terça-feira, novembro 06, 2007

Revolução de Outubro (fim)






Seria falsificar a História se não se reconhecesse os grandes êxitos da ciência e da tecnologia soviéticas, principalmente no período do pós-guerra. O fabrico das bombas atómica e de hidrogénio, a construção do primeiro satélite artificial da Terra, a primeira viagem do homem ao Espaço, etc., etc.

Tudo isso é verdade, mas convém analisar os custos económicos e humanos dessas inovações. Muitos cientistas soviéticos faziam as suas investigações encerrados em campos de concentração estalinistas, bem como milhões de escravos que constituíam mão de obra quase gratuita. Por eles passaram Andrei Tupolev, o engenheiro criador dos aviões militares e civis TU, Serguei Koroliov, criador dos foguetões e satélites espaciais, etc.
Além disso, essas descobertas científicas, bem como o fabrico de armas sofisticadas, não contribuíam para melhorar a qualidade de vida dos comuns cidadãos soviéticos, mas para manter uma competição com Estados Unidos. E, neste campo, o comunismo não aguentou a corrida.
De que vale um país ter foguetões, mísseis nucleares, centrais atómicas, se os cidadãos comuns estão privados dos produtos mais elementares? Quem viveu na União Soviética sabe que, em numerosas regiões do país, as senhas de racionamento existiram desde 1917 até 1991, ou seja, do início ao fim do regime comunista.
Para manter concorrentes indústrias como a militar, espacial e outras, o regime soviético tinha de preparar quadros competentes, o que conseguiu com grande êxito. Mas foi dessa forma também que o regime comunista preparou os seus “coveiros”. Quando, depois da morte de Estaline, em 1953, a “cortina de ferro” se abriu um pouco, os soviéticos começaram a compreender que, afinal, o capitalismo ocidental não era tão mau como pintava a propaganda soviética e a população da Europa, dos Estados Unidos e de outros países desenvolvidos vivia bem melhor do que eles. É muito mais difícil enganar pessoas cultas do que analfabetos e ignorantes.
A União Soviética não aguentou a competição económica e social com o Ocidente também porque não conseguiu dar o salto qualitativo para a sociedade da informação, perdeu aquilo a que a ideologia comunista chamava a “revolução técnico-científica”.
Por isso, é ridículo explicar o fim da União Soviética com conspirações do imperialismo e dos seus “agentes” no país. É difícil acreditar que Mikhail Gorbatchov fosse capaz de destruir uma super-potência se ela estivesse baseada em sólidos fundamentos. A URSS ruiu devido às contradições que se foram criando no seu interior e que os dirigentes do país não souberam resolver.
Mas será que alguém ganhou com a Grande Revolução Socialista de Outubro, além, claro está, da nomenclatura soviética? Ganhou, mas não foram os povos soviéticos, nem os países da chamada “comunidade socialista”. Ganharam as classes menos desfavorecidas dos países mais desenvolvidos.
Receosos de perder tudo, os capitalistas foram obrigados a ceder parte dos lucros para a esfera social. Os melhores exemplos desta política são os países que realizaram na prática políticas sociais-democráticas: Suécia, Dinamarca, Noruega, Finlândia, etc.
Desaparecida a União Soviética, começaram a ser postas em causa muitas das conquistas sociais nos países ocidentais. O outro grande “país socialista”: a República Popular da China, nunca desempenhou, nem desempenhará o papel desempenhado pela URSS no plano social. Pelo contrário, é o exemplo mais gritante do capitalismo selvagem.
Alguns pensadores e forças políticas comunistas não desistem de querer convencer-nos a aceitar uma “segunda tentativa”. Respondo com palavras da “sabedoria popular soviética”: “Só quem odeia o seu país é que tem coragem para realizar uma experiência como a comunista”. Por isso deixo aqui um conselho: encontrem um país de que não tenham pena para repetir a experiência, mas como não deverão encontrar nenhum, recomendo que se limitem aos vossos próprios lares, se não tiverem dó das esposas e filhos.

9 comentários:

Anónimo disse...

Caro José Milhazes,

Familiares meus russos, abastados e com educação universitária, continuam a acreditar piamente que a União Soviética caiu por via de uma conspiração americana que manipulou artificialmente os preços do petróleo para abalar a economia do país. Como se tal coisa fosse sequer possível.

Por outro lado, uma das mais graves discussões que tive com a minha mulher, que quase levou ao divórcio, começou com um debate sobre a autoria dos massacres de Katyn e Starobielsk pelo NKVD. "Questão" essa que incrivelmente continua a ser "discutida" publicamente por personalidades e jornalistas russos, os quais, de forma tão impúdica como os que negam o holocausto nazi, continuam a "questionar" a sua autoria.

