face ao PCUS.
O "seguidismo do PCP" foi total, como explica José Milhazes, na sua obra "Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril". Desde a expulsão do PCP da Internacional Comunista em 1938 por "fraccionismo" e "estado de provocação corrosiva" (tradução soviética para constantes lutas internas e infiltrações da política do Estado Novo) que os comunistas portugueses tentaram restabelecer as relações com a URSS - o que só veio a acontecer em 1947 com o ajuda do Partido Comunista da Jugoslávia. A partir de 1960, com a fuga de Álvaro Cunhal e de outros importantes dirigentes comunistas da cadeia de Peniche, as relações do PCP com o PCUS intensificaram-se de tal forma que deixaram de existir diferenças políticas entre os dois partidos.
A presença de Álvaro Cunhal em Moscovo facilitava muito essa relação extremamente próxima.
O próprio Cunhal e importantes dirigentes do PCP usufruíram de muitos privilégios financeiros e de bem-estar, fornecidos pelo regime soviético, que estavam fora do alcance da esmagadora maioria da população soviética. Segundo documentos do antigo arquivo do Comité Central (CC) do PCUS, o Secretariado deste órgão decidiu a 16 de Setembro de 1961, "a pedido do Comité Central do PCP, conceder as seguintes regalias a Álvaro Cunhal para que este passasse a viver confortavelmente em Moscovo: um apartamento de três assoalhadas e um apartamento de uma assoalhada para a sua secretária, ficando as despesas com os móveis dos apartamentos a cargo da Direcção dos Assuntos Correntes do CC do PCUS", cita Milhazes. Segundo o dissidente comunista Francisco Ferreira, mais conhecido por "Chico da Cuf", "Cunhal mobilou o seu apartamento recorrendo a um armazém especial (fechado ao público e aos outros exilados)", lê--se na obra de José Milhazes.
Cunhal recebia ainda mensalmente a quantia de 500 rublos (a sua secretária tinha direito a 150 rublos), o que, segundo Milhazes, equivalia, à época, a 833 dólares americanos, mais de três salários médios soviéticos. Em Dezembro de 1964, Cunhal passou a residir num apartamento de quatro assoalhadas, aumentando o fosso dos privilégios a que tinham direito os seus camaradas do PCP.
O líder do PCP tinha ainda direito a comer no "refeitório de alimentação dietética em condições vantajosas (ou seja, praticamente de graça)". Mais conhecido por Refeitório do Kremlin ou Refeitório da Corte do Kremlin, alimentava os dirigentes mais importantes da URSS e regia-se por padrões que nada tinham a ver com a alimentação regular do povo soviético. O actual deputado Alexei Mitrofanov, cuja família comia no refeitório, explicou a Milhazes o seu funcionamento: "os produtos aí servidos eram extraordinários de todos os pontos de vista. A sua particularidade consistia em que eram fabricados segundo tecnologias que não mudavam desde os anos 20. Não continham qualquer produto químico... O gado era rigorosamente controlado. Quando nascia uma vaca, sabia-se quem era o pai e a mãe, de que doenças padecia. Lembro-me do mel com um selo onde estava escrito quando e por quem foi engarrafado. Se acontecia algo, podiam encontrar o engarrafador Petrov, mesmo cinco anos depois."
Francisco Ferreira e outros críticos de Cunhal ligam o usufruto destes privilégios à subserviência do PCP face ao PCUS, mas José Milhazes não vai tão longe. "Consideramos redutor limitar a explicação de obediência do PCP ao PCUS à concessão de privilégios. Parece-nos mais plausível a ideia de que o seguidismo do PCP se devia ao facto de Álvaro Cunhal ver nessa opção a garantia de sobrevivência do PCP tal como ele o concebia", afirma.
A obediência do PCP, contudo, levou os soviéticos a investir milhões de dólares anuais nesse partido português, financiando, numa primeira fase, a oposição dos comunistas ao Estado Novo e, posteriormente, a liderança do PCP na revolução do 25 de Abril e a oposição dos comunistas aos governos do PS, PSD ou CDS até 1991 - ano em que a URSS acabou. Este interesse soviético estava obviamente ligado à luta que existia com os Estados Unidos pelo estatuto de única superpotência mundial, nomeadamente a ligação do PCP aos movimentos de liberação africanos.
Através do Fundo Internacional de Ajuda às Organizações Operárias de Esquerda, fundo de apoio à revolução mundial criado logo após a revolução de Outubro de 1917, a URSS financiava os partidos-irmãos. Esse fundo começou por ser financiado com o produto das vendas de obras de arte de museus russos como o Hermitage, de São Petersburgo, ou o Puskhin, de Moscovo. Curiosamente, conta Milhazes, Calouste Gulbenkian foi o primeiro e um dos principais compradores dessas obras, estando a maior parte das mesmas expostas na fundação do milionário arménio, em Lisboa.
