quinta-feira, agosto 17, 2006

Contributos para a História de Portugal - 17

"O nosso homem em Lisboa" de Eduard Kovaliov, agente do KGB soviético


OS PRIMEIROS PASSOS (capítulo IV)

Por isso, devo falar-vos das tarefas que realmente me levaram a Lisboa. Como é natural, a primeira coisa a fazer é estabelecer contactos legais. Para um correspondente, muito mais soviético, isso não se revelou difícil: o interesse dos portugueses - de todos - para com o nosso país era enorme.
Tudo começou de forma simples. No "Altis", hotel para onde me mudei no dia a seguir à minha chegada, todas as atenções estavam concentradas no jornalista soviético: desde o genro do dono milionário do hotel até ao mais simples empregado. A propósito, eles ajudaram-me imenso: através do genro e, depois, do próprio dono, conheci pessoas importantes da "alta sociedade" que, pouco tempo depois, me recomendaram para o "Grémio Literário", um clube aristocrático da intelectualidade de Lisboa. Assim me tornei uma "pessoa familiar" não só entre os jornalistas, como também nos círculos políticos da capital.
A entrada no "Grémio Literário" deu-me acesso livre (e grátis!) ao casino de élite nos arredores de Lisboa: Estoril, onde se reuniam não só a "velha aristocracia", como também as novas gerações "capitalistas" e "democráticas" da capital portuguesa.
Mais tarde, as boas relações com o porteiro alargaram-se a todos os funcionários do "Altis", que me ajudavam frequentemente a tratar dos meus asuntos oficiais. Isso dizia também respeito às chamadas telefónicas com Moscovo (então, eu não tinha outra ligação, mas ligavam-me com a redacção da TASS sempre que eu pedia) e ao fornecimento permanente de praticamente todos os jornais de Lisboa logo pela manhã.
Quase imediatamente me legalizei junto do Ministério da Informação de Portugal, estabeleci contactos com o ministro, seus adjuntos e funcionários. O meu primeiro "encontro civil" foi com o Secretário de Estado para a Informação (vice-ministro de Rego), o aristocrata de gema Sanches Osório, pessoa próxima de Spínola. Foi-me extremamente útil nos primeiros meses da minha vida solitária em Lisboa. O facto é que, então, em Lisboa, não havia representantes soviéticos permanentes além de mim: nem embaixada, nem outros correspondentes permanentes, nem representantes de outras instituições estrangeiras no estrangeiro. Até meados do Verão, os soviéticos apareciam em Portugal raramente, jornalistas ou activistas de organizações sociais permaneciam aí dois ou três dias.
Quando sentia tédio, frequentava o Ministério da Informação, que estava instalado num fantástico palácio antigo no centro da cidade, na Avenidade da Liberdade. Esse edifício fora construído ainda em 1755, depois do destruidor terramoto de Lisboa, e conservava-se bem. Seja como for, os seus funcionários sentiam-se nele confortavelmente.
No século passado [séc. XIX], um dos proprietários do edifício, o marquês da Foz, transformou-o numa luxuosa residência urbana e os restos dessa riqueza conservaram-se nos primeiros anos do regime democrático.
Eu era recebido bastante cordialmente no Palácio da Foz. A simpática secretária do ministro era muito amável para comigo e muitas vezes me ajudou a estabelecer contactos com conhecidos jornalistas lisboetas. Certa vez, ela preveniu-me dos riscos que corriam os jornalistas estrangeiros incautos nas ruas de Lisboa: por exemplo, na noite de 28 de Setembro de 1974 (noite do golpe spinolista), quando se esperavam manifestações de violência e confrontos entre os adeptos da "maioria silenciosa" anticomunista e os adeptos das transformações progressistas no país. Foi-me rigorosamente dito para "não pôr o nariz fora da porta" nem de dia, nem de noite.
Sanches Osório foi sempre simpático para comigo e protegeu-me paternalmente. Graças aos seus esforços, eu realizei a minha primeira viagem por Portugal: os Estados Unidos estavam ,então, não menos preocupados, talvez mais, do que nós com a orientação de Portugal revolucionário, até aí aliado dos EUA na NATO. Este interesse americano expressou-se no desejo claro de controlar as acções das autoridades portuguesas revolucionárias, de influir nelas de forma vantajosa para os EUA, porque, segundo os americanos, nos oficiais do Movimento das Forças Armadas não se podia confiar absolutamente nada do ponto de vista da NATO. Por isso, os americanos preferiam adular de todas as formas Spínola e a direcção portuguesa de então, fazendo isso com êxito. O presidente americano Nixon convidou, nesses dias, o chefe de Estado português António Spínola - general saído da escola velha, fascista, embora com fama de "opositor" a Salazar e a Marcelo Caetano - para um encontro na base americana das Lajes, nos Açores.
