Embora de forma bastante
romantizada, a literatura russa desempenhou igualmente um papel
relevante na descoberta do nosso país. Graças a Fiodor Emin, um dos
primeiros romancistas que escreveu em língua russa, o nosso país
tornou-se, no séc. XVIII, palco onde se desenrolavam apaixonantes
histórias de amor e as mais fantásticas aventuras. Para que o
leitor russo não pusesse em causa a verdade dos factos narrados, os
romances eram apresentados como traduções feitas do português para
o francês e, desta língua, para o russo, ou directamente da língua
de Camões. Este estratagema era utilizado também para que os livros
se vendessem melhor na alta sociedade russa, que prestava especial
atenção a tudo o que vinha da Europa.
Fiodor Emin está entre
os que “encontravam manuscritos nos baús poeirentos da nobreza
portuguesa”.
Em 1763, publica o seu primeiro romance “traduzido”
do português: “O jardim do amor, ou a perseverança impossível de
Camber e Arissena”. No prefácio a esta obra, Emin explica ao
leitor: “Quando eu me encontrava em Portugal, na casa de um nobre
local, pedi-lhe dois manuscritos. Um escrito em português, do qual
traduzi este livro, outro em língua espanhola”(13).
Se o romance de português
parece ter apenas o nome do pai do herói principal: João Alvairo
(Álvaro ?), o seu autor não mente quando afirma ter estado em
Portugal.
Noutra obra sua: “A
fortuna inconstante ou as aventuras de Miramondo”, que, pelos
países descritos e aventuras passadas, parece tratar-se de uma
autobiografia, Emin escreve que nasceu na cidade de Lipp, situada na
fronteira do Império Austro – Húngaro com a Turquia. Quando tinha
apenas dois anos, deflagrou a guerra entre esses dois países,
durante a qual ele e a sua mãe foram feitos prisioneiros pelos
turcos. Depois de perigosas peripécias, Emin foge da Turquia num
barco inglês, vagueia pelo Norte de África e desembarca em Lisboa
nos anos 60 do séc. XVIII, onde se dedica ao estudo de Teologia e de
línguas, preparando-se paralelamente para se converter do Islão ao
Catolicismo(14).
Desconhecemos o que levou
Fiodor Emin a mudar bruscamente de ideias, mas o facto é que
abandonou o nosso país em 1761 e, depois de passar por Inglaterra,
desembarca em São Petersburgo, onde se converte à Ortodoxia e passa
a ocupar o cargo de tradutor no Colégio (Ministério) dos Negócios
Estrangeiros da Rússia.
Voltemos ao romance “O
jardim do amor, ou a perseverança impossível de Camber e Arissena”.
O enredo desta obra é muito característico das obras deste género,
muito populares no séc. XVIII. João Alvairo, português, foi feito
prisioneiro pelos argelinos em 1639 e reduzido a escravo do sultão
Ahmed. Mas, como mostrou ser um homem empreendedor e trabalhador, o
seu senhor fez dele seu sócio.
Tudo corria às mil
maravilhas na vida de João. Após a sua conversão ao Islão,
casou-se com a filha de Ahmed, que lhe deu um filho: Camber. Porém,
“como os portugueses gostam de riquezas”, continua o romancista,
João decide partir com a família para a Índia, a fim de continuar
os seus negócios. A sua caravana é assaltada por bandidos que matam
o português e sua esposa. Só Camber se salvou, porque ficou por
debaixo de uma almofada e os ladrões não o descobriram.
O sultão Seidi –
Gamar, que tinha vindo em ajuda do português, recolheu Camber,
educou-o e, quando chegou a altura, decidiu casá-lo com a sua filha
Arissena. Porém, Rafila, a mãe da jovem, manifestou-se contra essa
união matrimonial, pois dizia desconhecer “a origem de Camber”,
obrigando o marido a renunciar a essa ideia.
Quando souberam da
posição de Rafila, os jovens apaixonados decidiram fugir, mas
acabaram por ser capturados pelas tropas do sultão. Irado pela
ousadia dos namorados, Seidi – Gamar lança um ultimato à filha:
se ela queria ver poupada a vida de Camber, devia esquecê-lo e casar
com um tal Malec. Arissena aceita o
desafio, mas tudo faz para adiar as núpcias. Esse compasso de espera
permitiu a Camber reunir forças, derrotar o sultão e conquistar a
mão da amada. O novo casal é feliz e o sultão acaba mesmo por se
arrepender dos erros cometidos.
