quarta-feira, dezembro 11, 2013

Folclore europeu não é suficiente para ganhar a Ucrânia


Qualquer pessoa que conheça um pouco da realidade política ucraniana sabe que o Presidente Ianukovitch não é “pera doce”, nem “flor que se cheire”.
Porém, quer se goste ou não, Victor Ianukovitch venceu a sua mais directa adversária, Iúlia Timochenko, em eleições consideradas livres e democráticas pela comunidade internacional. Dessa vez, tanto a Rússia, como a União Europeia e os Estados Unidos aceitaram o resultado do escrutínio.
Sendo assim, Ianukovitch é representante da maioria do povo ucraniano e assim o será até às próximas eleições. Até lá, tanto a União Europeia como a Rússia têm a ver com ele enquanto dirigente do segundo maior país europeu depois da própria Rússia.
Claro que, em relação à União Europeia, Victor Ianukovitch faltou à palavra quando se recusou a assinar o Acordo de Associação a poucos dias de isso se realizar. Porém, Bruxelas também sabia e sabe com quem está a tratar e via que a pressão de Moscovo sobre Kiev estava a aumentar muito fortemente. Era claro que o Kremlin estava disposto a ir muito longe na tentativa de não perder a Ucrânia para a União Europeia.
Ianukovitch teve que optar pela forma que menos ameaçasse o seu poder e o poder daqueles grupos oligárquicos que o mantêm no poder. Como sabe que é perigoso brincar com o Kremlin, optou por brincar com a União Europeia.
A oposição pró-europeia organizou gigantescas marchas de protesto contra a política de Ianukovitch, tendo a polícia de choque Berkut intervindo de uma maneira claramente exagerada e violenta.
Levantaram-se barricadas, montaram-se tendas no centro de Kiev que passou a ser também um centro de peregrinação para ministros e deputados dos mais diversos países da União Europeia. A eles juntaram-se os “missionários” que querem levar a sua democracia a toda a parte e de qualquer forma.
Em 2004, durante a chamada revolução laranja, vi alguns desses “missionários” no terreno e não me impressionaram, pelo contrário, preocupavam-se mais em encontrar prostitutas e beber vodka do que no andamento dos acontecimentos. Alguns até foram levados para as esquadras, onde eram despojados de dinheiro e documentos pela polícia. Claro que não podiam protestar contra a arbitrariedade policial, pois tinham sido encontrados em situações menos próprias.
Eu não sei se cenas dessas seriam possíveis em Estados de direito. Bem, e se fosse Putin que aparecesse a visitar os manifestantes pró-russos em Kiev, então aí cairiam a Lavra de Kiev e o Mosteiro de São Nicolau, pois na capital ucraniana não existem Carmo e Trindade.
Isto para dizer que folclore desse tipo não resolveu nada em 2004. Os políticos pró-ocidentais chegaram ao poder na terceira volta das eleições presidenciais, mas rapidamente desiludiram os seus eleitores. A promessa europeia não foi cumprida e a União Europeia também não fez muito para que isso acontecesse. Protestou durante as “guerras do gás” entre a Rússia e Ucrânia, mas resolveu o problema de forma muito cómoda para Moscovo: empresas da UE participaram na construção do gasoduto “Corrente do Norte”, que faz com que o gás russo chegue à Europa sem “ter chatices na Ucrânia”.
Nem se vai resolver agora a favor da UE porque esta não tem propostas realistas a fazer. O corrupto e cleptomaníaco Victor Ianukovitch (a propósito, durante o seu mandato, os seus filhos tornaram-se das pessoas mais ricas da Ucrânia) comporta-se como sabe, ou seja, como uma prostituta ainda pretendida por vários homens (neste caso, país ou união de países), e anuncia que a “aproximação à UE” custa 20 mil milhões de euros por ano. Bruxelas recusa a entrar nessa via e, como se costuma dizer, quem não tem dinheiro, não tem vícios.
Neste campo, a UE podia aprender alguma coisa com Putin, que trata Ianukovitch da forma que merece, ou seja, queres dinheiro, venham as contrapartidas. Ou melhor, o dirigente russo aprendeu bem o famoso romance soviético “As doses cadeiras”, onde uma das personagens diz: “primeiro trazes o dinheiro e depois levas as cadeiras”.
Entretanto, a crise continua e é cada vez mais difícil prever como vai terminar. Mas a UE já pode tirar duas conclusões: primeiro deve pensar bem e depois fazer e, segundo, tem de pôr ordem em casa para se tornar mais atrativa. Por enquanto, os 28 inquilinos têm a casa num pandemónio, o que não a torna muito atraente.


P.S. Uma boa saída para esta crise poderia ser a realização de um referendo sobre as relações entre a Ucrânia e a UE, mas ninguém quer arriscar, pois a vitória é uma grande incógnita.

5 comentários:

  1. Anónimo22:43

    Parabéns José Milhazes por este retrato "politico+antropomorfo" da Ucrânia que cheira a taigas e a noites russas com muitos samovares prontos para o chá em casa dos mujiques aquecidas pelos fornos sonolentos onde os invasores soçobram e os entendidos desmerecem como o velho Ivan na noite fria.
    Vou reler Toltoi, Tchekov, Gorki, Korolenko porque parece que está tudo a voltar aos tempos de Ivan, "o terrível".
    Caldeira

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  2. Pippo23:46

    Finalmente, um artigo que coloca os pontos nos is e expõe as verdades podres de todos os lados!
    Assim sim, JM!

    Inocentes, aqui, só as crianças, e neste jogo do poder já são todos muito adultos.

    Entretanto, mais um artigo sobre o "euro-pugilista" Klitschko:

    http://www.presseurop.eu/pt/content/article/4396721-klitschko-um-pugilista-treinado-por-merkel

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  3. Parabéns, José Milhazes, pela sua notória independência.

    Este artigo é um muito bom (e interessante) exemplo da mesma.

    Cada vez mais me convenço que terá sido esta sua qualidade que fez a Lusa não manifestar mais interesse pelo seu trabalho...

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  4. Isto anda outra vez animado, por aqui.

    :)

    Cumpts
    Manuel Santos

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  5. Artigo imparcial.

    Este é o verdadeiro jornalismo, pena que 99,99% dos jornalistas não o praticam.

    Parabéns senhor Milhazes.

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