Claro que essas conversações com Nixon tinham interesse para nós. Mas como seria possível a um correspondente soviético entrar na "toca do lobo" da NATO nos Açores? E, inesperadamente, eu recebi do Ministério da Informação, do próprio Sanches Osório, um convite para acompanhar o general português para o encontro com o seu interlocutor americano. Como vêem, a "atmosfera de liberdade e transparência", reinante em Portugal depois da revolução, foi-me extremamente útil. E aqui quero pedir desculpa ao senhor Sanches Osório por ter inconscientemente ajudado o meu trabalho contra os americanos.
O Presidente Spínola, a quem fomos todos apresentados no avião, revelou ser, externamente, um homem de idade com um ar muito simpático, agradável. Ele foi bastante afável com todos os correspondentes estrangeiros que o acompanhavam para o encontro com Nixon. A todos foi oferecido o livro do próprio Spínola "Porugal e o Futuro" com o seu autógrafo. Todavia, como se viu depois, a sua simpatia externa contrastava bruscamente com a sua verdadeira posição, que se revelou mais tarde.
Como já disse, em 28 de Setembro de 1974, Spínola manifestou-se decididamente contra a política progressista dos oficiais revolucionários do Movimento das Forças Armadas. Nessa altura, ele, sob a influência clara dos seus "amigos americanos", tentou, mas sem êxito, realizar um golpe de Estado, utilizando para os seus objectivos o movimento anticomunista da chamada "maioria silenciosa". Foi lançado um forte ataque propagandístico contra a esquerda, que era apresentada como "uma criação do inferno", mas o povo português foi suficientemente inteligente para recusar os spinolistas. A mnifestação da "maioria silenciosa" foi um fracasso total, quase não teve participação. Em Setembro, Spínola perdeu e Costa Gomes tornou-se presidente. Este olhava com bem maior simpatia para a União Soviética e os anseios revolucionários dos oficiais progressistas do Movimento das Forças Armadas.
Mas, nesse momento, durante a viagem de avião, não podíamos imaginar que Spínola viesse a desempenhar esse papel: aos nossos olhos, ele era um dirigente popular, que dirigia o movimento antifascista no país. Por isso mostrou ser mais estranho para mim o seu compostamente claramente servil perante Nixon. O "homem do monóculo", assim chamado por trazer o monocóculo no olho, o que lhe dava ao seu rosto pouco expressivo um "ar de pensatrivo", era, na realidade, servilmente fiel aos seus verdadeiros donos: antes da Revolução do 25 de Abril, aos dirigentes fascistas; depois, aos americanos omnipotentes. Todo o seu posterior comportamento e actos apenas confirmaram essa característica.
Da visita à base militar americana trouxe também outra impressão, que me ficou do encontro com os correspondentes americanos que acompanhavam o Presidente Nixon. Eles pareceram-me ser uma multidão barulhenta, pouco organizada, principalmente preocupados em "lixar" os concorrentes.
O próprio Nixon espantou-me com o seu ar vaidoso, muito arificial, claramente para impressionar o público quando saiu do ventre do avião. Vinha com o rosto coberto de cremes com o objectivo de provocar a melhor impressão nos telespectadores americanos, aos quais os correspondentes televisivos americanos mostravam o seu presidente como que "em directo". Um barulho entusiástico acompanhou o seu aparecimento na porta do avião presidencial.
O oficial americano, que convidou os correspondentes estrangeiros que acompanhavam Spínola para uma sessão de informação, ficou estupefacto ao ver um jornalista soviético na base das Lajes. Mas controlou rapidamente esta desagradável surpresa e a sua estupefacção não teve consequências particulares para mim, se não se levar em consideração a grande e educada atenção para com a minha pessoa da parte do pessoal americano durante as poucas horas da minha permanência nos Açores.
