sábado, setembro 09, 2006

10 de Setembro de 1977.Já passaram 29 anos...


Caro Celso, estás lembrado do dia 10 de Setembro de 1977? Pois é, já foi há tanto tempo! Mas ficou-me bem gravado da memória, não fosse esse o dia em que chegámos, juntamente com mais trinta e tal líricos como nós, à União Soviética.
Tu foste o segundo companheiro de viagem que eu conheci. Conhecemo-nos no Aeroporto de Lisboa. Antes disso, tinha ficado hospedado numa pensão barata com outro jovem que também vinha para a “Pátria do Socialismo!”, conhecera-o na sede do Partido Comunista Português, penso que situada na Rua Serpa Pinto em Lisboa, mas não me consigo recordar do nome dele. Coisas da idade!
No dia anterior, partira eu da Póvoa de Varzim, com uma mala de cartão praticamente vazia, pois considerava que ia viver numa sociedade comunista onde tudo seria repartido irmamente. Ainda estavam frescas as máximas do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels!.. Tu, não! Ias melhor prevenido, levavas umas malas bem apetrechadas, ias, como se costume dizer, bem equipado!
Ainda bem, lembras-te que, depois, em Moscovo, as tuas roupas serviram para equipar os seis portugueses que viviam no quarto da residência estudantil? Não eras invejoso!
A viagem da Póvoa para o Porto ainda foi feita num comboio puxado por locomotiva a vapor e, do Porto para Lisboa, no “comboio correio”, aquele que saía à meia-noite de Campanhã e chegava de manhã cedo à Santa Apolónia. Viagem horrorosa, a dormir numa prateleira das malas com um calor insuportável no compartimento... Mas a vontade de chegar a Moscovo ajudava a superar isso e muito mais!
Depois de uma soneca num banco de jardim perto do Campo Pequeno, fui buscar o bilhete, o passaporte e o visto à sede do PCP e nunca mais me esqueço as palavras que me foram ditas pelo meu conterrâneo Domingos Lopes, ao tempo penso que fazia parte do Comité Central desse partido. “Milhazes – disse ele -, prepara-te, porque a União Soviética não é bem aquilo que dizem ser!”.
Mas eu, e penso que a maioria dos que foram estudar para os “países do bloco socialista”, estava mesmo convencido que me encontrava apenas a umas horas de voo da vida sonhada!
Chegado ao aeroporto, foste o primeiro companheiro de viagem que encontrei. Estavas acompanhado dos teus pais. Não sei como começámos a conversa, mas o certo é que a amizade continua a durar. Lembro-me que com os poucos trocos que me restavam comprei uns maços de SG e lá fomos nós para o avião da Aeroflot, que vinha de Havana para Moscovo com escala em Lisboa. Penso que se tratava de um Tupolev 134.
Mais uma escala em Francfurt e, finalmente, às 20 horas e 40 minutos locais, aterrámos no Aeroporto Cheremetievo de Moscovo, onde esperámos longamente alguém que nos levasse para algum lugar. Antes disso, ao passar a alfandega, a polícia soviética mandou abrir algumas das malas dos passageiros do nosso voo. Lembras-te daquela rapariga que parecia trazer o enxoval de noivado na mala? Estava também prevenida, era familiar de uma dirigente da Associação de Amizade Portugal-URSS, que sabia melhor do que alguns ao que ia. A moça ficou indignada com a “busca”, mas deu para rir quando vimos saltar da mala lençóis rendados, camisas de noite, etc.
Se não me engano, estava à nossa espera no Aeroporto o Luis, que nos deu as primeiras informações de Moscovo. Depois, fomos levados para o Hotel “Universitet”, onde fomos instalados num quarto onde já dormia uma quantidade significativa de gente, mas o cansaço da viagem e as primeiras impressões foram suficientes para nos fazer dormir profundamente.
No dia seguinte, foi o primeiro contacto com a realidade soviética: fila para consulta médica, análises clínicas, e só depois veio o pequeno-almoço, que não tive coragem de comer. Não conseguia entender como se podia levar à boca saladas e sopas com natas, beber uma bebida láctea azeda, que mais tarde vim a saber chamar-se “kefir”. Mas foi uma questão de tempo e a fome obriga a ultrapassar todos os caprichos. Tanto mais que a cozinha russa mostrou ser excelente. Lembras-te da primeira ida ao restaurante depois de termos recebido o dinheiro da bolsa? Ficou quase lá todo e a salvação para o resto do mês foram as poupanças e a generosidade das jovens portuguesas...
Tu foste primeiro do que eu escolhido para ficar em Moscovo; vi muita gente partir para a província e eu também esperava não ficar na capital. Além de não gostar de viver em grandes cidades, queria estar mais perto do “socialismo real”. Mas até hoje agradeço àquele funcionário anónimo do Partido Comunista da União Soviética que veio anunciar: “José Manuel Milhazes Pinto, Portugal, fica em Moscovo”!
Voltei-me a encontrar contigo e com mais alguns companheiros de viagem na residência estudantil “DAS”, mas fico por aqui, pois não sei o que tu já contaste ao teu filho sobre a tua paragem por estas terras onde ainda me encontro. Um abraço e não te esqueças de beber um copo hoje, 10 de Setembro, 29 anos depois da partida.

