sábado, novembro 02, 2013

O homem que levou Portugal para a Rússia

 
 
Embora de forma bastante romantizada, a literatura russa desempenhou igualmente um papel relevante na descoberta do nosso país. Graças a Fiodor Emin, um dos primeiros romancistas que escreveu em língua russa, o nosso país tornou-se, no séc. XVIII, palco onde se desenrolavam apaixonantes histórias de amor e as mais fantásticas aventuras. Para que o leitor russo não pusesse em causa a verdade dos factos narrados, os romances eram apresentados como traduções feitas do português para o francês e, desta língua, para o russo, ou directamente da língua de Camões. Este estratagema era utilizado também para que os livros se vendessem melhor na alta sociedade russa, que prestava especial atenção a tudo o que vinha da Europa. Fiodor Emin está entre os que “encontravam manuscritos nos baús poeirentos da nobreza portuguesa”.
Em 1763, publica o seu primeiro romance “traduzido” do português: “O jardim do amor, ou a perseverança impossível de Camber e Arissena”. No prefácio a esta obra, Emin explica ao leitor: “Quando eu me encontrava em Portugal, na casa de um nobre local, pedi-lhe dois manuscritos. Um escrito em português, do qual traduzi este livro, outro em língua espanhola”(13).
Se o romance de português parece ter apenas o nome do pai do herói principal: João Alvairo (Álvaro ?), o seu autor não mente quando afirma ter estado em Portugal. Noutra obra sua: “A fortuna inconstante ou as aventuras de Miramondo”, que, pelos países descritos e aventuras passadas, parece tratar-se de uma autobiografia, Emin escreve que nasceu na cidade de Lipp, situada na fronteira do Império Austro – Húngaro com a Turquia. Quando tinha apenas dois anos, deflagrou a guerra entre esses dois países, durante a qual ele e a sua mãe foram feitos prisioneiros pelos turcos. Depois de perigosas peripécias, Emin foge da Turquia num barco inglês, vagueia pelo Norte de África e desembarca em Lisboa nos anos 60 do séc. XVIII, onde se dedica ao estudo de Teologia e de línguas, preparando-se paralelamente para se converter do Islão ao Catolicismo(14).
Desconhecemos o que levou Fiodor Emin a mudar bruscamente de ideias, mas o facto é que abandonou o nosso país em 1761 e, depois de passar por Inglaterra, desembarca em São Petersburgo, onde se converte à Ortodoxia e passa a ocupar o cargo de tradutor no Colégio (Ministério) dos Negócios Estrangeiros da Rússia.
Voltemos ao romance “O jardim do amor, ou a perseverança impossível de Camber e Arissena”. O enredo desta obra é muito característico das obras deste género, muito populares no séc. XVIII. João Alvairo, português, foi feito prisioneiro pelos argelinos em 1639 e reduzido a escravo do sultão Ahmed. Mas, como mostrou ser um homem empreendedor e trabalhador, o seu senhor fez dele seu sócio. Tudo corria às mil maravilhas na vida de João. Após a sua conversão ao Islão, casou-se com a filha de Ahmed, que lhe deu um filho: Camber. Porém, “como os portugueses gostam de riquezas”, continua o romancista, João decide partir com a família para a Índia, a fim de continuar os seus negócios. A sua caravana é assaltada por bandidos que matam o português e sua esposa. Só Camber se salvou, porque ficou por debaixo de uma almofada e os ladrões não o descobriram. O sultão Seidi – Gamar, que tinha vindo em ajuda do português, recolheu Camber, educou-o e, quando chegou a altura, decidiu casá-lo com a sua filha Arissena. Porém, Rafila, a mãe da jovem, manifestou-se contra essa união matrimonial, pois dizia desconhecer “a origem de Camber”, obrigando o marido a renunciar a essa ideia. Quando souberam da posição de Rafila, os jovens apaixonados decidiram fugir, mas acabaram por ser capturados pelas tropas do sultão. Irado pela ousadia dos namorados, Seidi – Gamar lança um ultimato à filha: se ela queria ver poupada a vida de Camber, devia esquecê-lo e casar com um tal Malec. Arissena aceita o desafio, mas tudo faz para adiar as núpcias. Esse compasso de espera permitiu a Camber reunir forças, derrotar o sultão e conquistar a mão da amada. O novo casal é feliz e o sultão acaba mesmo por se arrepender dos erros cometidos.