Tudo isto me leva a pensar que a aceitação passiva das tradições soviéticas de branqueamento da história e da manipulação da informação bem como do mito do "inimigo à espreita", que condicionaram por gerações (e ainda condicionam) a maneira de pensar e agir de todo um povo, são uma das heranças mais pesadas (senão a mais pesada) da Grande Revolução de Outubro. Levará gerações até que os russos em geral deixem de ser vulneráveis às manipulações do aparelho de estado e comecem a manifestar-se criticamente, pedindo contas à séria a quem os governa.

A indiferença geral face aos assassínios de jornalistas russos e a recente reabilitação de Stalin promovida pelos siloviki são provas da supressão quase completa do espírito crítico russo. Uma pena.

António Campos

João disse...

Um professor meu disse-nos que a União Soviética caiu porque estava de tal forma pesada e paralisada que os canais de comunicação vertical deixaram simplesmente de funcionar e que isso levou a situações como o desenvolvimento de lideranças locais separatistas e corruptas nas repúblicas constituintes e a uma falta de informação crescente nas esferas mais altas do país.

O que a mim me custa a compreender é como é que durante largos anos a União Soviética não conseguiu perceber que o seu regime já não tinha lugar no Mundo e que a inacção levaria ao seu fim.

Os dirigentes chineses perceberam isso, apesar da distância que separava o seu país do resto do Mundo e hoje ninguém põe em causa a existência da República Popular da China. Como é que os líderes soviéticos, numa situação bem mais próxima do ocidente, não conseguiram compreender isso e, salvo algumas excepções, atiraram o país para a desagregação?

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Leitor, os dirigentes soviéticos compreendiam perfeitamente que as coisas estavam mal, principalmente a partir de meados dos anos 70 do séc. XX. Por isso foi eleito Mikhail Gorbatchov, que chegou ao poder para restruturar e modernizar o regime, mas viu que ele não tinha cura.
Restava-lhe duas vias: ou continuar na via da democratização, ou enveredar pela via chinesa: reformas económicas em regime repressivo. Os golpistas de 19 de Agosto de 1991 queriam impor a via chinesa, mas não só falharam, como apressaram a desintegração do regime e da URSS.
É uma resposta muito esquemática e breve, mas penso reflectir o essencial.

jal disse...

Caro José Milhazes,
Ao longo da última semana tenho lido em diversos espaços muitos textos sobre a Revolução de Outubro e, confesso, aguardava com alguma expectativa o fim dos seus posts sobre o assunto.

Tenho que lhe dizer que fiquei extremamente desiludido, esperava muito mais da sua análise, até pelo conhecimento que tem da realidade Russa.

Limitou-se nos seus textos a repetir um conjunto de argumentos e veicular a teoria dos vencedores.

Esqueceu-se, no entanto, de referir alguns aspectos (para si sem importância) derivados da Revolução de Outubro: as inúmeras conquistas sociais e culturais alcançadas com a Revolução, a transformação de um País feudal numa potência económica.
Como viviam os trabalhadores antes da Revolução e como passaram a viver? Como evoluiram as condições de trabalho e os direitos de quem trabalha? Qual o papel social atribuído às mulheres soviéticas? Com o fim da URSS como passaram os povos a viver? Como se degradaram as suas condições de vida? Como aumentaram as diferenças e as desigualdades? Como é que o sacro-santo capitalismo melhorou a vida dos povos soviéticos?
O que é feito da cultura, da educação, do desporto acessível aos povos soviéticos?

Respondo-lhe da seguinte forma: Só quem odeia o seu País e a humanidade pode dar cobertura a um sistema perdador, que assenta toda a sua estrutura na exploração e opressão, na destruição dos recuros naturais e do planeta. Só quem odeia e muito o seu País e a humanidade pode rejeitar e condenar as tentativas de construção de sociedades mais justas e fraternas, mais humanas e solidárias, mesmo que essas tentativas sofram de erros, insuficiências e desvios, mesmo que venham a fracassar.
Por que esses também são factores humanos, ao contrário dos infalíveis factores do mercado e das sociedades selvagem regidas pela lei dos mais fortes.

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro leitor, é verdade que poderia ter escrito muito mais, mas eu, volto a repetir, tenho de trabalhar para dar de comer à família. Não posso estar 24 horas a trabalhar para o blogue.
Abordei as questões mais importantes. Mas responde a uma das suas perguntas, a que diz respeito aos direitos da mulher. Devo desiludi-lo: a mulher não passou a ter os mesmos direitos. Pode-me dizer quantas mulheres fizeram parte do Bureau Político do CC do Partido Comunista Soviético? Se igualdade é pôr as mulheres a trabalhar nas minas e a construir caminhos de ferro, então essa foi conseguida.

antonieta disse...