Como já foi acima dito,
Emin, no romance “A fortuna inconstante ou as aventuras de
Miramondo”, relata as suas viagens por paragens longínquas, embora
sob o nome de Miramondo. O contacto com os lusos começa com a
chegada do herói à praça portuguesa de Marzagão, de onde parte
para Lisboa “no navio Guarda Costa, que servia para proteger as
costas dos piratas” (15).
Após algum tempo no
nosso país, o viajante ficou com uma impressão pouco lisonjeira dos
lusos: “O povo português é, por natureza, tão cobarde que têm
medo uns dos outros. Já há muito tempo que os espanhóis podiam ter
conquistado esta nação, não fora a ajuda dos ingleses”(16).
Miramondo ficou também
descontente com o clero português: O falso santo Malaquite, jesuíta
traiçoeiro, não permitia que ninguém frequentasse a Ópera em
Lisboa. E se algum dos ministros estrangeiros quisesse organizar em
sua casa a representação de uma comédia… corria para ela com uma
cruz nas mãos, expulsava todos os comediantes e, subindo ao palco,
começava a pregar em alta voz”(17).
Para grande desgosto de
Miramondo, outro padre roubou-lhe a capa, quando passeava por uma das
ruas nocturnas de Lisboa. Mas não pensou sequer queixar-se às
autoridades, porque “se eu o tivesse censurado, não me livraria da
Inquisição e seria executado por ter insultado o clero”(18).
Considerando, por um
lado, que “no povo português não há lugar para a amizade”, o
viajante, por outro lado, tem uma opinião radicalmente diferente das
mulheres lusas: “só nas suas mulheres habita o amor, que são
muito meigas com os homens, embora seus pais e maridos as tratem com
tanta severidade como os turcos” (19).
E foi a astúcia de uma
portuguesa que quase levava Miramondo à desgraça. Andando, certo
dia, a caçar nos arredores de Lisboa, ele, subitamente, ouviu gritos
de uma jovem que pedia ajuda. O caçador depara com a cena de um
bandido a tentar violar uma jovem donzela, mas, com a ajuda da sua
espada, o corajoso salva a honra da portuguesa, que se tivera perdido
na floresta, e entrega-a sã e salva ao pai, o “cavalheiro de
Carvalho”(20).
Como recompensa pelo
heroísmo do estranho, o nobre português convida-o a passar alguns
dias no seu palácio, convite imediatamente aceite por Miramondo, mas
nesse lar vive uma criada que, com as suas artimanhas, tenta
obrigá-lo a casar com ela (21).
Segundo o relato do
herói, se, em Portugal, um homem diz que ama uma mulher na presença
de testemunhas, é obrigado a desposá-la, se assim for o desejo da
senhora. A criada do “cavaleiro de Carvalho”, depois de arranjar
como testemunhas um sacerdote e um pintor, beijou Miramondo na
presença deles e perguntou-lhe, em português, se ela a amava. O
estrangeiro, que não imaginava a armadilha que estava preparada para
ele, respondeu afirmativamente e a criada apressou-se a anunciar a
realização da cerimónia do casamento (22).
Como a criada não era
dotada de beleza e a vontade de Miramondo casar não era nenhuma,
refugiou-se num navio inglês que se encontrava ancorado no Tejo e
assim conseguiu sair de Lisboa (23).
Não terá sido uma aventura
amorosa semelhante a essa que levou Fiodor Emin a partir de Portugal
e a refugiar-se na Rússia?
Em 1774, o romancista
publica mais uma “tradução” da novela de um tal português
Eniner Aprel: “Boc e Ziulba. Novela alegórica traduzida do
português para o francês e, desta língua, para o russo”(24).
Esta obra está dividida
em sete capítulos, onde se descrevem as perigosas aventuras de um
tal Boc por terras orientais como Sião, Malaca, Sumatra e Borneo.
Como acontece nas histórias de amor, o herói acaba por encontrar o
seu amor na pessoa da princesa Ziulba, que acaba por desposar.
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