Texto enviado pelo leitor António Campos:
"Logo após a Rússia ter vencido a corrida para a realização das Olimpíadas de inverno na cidade costeira de Sochi, Putin afirmou que a honra de organizar os jogos representava não só o reconhecimento internacional do talento desportivo russo, mas também, sem margem para dúvidas, uma "avaliação do nosso país". É certamente uma afirmação com profundo significado. Não terá sido então com grande surpresa que a peça publicada a 7 de Junho pelo Noviy Region 2, ostentando o sugestivo título "A corrupção fará com que as Olimpíadas de Sochi sejam as mais caras da história", foi recebida.
Ainda que estimativas independentes dos custos totais do projecto se aproximem dos 39 mil milhões de dólares, valor dez vezes superior aos gastos com as duas últimas Olimpíadas de inverno em Turim e em Salt Lake City, nenhum analista externo, segundo a Nezavisimaya Gazeta, teve até agora acesso ao respectivo plano financeiro. Assim, não é possível ter uma ideia da estrutura de custos nem das origens dos capitais, especialmente os provenientes do orçamento de estado. Como resultado, a falta de transparência permite ocultar da população as maciças transferências de capital do erário público para esquemas de corrupção. De acordo com cálculos do economista Alexei Skopin, 30 dos 39 mil milhões de dólares constituirão uma espécie de "taxa" a pagar pelos contribuintes aos funcionários públicos, criminosos e, em geral, a todos os envolvidos no projecto olímpico. Feitas as contas, cada russo terá que desembolsar cerca de 200 dólares do seu bolso para financiar o empreendimento.
Uma interessante peça publicada recentemente no Novoe Vremia, com o título "Vova 12%?" ilustra eloquentemente o estado das coisas: o promotor imobiliário Valery Morozov, numa entrevista ao Sunday Times, acusou Vladimir Leschevsky, alto funcionário da administração presidencial, e personalidade próxima do primeiro-ministro, de ter recebido um suborno de 12% do valor do seu empreendimento hoteleiro a construir em Sochi (totalizando cerca de 1,5 mil milhões de rublos) na sequência de uma visita da inspecção fiscal aos seus escritórios em Moscovo. As autoridades estão a investigar estas alegações, mas não será certamente difícil adivinhar o desfecho.
Como se este clima de saque oficial generalizado não bastasse, os infelizes elementos na base da cadeia alimentar têm que sofrer ainda mais. Um bom exemplo é a forma como decorre o processo de expropriações. O Comité Olímpico Internacional tem vindo a receber centenas de queixas de residentes relativamente à falta de transparência e injustiça com que os processos estão a ser conduzidos pela empresa de construção estatal Olympstroi. A agravar a situação, em Abril de 2009, a Duma fez passar legislação propondo a eliminação de audiências públicas para expropriações, ao mesmo tempo que reduzia para um mês o prazo para a assinatura dos acordos de expropriação, findo o qual caducaria qualquer direito a indemnização. Em grande parte dos casos, os avaliadores valorizam a propriedade em montantes significativamente inferiores aos que servem de base ao cálculo do imposto sobre imóveis. Vários proprietários terão sido informalmente avisados de que," devido à crise financeira internacional", os valores de avaliação seriam ainda mais comprimidos, contrariamente ao que seria de esperar para um local destinado a receber os próximos Jogos Olímpicos de inverno. Na maioria das situações, a expropriação é efectivada na forma de venda forçada ao estado a valores abismalmente inferiores aos de mercado, sendo-lhes ainda, no final, exigido o pagamento de uma taxa de 13% sobre o valor recebido. Na senda da velha expressão portuguesa, contado ninguém acredita.
Têm também surgido múltiplas queixas relativamente a problemas de saúde pública, sector que parece estar a ser largamente ignorado pelas autoridades. NA aldeia de Akhshtyr, desprovida de água corrente, quatro dos cinco poços que a abasteciam foram cobertos sem qualquer aviso pela pavimentação de uma estrada de acesso. A população ficou sem abastecimento alternativo de água durante meses. Noutro caso, foi instalada uma fábrica de cimento junto a um complexo residencial. A funcionar dia e noite, a fábrica produz ruído, poluição e poeiras, o que, com grande probabilidade, afectará a saúde dos residentes no longo prazo. Todas as tentativas de sensibilizar as autoridades locais para o problema ficaram sem resposta.
Em linha com a postura governamental em matéria de protestos populares, uma manifestação pacífica à porta do local onde o Comité Olímpico realizava uma conferência de imprensa durante uma visita a Sochi em 2009 foi interrompida pela polícia, que rasgou os cartazes de protesto e acusou sete dos manifestantes de "organizar uma manifestação ilegal".
