segunda-feira, julho 17, 2006

Contributos para a História de Portugal - 10


"A minha hospitaleira cave está feliz por receber madeira cor de ouro"

O vinho da Madeira começou a chegar ao Império Russo nos finais do séc. XVIII, tornando-se bebida popular na Corte de São Petersburgo e nas casas senhoriais. Nos livros de exportações da companhia madeirense "Blandy", ainda pouco estudados, podemos encontrar notas de encomendas como estas: "Para o grão-duque Pavel Alexandrovitch", " ... para Gatichina, para o príncipe D[mitri] Golitsin"...
Até o grande poeta russo Alexandre Puchkin se rendeu ao nectar da ilha portuguesa: "A minha hospitaleira cave está feliz por receber madeira cor de ouro".
A popularidade desse vinho era tão grande que os fabricantes russos de "vinho a martelo" criaram o seu próprio "madera", que continuou a ser produzido na época da União Soviética, transformando-se numa poção para fazer com que a classe operária continuasse a pensar que era "a força hegemónica da revolução", e ainda hoje os ucranianos o fazem correr para o mercado (na foto: etiqueta de "madera" fabricado na Ucrânia).
História semelhante pode ser contada em relação ao Vinho do Porto (qual o estudante português que passou por universidades soviéticas não se recorda do famoso "777"?), mas, como estamos a falar do Vinho da Madeira, deixemos o outro nectar nacional para próximas oportunidades.
Em 1853, o escritor russo Ivan Gontcharov, autor do romance Oblomov , participou numa viagem de circum-navegação e passou pela Madeira. No seu livro de viagem "Fragata Pallada", um dos melhores exemplares deste tipo na literatura russa, relata o seguinte episódio passado na ilha: "Parámos uma vez mais junto a uma taberna de vinho. Tratava-se já da terceira e, como anunciei, a última. Já eram três horas e estava a ficar atrasado para o almoço. Numa pequena casa, ou palheiro com bancos, estava o dono da taberna ou o empregado; aí estavam também duas mulheres. Fiquei fulminado pela beleza de uma delas, meridional e quente. Ela era alta, morena, maçãs do rosto coradas, enormes olhos negros e uma trança que não lhe cabia na cabeça e caía até ao pescoço, resumindo, como uma romana dos quadros. Mal dei conta da outra, embora não parasse de falar e rir. Ela era... velha.
Antes ainda de me sentar num banco, os homens que me transportavam já seguravam na mão uma caneca e bebiam. "O senhor não quer vinho?" - perguntou o dono. Eu fiz um gesto negativo com a cabeça. "E se for para beber à saúde da senhora?" - perguntou ele, notando como eu estudava atentamente com os olhos a beldade. "Este vinho não é bom; a bela merece melhor" - disse eu.
Mal os rapazitos acabaram de traduzir as minhas palavras, ele saiu apressado e voltou rapidamente com outro vinho. Entregou-me a caneca com orgulho e confiança e disse algo que não entendi. Eu fiz uma vénia à beldade e provei. "Bom, este não é o vinho que serve aos carregadores, trata-se positivamente de um bom madeira". Eu bebi com prazer dois goles e passei a caneca à beldade. Ela bebeu um pouquinho, mas fiz-lhe um gesto para ela continuar; ela ria-se e tentava recusar, mas o dono disse algo e ela esgotou a caneca.
"E à saúde daquela?" - perguntaram os carregadores. Eu voltei as costas e a velha já estava sentada a meu lado. Trouxeram mais uma caneca, eu bebi novamente um pouco à saúde da velha portuguesa. Os agradecimentos não tinham fim. Todos vieram acompanhar-me, o dono e as mulheres, agraciando-me com diferentes epítetos elogiosos".
O vinho da Madeira era a bebida preferida de Gregori Rasputin, uma das figuras mais enigmáticas da História da Rússia, cujo papel em acontecimentos decisivos na Corte da Rússia continua a ser motivo de acesa discussão. O seu secretário pessoal, Aron Simanovitch, recorda que Rasputin era muito exigente no que respeita ao vinho da Madeira, exigindo apenas original.
Não foi por acaso que os assassinos de Rasputin recorreram ao vinho da Madeira para o envenenar. Verdade seja dita, o gigante barbudo bebeu muito vinho misturado com veneno, mas não foi dele que morreu. Os carrascos suaram ainda muito para o matar...

2 comentários:

Zarolho disse...

Caro José Milhazes,

fascinante crónica, mesmo para quem já conhecia parte dos factos! Um reparo: os «carrascos »não« soaram», suponho, mas suaram.

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro leitor, tem razão. Peço desculpa pela gralha. JMilhazes