Como já foi acima dito, Emin, no romance “A fortuna inconstante ou as aventuras de Miramondo”, relata as suas viagens por paragens longínquas, embora sob o nome de Miramondo. O contacto com os lusos começa com a chegada do herói à praça portuguesa de Marzagão, de onde parte para Lisboa “no navio Guarda Costa, que servia para proteger as costas dos piratas” (15).
 Após algum tempo no nosso país, o viajante ficou com uma impressão pouco lisonjeira dos lusos: “O povo português é, por natureza, tão cobarde que têm medo uns dos outros. Já há muito tempo que os espanhóis podiam ter conquistado esta nação, não fora a ajuda dos ingleses”(16).
Miramondo ficou também descontente com o clero português: O falso santo Malaquite, jesuíta traiçoeiro, não permitia que ninguém frequentasse a Ópera em Lisboa. E se algum dos ministros estrangeiros quisesse organizar em sua casa a representação de uma comédia… corria para ela com uma cruz nas mãos, expulsava todos os comediantes e, subindo ao palco, começava a pregar em alta voz”(17).
Para grande desgosto de Miramondo, outro padre roubou-lhe a capa, quando passeava por uma das ruas nocturnas de Lisboa. Mas não pensou sequer queixar-se às autoridades, porque “se eu o tivesse censurado, não me livraria da Inquisição e seria executado por ter insultado o clero”(18).
Considerando, por um lado, que “no povo português não há lugar para a amizade”, o viajante, por outro lado, tem uma opinião radicalmente diferente das mulheres lusas: “só nas suas mulheres habita o amor, que são muito meigas com os homens, embora seus pais e maridos as tratem com tanta severidade como os turcos” (19).
E foi a astúcia de uma portuguesa que quase levava Miramondo à desgraça. Andando, certo dia, a caçar nos arredores de Lisboa, ele, subitamente, ouviu gritos de uma jovem que pedia ajuda. O caçador depara com a cena de um bandido a tentar violar uma jovem donzela, mas, com a ajuda da sua espada, o corajoso salva a honra da portuguesa, que se tivera perdido na floresta, e entrega-a sã e salva ao pai, o “cavalheiro de Carvalho”(20).
Como recompensa pelo heroísmo do estranho, o nobre português convida-o a passar alguns dias no seu palácio, convite imediatamente aceite por Miramondo, mas nesse lar vive uma criada que, com as suas artimanhas, tenta obrigá-lo a casar com ela (21).
Segundo o relato do herói, se, em Portugal, um homem diz que ama uma mulher na presença de testemunhas, é obrigado a desposá-la, se assim for o desejo da senhora. A criada do “cavaleiro de Carvalho”, depois de arranjar como testemunhas um sacerdote e um pintor, beijou Miramondo na presença deles e perguntou-lhe, em português, se ela a amava. O estrangeiro, que não imaginava a armadilha que estava preparada para ele, respondeu afirmativamente e a criada apressou-se a anunciar a realização da cerimónia do casamento (22).
Como a criada não era dotada de beleza e a vontade de Miramondo casar não era nenhuma, refugiou-se num navio inglês que se encontrava ancorado no Tejo e assim conseguiu sair de Lisboa (23).
Não terá sido uma aventura amorosa semelhante a essa que levou Fiodor Emin a partir de Portugal e a refugiar-se na Rússia? Em 1774, o romancista publica mais uma “tradução” da novela de um tal português Eniner Aprel: “Boc e Ziulba. Novela alegórica traduzida do português para o francês e, desta língua, para o russo”(24).
Esta obra está dividida em sete capítulos, onde se descrevem as perigosas aventuras de um tal Boc por terras orientais como Sião, Malaca, Sumatra e Borneo. Como acontece nas histórias de amor, o herói acaba por encontrar o seu amor na pessoa da princesa Ziulba, que acaba por desposar.
Fiodor Emin foi também um dos grandes jornalistas na época, tendo-se especializado na publicação de revistas humorísticas.
 

1 comentário:

  1. Publiquei:

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