Estimado José Milhazes,
Tenho vindo a acompanhar os seus escritos sobre a revolução de 1917, bem como os comentários que têm sido publicados a propósito.
Como referiu, e bem, a URSS produziu extraordinários cientistas e investigadores, cujo objectivo primeiro (e único) foi desenvoler uma sofisticadíssima indústria de armamento e afins,sempre na senda da competição e da sobreposição ao poder militar dos EUA. Passando por cima das condições em que tais cientistas e investigadores foram forçados a trabalhar, porque este aspecto já foi bem salientado em comentários anteriores, gostaria de não deixar em branco uma questão que me é particularmente cara e que, quiçá, poderá fazer baixar alguma luz que nos faça entender a dificuldade que as sociedadessaídas do desmoronamento do bloco de leste têm vindo a evidenciar no que toca às práticas da democracia. Aqueles povos foram instruídos, de facto, mas não foram formados para pensar; a cultura humanística sempre esteve arredada do sistema de ensino, como convém às ditaduras; como todos sabemos, as cabeças pensantes e abertas ao mundo são extraordinariamente incómodas para o poder autocrático; não é por acaso que a quase a totalidade dos que questionaram o poder comunista acabou eliminada ou exilada no Ocidente.Temo que esta falta da tal cultura das humanidades tenda a eternizar-se, nomeadamente na Rússia; basta conhecer os curricula escolares do ensino obrigatório ainda vigentes, para se perceber que disciplinas como a História Universal, a Filosofia e a Literatura não russa (designadamente os Clássicos) permanecem ausentes desses curricula; o ensino das línguas estrangeiras é altamente deficiente (refira-se, por exemplo, o do inglês, latim dos nossos dias). A questão das línguas, que pode parecer secundária é, do meu ponto de vista, emblemática de um fechamento que me parec, ainda, muito vivo. Talvez também por estas razões o caminho dademocracia ainda se apresente muito longo.

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Cara Antonieta, não posso estar completamente de acordo consigo. Claro que é verdade que a situação em muitos países do Leste é difícil, entre outras coisas, porque os comunistas liquidaram parte da intelectualidade. Quanto à instrução humanista, claro que havia fortes dificuldades de aceder a muitos dos pensadores e escritores ocidentais, bem como russos que discordavam do regime. Por exemplo, não sei se alguma vez contei isso, mas, no 1º ano da faculdade de História da Universidade de Moscovo, precisei de escrever um trabalho sobre Cristo para a cadeira da História Antiga e só tive direito a consultar a Bíblia com autorização do decano da Faculdade.
Além disso, no caso da Rússia, o caminho para a democracia é mais longo porque o poder está nas mãos de "comunistas recauchutados", não houve uma profunda renovação da elite existe.
Por exemplo, segundo alguns estudos, cerca de 70% dos altos cargos do Estado Russo são ocupados por pessoas saídas dos serviços secretos.
Juntando a isto o facto de a Igreja Ortodoxa Russa defender a pena de morte e outras normas contrárias à moral cristã, não se pode esperar dirigentes com grande moral.

antonieta disse...

Estimado José Milhazes,
Agradeço a atenção que prestou ao meu comentário, bem como o conhecimento que lhe acrescentou. Também eu, na Universidade de Lisboa, tive,no 4º - e último - ano do curso de Filosofia, uma questão bizarra com um professor (não por acaso ligado às hostes comunistas nacionais) que me não queria aprovar um projecto de trabalho baseado na perspectiva epistemológica de Karl Popper, advogando que tal autor não fazia parte do programa. A esta posição absurda, respondi eu que, no último ano do curso superior de Filosofia, não pode haver filósofos fora do programa. Como,apesar de vivermos em democracia, era ele quem classificava os alunos, acabei sendo penalizada na nota.

Pinto de Sá disse...

Excelentes reflexões, caro Milhazes!
Se me permite, três notas:
1 - É evidente que a ausência de moral e de regras no capitalismo mafioso que se instalou na Rússia actual é um resultado inevitável do prolongado e exaustivo extermínio de todos os intelectuais, gestores, administadores, e em geral dos "burgueses" de antanho.
2 - Na sua essência real, o comunismo real foi muito mais um regresso ao absolutismo pré-capitalista e clerical do que qualquer avanço histórico. A incapacidade de "apanhar o comboio" da revolução informática, por exemplo, resultou claramente do facto de ela não ter sido prevista nos textos dos profetas. Ora tal mentalidade não se distingue da da Igreja que combateu Copérnico e Galileu.
3 - E agora um ponto de vista cínico e irónico: na China, os comunistas sempre amaram o seu povo, devido à "linha de massas" de Mao, o que fez uma grande diferença para os chineses. Ao ponto de os comunistas chineses terem sido capazes de "libertar" a iniciativa capitalista popular e de poupar o povo a mais fome e sofrimento. No fundo, nada mais do que uma expansão da NEP de Lénine. Se isto não é ser verdadeiramente bom comunista, não sei o que o seja...