8 comentários:

topas disse...

Meu caro imagino que tenha uma bela experiência de vida e confesso que tenho um pouco de inveja pois não tenho e não sei se vou ter a coragem de deixar tudo para ir em busca da incerteza.
Quero deixar aqui um grande abraço.


http://maistopas.blogspot.com/

Mikolik disse...

Post bonito, não viesse do coração...
A minha história da ligação à Rússia (não URSS) sendo diferente, pois iniciou-se depois da perestroika, comunga de muitos aspectos semelhantes do seu curto relato. Em particular lembro-me de da mesma relação com a comida e como comigo também as coisas mudaram. Tenho pena de não ter podido viver a realidade tipicamente soviética, embora nunca fosse o comunismo que me atraísse verdadeiramente na URSS.

Acho que a compartilha de relatos das suas experiências com as gentes e a realidade soviética, seriam muito interessantes para os leitores deste blog. Grande abraço.

PS – Uma dúvida que me lembrei agora, o Alvaro Cunhal falava russo? Ele não precisava de interprete para falar com os dirigentes Soviéticos?

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Álvaro Cunhal sabia falar russo até porque viveu algum tempo em Moscovo. Mas desconeço se precisava de tradutor ou não, pois esse e outros são "segredos do partido".

A.G.M. disse...

Ingenuidade, crendice, problemas psicológicos, lavagem ao cérebro – confesso que não sei o que pensar de relatos como este sobre a vigarice que era a União Soviética.
Não sei mesmo.
Ainda ficamos embasbacados com as tretas que os islamistas dizem…

Joana Lourenço disse...

Caro J.Milhazes,
Foi com muito prazer que li o comentario que deixou no meu blog,pois neste momento toda a forca e bem vinda!
Os paises da ex-URSS sao relamente muito interessantes e fascinantes e o facto de estar na Bielorrussia em voluntariado europeu, faz-me acreditar cada vez mais na potencialidade destas gentes que, no final de contas, preenchem parte da heranca europeia!
Muitos parabens pelo seu blog e obrigada por nos dar oportunidade de acompanhar a realidade do leste europeu.

Joana

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Celso, claro que me lembro. E da reacção do major Valentim Loureiro, quando eu e tu fomos ao hotel buscar o bacalhau, enviado pelos teus pais e que um dos jogadores do Boavista trouxe para o Natal? Na consoada, cozinhada numa bacia metálica, comeram os convidados e os que se fizeram de convidados, mas foi um Natal memorável. Sei que 300 caracteres são poucos, mas podes mandar um texto maior, que será prontamente publicado.
Como alguns antigos estudantes na URSS já reagiram a esta postagem,enviando comentários, talvez não fosse má ideia começar a recolher textos para começar a história desse movimento... É apenas uma ideia. Um abraço

Joaquim disse...

Caros amigos gostaria que alguém me desse uma informação ( se souberem claro) qual é o salário de um professor do ensino básico(que dê aulas a crianças dos 7/10 anos) Na República da Cacássia?

Anónimo disse...

Carlos Menezes agradece o convite do seu professor e garante que irá comprar a obra, tendo ainda apontamentos seus sob as cadeiras leccionadas no curso de pós-graduação em Relações Internacionais, material que veio a permitir ver o mundo de uma forma diferente e projectar para isso. O aparelho, a propaganda e o Estado são dimensões diferentes que Edgar Morin retracta na sua obra 'Da Natureza da URSS'(1983).