quarta-feira, janeiro 06, 2016

Crimeia e a “democracia” kafkiana




O Presidente Vladimir Putin ordenou, na semana passada, a realização de uma sondagem na Crimeia, território ucraniano ocupado pelas tropas russas em 2014, para saber se a população pretende receber energia eléctrica ucraniana nas suas casas, se no acordo de fornecimento estiver escrito que a Crimeia é parte da Ucrânia, ou se está disposta a aguentar “dificuldades temporárias ligadas a falhas pouco significativas de energia nos próximos 3-4 meses” e essa península continue a ser “território da Federação da Rússia”.  
A península da Crimeia recebia grande parte da energia eléctrica que consumia através de linhas de alta tensão da Ucrânia. Nos últimos tempos, os fornecimentos foram várias vezes interrompidos devido ao derrube à bomba de vários postes por grupos ucranianos que protestam contra a ocupação desse território.
Além disso, e este é o cerne da questão, o contrato de fornecimento terminou a 31 de Dezembro e não foi prolongado porque o governo de Kiev exige que no documento a Crimeia continue a figurar como território ucraniano, enquanto que Moscovo quer vê-la como parte da Federação da Rússia.
A resposta dos habitantes do território ocupado não deixa qualquer dúvida: 91,3% dos inquiridos estão dispostos a sofrer com as “falhas não significativas”.
Porém, chamo a atenção para o facto de esta sondagem ter sido feita por telefone, o que levanta várias questões sobre a sua precisão e objectividade.
Primeiro, os habitantes da Crimeia sabem que, ao responderem sim na sondagem telefónica, estão a violar as leis russas que proíbem qualquer apoio ao separatismo e que se arriscam a uma pena de cinco anos de prisão.
Segundo, como se tratou de uma sondagem telefónica num regime autoritário, as pessoas contactadas sabiam que os seus números e respectivas respostas podiam ficar fixados e da sua posição podia depender a paz e o bem-estar da sua família.
Admito que a maioria dos habitantes da Crimeia estão dispostos a viver temporariamente sem electricidade em nome da pertença dessa república à Rússia, mas as formas que são utilizadas para se apurar isso é que são bastante estranhas. Depois do famoso referendo realizado após a invasão militar russa, o Kremlin recorre a um método mais barato de “democracia” e que pode ser utilizado para resolver outras questões. Afinal, para quê gastar dinheiro em eleições e referendos se as sondagens por telefone podem resolver os problemas?
Também desse modo, Putin atira todas as responsabilidades para cima dos habitantes da Crimeia. Os apagões irão ser significativos, mas eles nada mais terão de fazer do que resignar-se porque foi essa a sua vontade. Foi-lhes oferecida mais uma forma de demonstrarem “heroísmo” e “amor pela Rússia”.
Depois desta experiência bem-sucedida com as sondagens telefónicas, não surpreenderá ninguém se o mesmo método for empregue pelo Kremlin para responderem sim ou não à pergunta: “Está contra a proclamação de Vladimir Putin czar da Rússia com direito a entregar o trono à sua filha mais velha?” ou “Está disposto a ver o seu salário descer para que as nossas forças armadas defendam os interesses da paz em qualquer canto do mundo?”.
Uma boa ideia e excelente negócio para empresas de sondagens.


P.S. A propósito da Crimeia, gostaria de chamar a atenção para uma nova aliança que se está a formar entre Kiev e Ancara, aliança com carácter claramente anti-Putin. A Ucrânia e a Turquia tentam encontram formas de colmatar, pelo menos parcialmente, os prejuízos económicos provocados pelas sanções russas contra esses dois países. Além disso, Kiev passou a exigir que Moscovo pague um preço mais elevado pela passagem do gás russo para a Europa. A falta de alternativas aos gasodutos ucranianos é o mais forte trunfo nesta disputa.


2 comentários:

João Nobre disse...

Anda tudo doido!

Nem russos, nem ucranianos parece que andam a bater bem da cabeça...

Desde que vi uma notícia que dizia que havia "nacionalistas" ucranianos dispostos a ir combater ao lado do Estado Islâmico, apenas porque a Rússia está em guerra contra o Estado Islâmico, desde que vi isso, quase que perdi e esperança na humanidade...

Agora Kiev quer fazer uma aliança com o tradicional inimigo dos eslavos, ou seja, o Império Otomano, que hoje dá pelo nome moderno de Turquia. Está tudo definitivamente louco e isto não augura nada de bom. Nada mesmo.

Anónimo disse...

desde 1991 que todos os referendos na Crimeia têm a mesma resposta ... bobo.