O Patriarcado de Moscovo da Igreja Ortodoxa Russa (IOR) considera que, enquanto não forem superadas as divergências entre ortodoxos e católicos, a visita do Papa Bento XVI apenas aumentará as contradições entre ambas as Igrejas cristãs.
Numa entrevista concedida ao semanário “Moskovskie Novosti”, que será publicada amanhã, o metropolita Kirill, presidente da Secção de Relações Internacionais da IOR, considera “ser muito importante que o actual Papa não insista na visita à Rússia”, acrescentando que “ambas as partes compreendem que a visita, por si só, não melhorará a situação, mas poderá provocar determinadas dificuldades”.
O metrolita Kirill, o número dois da IOR, sublinha que “ambas as Igrejas se devem abster de passos que possam complicar as relações já complicadas”, sublinhando que “a visita do Papa João Paulo II à Ucrânia não curou as feridas existentes aí”.
João Paulo II nunca escondeu que um dos seus maiores sonhos era visitar a Rússia na qualidade de chefe da Igreja Católica Romana, mas a hierarquia ortodoxa russa sempre se recusou a recebê-lo, acusando o Vaticano de “proselitismo” e de apoio aos unitas ucranianos (cristãos de rito oriental que reconhecem a supremacia do Papa).
O Patriarcado de Moscovo também não abre as portas ao novo Santo Padre, mas está aberto a criar uma frente comum com o Vaticano face à “laicização” da Europa ou à expansão do fundamentalismo islâmico.
“O importante é que Bento XVI está aberto a que a Igreja Russa e o Vaticano elaborem respostas conjuntas às perguntas que o mundo moderno coloca ao homem, de onde são expulsos os valores cristãos” – declarou Kirill, o mais provável sucessor do actual Patriarca Alexis II à frente da Igreja Ortodoxa Russa.
O hierarca ortodoxo considera que “os ortodoxos e católicos devem dizer algo de comum a toda a Europa, a todo o rebanho, que ainda não ouviu uma só voz a propósito das questões fundamentais da nossa vida”.
“Isso valeria bem a pena. Embora já tenham sido dados alguns passos nesse sentido: na conferência bilateral, recentemente realizada em Viena, e na Cimeira Mundial de Religiões em Moscovo, que decorreu em Moscovo no início de Julho” – declarou Kirill, e concluiu que estão criadas condições para um encontro do Papa de Roma com o Patriarca de Moscovo “no momento devido e no lugar devido”, ou seja, em território neutro.
Deste modo, a hierarquia da IOR dá um passo ao encontro do Vaticano. Resta esperar pela resposta.
1 comentário:
Julgo que a hierarquia da IOR não deve esperar grande coisa do Vaticano, sobretudo com este Papa:
Boaventura de Sousa Santos
Publicado na Visão em 28 de Setembro de 2006
O comentário no Ocidente ao discurso do papa alinhou-se pelas seguintes ideias: não foi um discurso do papa, foi um discurso do professor; talvez o papa tenha cometido um erro ao escolher a citação do Imperador de Bizâncio, mas isso não justifica as violentas reacções no mundo islâmico; o enfoque central do discurso foi a relação entre a razão e a fé, e a crítica do moderno secularismo ocidental.
Por que razão nenhum destes argumentos é convincente? O papa falou como papa e escolheu o contexto que lhe permitisse romper mais claramente com a doutrina papal até agora vigente. Essa doutrina, vinda do Concílio Vaticano II e continuada pelo Papa João Paulo II, era a do ecumenismo e do diálogo entre religiões, no pressuposto de que todas são um caminho para Deus e têm, por isso, de ser tratadas com igual respeito, mesmo que cada uma reclame uma relação privilegiada com a Revelação. O ecumenismo obrigava a considerar como desvios ou adulterações o uso da violência como arma de afirmação religiosa. Esta posição é desde há muito questionada pelo actual papa, para quem a superioridade da religião cristã está na sua capacidade única de compatibilizar a fé e a razão: agir irracionalmente contradiz a natureza de Deus, uma verdade perene que decorre da filiação do Cristianismo na filosofia grega. Ao contrário, no Islão o serviço de Deus está para além da racionalidade. Por isso, a violência islâmica não é um desvio, antes é inerente ao Islão, o que faz do Islamismo uma religião inferior. Esta doutrina está bem documentada na sua condenação dos teólogos mais avançados no diálogo ecuménico, na sua recusa em designar o Islão como uma religião de paz, na sua posição contrária à entrada da Turquia na União Europeia, dada a incompatibilidade essencial entre Islamismo e Cristianismo e ainda na sua convicção de que o Islão é incompatível com a democracia.
É, pois, claro que o papa não cometeu um erro. Foi exacto no modo como formulou a sua provocação. Aliás, se o seu discurso pretendesse ser uma lição de teologia, ela seria de péssima qualidade. Porque não referiu o contexto da conversa entre o imperador e o persa e ocultou o passado beligerante e cruzadista do primeiro? Porque não citou outras opiniões contemporâneas totalmente contrárias à que preferiu? Porque não referiu que em qualquer das religiões abraâmicas há preceitos que podem justificar o recurso à violência, assim tendo sucedido em nome de todas elas? Perante estas interrogações, é necessário analisar o discurso do papa pelos seus reais objectivos políticos. O primeiro e o mais óbvio é o de apor o selo do Vaticano na guerra de Bush contra o Islão e na guerra de civilizações mais vasta que a fundamenta. Tal como João Paulo II alinhara o Vaticano com os EUA na luta contra o comunismo, Bento XVI pretende o mesmo alinhamento, agora na luta contra o Islamismo. Em seu entender, perante o avanço do Islão a resposta tem de ser mais dura, e precisa do poder temporal para se concretizar. Tal como aconteceu com as Cruzadas ou a Inquisição. Trata-se, pois, de uma teologia de vencedores, uma teologia teo-conservadora, paralela à política neoconservadora.
O segundo objectivo é muito mais vasto. Ao defender uma relação privilegiada entre o Cristianismo e a racionalidade grega, o papa visa estabelecer o Cristianismo como a única religião moderna. Só no âmbito dela é possível conceber "actos irracionais" (a perseguição dos judeus, as guerras religiosas, a violenta evangelização dos índios) como desvios ou excepções, por mais recorrentes que sejam. Por outro lado, visa fazer uma crítica radical a um dos pilares da modernidade: o secularismo. O papa questiona a distinção entre o espaço público e o espaço privado, e acha "irracional" que a religião tenha sido relegada para o espaço privado. Dessa "irracionalidade" decorrerão todas as outras que atormentam as sociedades contemporâneas. Daí a urgência de trazer a mensagem cristã para a vida pública, para a educação e a saúde, para a política e a cultura. O perigo desta crítica do secularismo está em que ela coincide com a posição dos clérigos islâmicos mais extremistas para quem, em vez de modernizar o Islão, há que islamizar a modernidade. Os opostos tocam-se, e não se tocam para dialogarem, senão para se confrontarem. A irracionalidade deste choque reside nas concepções estreitas de racionalidade de que se parte. De um lado, uma racionalidade que transforma a fé numa crença racional ocidental; do outro, uma racionalidade que transforma a razão na manifestação transparente da intensidade da fé islâmica. A luta contra estes extremismos é mais urgente do que nunca, pois sabemos que eles foram no passado os incubadores de guerras e genocídios devastadores. Mas pode o Ocidente lutar contra o extremismo do Oriente do mesmo passo em que reforça o seu?
Enviar um comentário