O fundo criado pelos comunistas soviéticos financiou fortemente o PCP, particularmente após o 25 de Abril. Em 1969, recorda Milhazes, o PCP apenas recebeu 50 mil dólares, em 1981 foram entregues 700 mil dólares e um milhão de euros anuais entre 1987 e 1989. Em 1991, ano em que a URSS foi dissolvida, os comunistas portugueses ainda receberam um total de 700 mil dólares.
A mala diplomática José Milhazes, com base em documentação soviética, explica em pormenor como eram feitos esses pagamentos. "O documento sobre as quantias a enviar era analisado e assinado separadamente por cada um dos membros do órgão máximo do PCUS [Comité Central]. Depois, um funcionário da Secção Internacional do Comité Central do PCUS telefonava para o Banco Comércio Externo (Vneshekonombank) da URSS e as notas de dólares americanos eram trazidas para a Praça Velha, onde se situava a sede do PCUS, em Moscovo. Recebidas as quantias necessárias, telefonavam para a Primeira Secção Principal do KGB, que se dedicava à espionagem no estrangeiro, e os agentes recolhiam o dinheiro que faziam chegar a outros países através de canais ilegais. Pelos mesmos canais, os funcionários comunistas recebiam comprovativos assinados por funcionários responsáveis dos partidos-imãos", descreve o jornalista.
Octávio Pato, um dos dirigentes de maior destaque do PCP e primeiro candidato presidencial do partido após o 25 de Abril, "era o homem que recebia o dinheiro em Lisboa, transportado de Moscovo para a capital portuguesa por agentes do KGB, nomeadamente, em mala diplomática", lê-se.
Pato, pelo menos uma vez, distribuiu 25 mil dólares dos soviéticos pelo MDP/CDE - movimento satélite do PCP que era liderado por José Manuel Tengarrinha.
O PCP pedia igualmente dinheiro à URSS para financiar viagens de dirigentes de outros partidos a Moscovo ou a outros países da Cortina de Ferro com o objectivo de os seduzir e de lhes mostrar as virtudes da sociedade socialista. Mário Soares, secretário-geral do PS e um ex-comunista, foi um deles. Soares visitou Moscovo em Setembro de 1972 durante três semanas, tendo sido recebido pela União das Associações Soviéticas de Amizade e Cultura com os Países Estrangeiros.
O sector empresarial do PCP Com o objectivo de diversificar as suas fontes de financiamento, o PCP criou empresas ou solicitou a militantes que as criassem. Essas sociedades comerciais acabaram por ser outro importante veículo de transferência de meios financeiros da URSS para Portugal. As "empresas irmãs", assim eram tratadas as sociedades do PCP na URSS, exportavam para o mercado soviético "pasta de tomate, vinho do Porto , conservas de peixe, calçado e vestuário", escreve Milhazes. Em 1979, por exemplo, a URSS planificou comprar mercadorias em Portugal no valor de 150 milhões de rublos (689 milhões de escudos a preços de 1999), tendo as empresas do PCP ficado com 18% da quota de mercado.
Noutras ocasiões, o dinheiro soviético chegava ao PCP de forma mais directa, nomeadamente à área editorial. Em 1976, o Ministério do Comércio da URSS adquiriu 25 mil exemplares do álbum "25 Desenhos da Prisão de Álvaro Cunhal", aumentou a assinatura de 200 exemplares de cada edição do "Avante" e fornecimento grátis de papel para a publicação do jornal do PCP.
A operação Esta relação umbilical foi interrompida pela chegada ao poder de Mikhail Gorbatchov em 1985 e, principalmente, pelas reformas da perestroika e da glasnost lideradas pelo último secretário-geral da URSS. As críticas e descontentamento do PCP face à liderança de Gorbatchov não impediu que Álvaro Cunhal fosse operado ao coração (devido a um aneurisma da aorta) em 1989 em Moscovo pelo maior especialista soviético daquela época. Uma intervenção cirúrgica que, refira-se, foi discutida ao mais alto nível, nomeadamente no CC do PCUS. Os soviéticos receavam que operação não corresse bem e Cunhal morresse na sala de operações, como tinha acontecido no passado com Agostinho Neto, líder do MPLA, e com Gueorgi Dimitrov, presidente da Bulgária. Só após debate e aprovação do órgão máximo do PCUS é que a operação se fez, sendo um sucesso. O que não impediu o afastamento definitivo entre Álvaro Cunhal e Gorbatchov anos depois.


2 comentários:

Anónimo disse...

Esses finaciamentos tambem serviram para pagar os seus estudos, ...

Anónimo disse...

Quando o comentário não convém não se publica?