Não foi vã a minha estadia na base das Lajes. Consegui saber que o primeiro contacto oficial com Spínola foi para Nixon extremamente importante e útil, porque permitiu verificar até que ponto o "aplicado aluno atlântico" continuava fiel ao seu mestre americano. Soubemos da delegação americana algumas palavras curiosas de Nixon durante a conversa com Spínola. "Todos devemos compreender - disse instrutivamente o presidente americano ao seu interlocutor - que, por si sós, as mudanças não são sempre boas". Nixon declarou- lhe sem rodeios e subterfúgios que "a união NATO está seriamente preocupada com o facto de a União Soviética puder vir a ter a possibilidade de se instalar militarmente no litoral português ou nas ilhas pertencentes a Portugal... O facto de os navios soviéticos puderem, um belo dia, entrar nos portos portugueses pode ser considerado como o maior perigo a surgir para os EUA e a NATO devido à perda de Portugal. Se a União Soviética vier a possuir pontos de apoio no Oceano Atlântico, principalmente perto da entrada para o Mar Mediterrâneo, isso conduzirá à total ruptura do planeamento defensivo da NATO. Perder-se-á certamentente a vantagem estratégica do Ocidente, que consiste, actualmente, em que nós podemos de forma relativamente fácil controlar e bloquear todas as saídas da União Soviética para o Oceano Atlântico".
Por isso, como mostraram os acontecimentos posteriores, Spínola mostrou-se pronto a executar as instruções claras de Nixon sobre as "preocupações" dos EUA face à participação dos comunistas no governo português de então. Entre os seus, Nixon disse na altura: "Spínola confirmou-me de forma convincente o desejo de Portugal manter com os Estados Unidos laços ainda mais estreitos e mais firmes".
E se se tiver em atenção que, segundo informações da delegação americana, o tema central das conversações nos Açores foi "a enorme importância que os EUA dão ao contributo de Portugal para a defesa da NATO e para a manutenção da segurança do Ocidente", torna-se também claro o sentido da promessa servil de Spínola: ele estava pronto a realizar uma política interna anticomunista e uma política externa pró-atlântica.
Depois do regresso a Lisboa, a informação confidencial recolhida nos Açores exigia terminantemente a minha partida urgente para Madrid, visto que, nessa altura, não tinha possibilidade de enviar de Portugal comunicações cifradas. Decidi para isso utilizar uma viagem conjunta com o meu colega polaco que, nessa altura, era também correspondente da Agência de Imprensa Polaca (PAP) em Espanha. Desta viagem recordo particularmente a travessia da fronteira espanhola no extremo sul de Portugal, na cidade de Vila Real de santo António, na foz do Guadiana.
Antes da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, nesta cidadezinha encontrava-se o Consulado Imperial Russo. A partir de então, nessas paragens não passou nenhum repreentante russo ou soviético. Depois de atravessar o Guadiana de barco, pusemo-nos na bicha junto do posto fronteiriço espanhol. Ela avançava rapidamente. O meu amigo polaco foi o primeiro a apresentar a sua autorização de residência em Espanha e entrou facilmente em território espanhol. Depois, eu estendi o meu passaporte soviético e começou um verdadeiro espectáculo. O espanhol ficou estupefacto, mas não disse nada. Ele estudou durante muito tempo (três ou quatro minutos) e bastante atentamente todos os carimbos e vistos no meu passaporte, decidindo, por fim, carimbar o meu documento. Entregou-mo sem olhar para mim e abriu a cancela que me levou a uma pequena praça ribeirinha da cidade espanhola de Aiamonte. Vimo-nos em Espanha.
Senti-me aliviado, porque o caminho para Madrid estava livre. Depois de passar por Granada e visitar o famoso palácio árabe de Alhambra, cantado pelo escritor americano Washington Irwing nos seus contos, voámos no "Fiat" polaco através da Meseta para Madrid. Por muitos esforços que fiz, não consegui detectar se estavamos a ser seguidos (embora fossemos estrangeiros indesejáveis para a Espanha franquista). Verdade seja dita, fomos acompanhados por polícias em motos, que se renovavam durante o caminho, mas nos seguiram permanentemente até Madrid.
Chegámos nessa mesma noite a Madrid sem qualquer tipo de aventura e dirigi-me imediatamente para a representação do Ministério da Marinha Mercante, a única instituição soviética na Espanha franquista. Enviei logo para o Centro a informação sobre as manobras americanas em Portugal.

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