A "avaliação do nosso país" de Putin continua, desta vez na área ambiental. No seu artigo intitulado "Sochi Olympics 2014: an environmental disaster of Soviet proportions?", o jornalista Gary Cartwright, afirma que, embora a construção se tenha iniciado em 2008, não houve implementação de medidas adequadas de avaliação independente do impacto ambiental numa zona classificada como património mundial pela UNESCO. 8 mil hectares do parque natural foram reclassificados como área urbana e o estádio e a aldeia olímpica irão ser construídos numa área antes considerada protegida. Outras reservas de biosfera, nomeadamente Teberda e Utrish, foram drasticamente reduzidas e, numa ocasião , os documentos relativos à utilização dos terrenos foram simplesmente alterados sem qualquer consulta prévia, tanto a nível governamental como público, retirando terreno da Reserva da Biosfera do Cáucaso por forma a autorizar a Gazprom a construir uma estrada. Por outro lado, a legislação foi alterada para ter em conta a realidade olímpica: a Lei sobre Áreas Protegidas foi modificada, permitindo agora a realização de actividades desportivas em parques naturais, situação expressamente proibida na legislação anterior, e o Código Florestal foi alterado para permitir o abate de plantas em risco de extinção. Ensaios recentes financiados pelo WWF detectaram níveis alarmantes de arsénio, fenóis e óleos no Mzymta, o mais longo rio a desembocar no Mar Negro. Sem grandes surpresas, de acordo com o jornalista, o acesso a organizações ambientais independentes aos estaleiros de construção é consistentemente vedado. Dada a situação, é caso para perguntarmos o que tinha Putin em mente quando reiterou o seu respeito pelo aspecto ambiental do projecto olímpico. Será provavelmente por isso que, ao mesmo tempo que assiste com indiferença a estes desenvolvimentos, se desdobra em manobras de charme diante do Comité Olímpico e das câmaras, tal como aquela em que presenciou, com pompa e circunstância, a reintrodução de dois leopardos persas no parque natural.
Ainda que recentemente criticada pelo Programa Ambiental da ONU quanto ao seu desempenho em matéria ambiental, a Olympstroi nega todas as alegações, acusando os activistas de querem sabotar a realização dos jogos numa manobra de relações públicas. No entanto, tal não impediu o Greenpeace e o WWF de suspenderem, como forma de protesto, as suas actividades de consultoria junto da empresa. Esta última organização terá afirmado em Fevereiro que "a preparação para os Jogos Olímpicos está fora de controlo, a construção é de má qualidade e os danos no ambiente são já extensos".
A ganância dos promotores do projecto parece não ter limites, o que já levou a resultados desastrosos e poderá ter consequências ainda mais nefastas. Numa entrevista à BBC, o geólogo Sergei Volkov, antigo consultor da equipa de planeamento do projecto, afirmou que os trabalhos de construção foram iniciados sem que tenham sido realizados estudos geológicos e climáticos básicos, o que levou já à destruição de uma infra-estrutura portuária no valor de 14 milhões de dólares e à morte de três pessoas, na sequência de um temporal de média intensidade. Volkov referiu que a área, onde existem importantes depósitos de urânio, mercúrio e outros minerais tóxicos, é perigosa e geologicamente instável, relembrando um importante aluimento de terras nos anos 60 no vale do rio Mzymta, local de construção de uma auto-estrada e ferrovia de apoio à infra-estrutura dos jogos. Receoso de represálias pelas autoridades face à sua posição crítica aberta, Volkov abandonou o país e refugiou-se na Ucrânia.
À luz do desastre multifacetado que aparenta ser o projecto olímpico de Sochi, a pergunta óbvia prende-se com o porquê da posição displicente do COI relativamente ao estado das coisas. Uma pista é-nos dada pelos comentários do analista Phil Butler, que refere um dos múltiplos exemplos da promiscuidade desporto-negócios subjacente ao projecto: "A região de Krasnodar é uma das mais ricas do país em recursos naturais, em particular, madeira. (...) A Michael Weinig AG é uma empresa alemã com um papel na economia da região, como demonstra a sua inclusão em numerosos fóruns económicos e negócios antes e depois do processo de candidatura de Sochi. Qual a relevância desta empresa? Para além de ser a maior produtora mundial de máquinas para a indústria da serração, o seu presidente é, nada mais nada menos, do que Thomas Bach, vice-presidente da comissão executiva do COI." Importa referir que a região é uma das últimas fontes abundantes no planeta de madeiras raras usadas na indústria do mobiliário, tais como carvalho e ácer.
Em suma: ainda que não tivesse sido seguramente esse o seu objectivo, a afirmação de Putin foi presciente no que respeita à avaliação do seu legado. Avaliar o microcosmos do projecto de Sochi é avaliar o estado da nação e o impacto dos seus mais de dez anos no poder. Para realizar um evento de relações públicas que certamente considera ser a coroa do seu previsível terceiro mandato presidencial, Putin não olhou a meios e colocou em marcha o bulldozer chamado Rússia SA, criando oportunidades astronomicamente lucrativas para os seus servidores e toda a espécie de abutres empresariais internacionais, ao mesmo tempo que os interesses da nação são ignorados, sem qualquer hipótese de reacção.
A Rússia de Putin é Sochi.
3 comentários:
Caro Sr José Milhazes...
Nada disso me surpreende! Acontece com frequencia aqui no Brasil...
Aqui nossos políticos escondem dolares dentro da cueca, etc....
Deve ter caído um santo abaixo do altar: Alone Hunter a não defender a Rússia de Putin a todo o transe!
Agora a sério, faço votos para que isso de esconder USD nas cuecas não se repita por causa do Mundial 2014 e dos Jogos Olímpicos Rio 2016.
Se esta estória se confirmar, este COI não aprende nada com os erros anteriores. Não bastava o escândalo que foi a atribuição dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2002 a Salt Lake City, agora esta estória com Thomas Bach.
O BRASIL E OURO EM GASTAR DINHEIRO PUBLICO. DUVIDO QUE OUTRO PAIS FASA MELHOR.
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