Texto traduzido e enviado por António Campos e Cristina Mestre
"A pressão sobre o Kremlin continua a aumentar. Os factores que impulsionaram a economia russa no início da década (elevados preços dos hidrocarbonetos nos mercados internacionais, mão de obra barata e capacidade produtiva por utilizar) estão esgotados. As reformas económicas iniciadas nessa altura foram virtualmente interrompidas e todos os outros factores necessários ao crescimento económico estão iguais ou piores do que há dez anos, uma vez que a manutenção do status quo é condição essencial para a preservação da actual plutocracia no poder. Porém, o economista Mikhail Delyagin, numa entrevista para o jornal online Novii Region, argumenta que as recentes transformações na sociedade russa deram origem a uma volumosa força social a que chamou os "novos pobres" (um trocadilho com o conceito de "novos ricos" em voga nos caóticos anos 90, classe que se tornou dominante na sociedade de então), cuja consciência cívica e percepção de que o estado não tem o menor interesse na população poderão tornar-se, no médio prazo, numa pedra no sapato do regime.
Deixo aqui os meus agradecimentos à Cristina Mestre, cujo precioso apoio na tradução do artigo original em russo foi mais do que essencial.
Na Rússia, pela primeira vez em 20 anos, surgiu uma classe social disposta a confrontar o poder
Os últimos anos na Rússia têm sido palco de enormes transformações sociais. Pela primeira vez em 90 anos, formou-se na sociedade uma "nova maioria" (os "novos pobres"), afirmou numa entrevista ao Novii Region o economista e director do Instituto para os Problemas da Globalização Mikhail Delyagin.
"Nos anos 90, éramos todos indigentes ou muito pobres; agora formámos um grupo que se pode designar por pobres da "classe alta", disse Delyagin. Trata-se de pessoas com rendimentos para comprar alimentos e vestuário, mas sem dinheiro para adquirir bens duráveis. Continuam a ser pobres, uma vez que se o frigorífico se avariar, não têm dinheiro para comprar outro. Este estrato, que constitui 48% da população, já não se enquadra na definição de "pobre".
Este é um resultado muito bom, e a primeira vez que quase metade da população pertence a uma classe social em termos de bem-estar. Por outro lado, faz com que as suas exigências em relação ao estado aumentem, exactamente numa altura em que este decidiu que pode fazer o que quiser com a "escumalha".
De acordo com especialistas, este novo grupo social começou já a manifestar-se em situações críticas e a aperceber-se de que os seus interesses e os do estado não coincidem.
"Assistimos ao primeiro choque destas posições no caso dos incêndios. As pessoas defendiam-se a si próprias e, nas informações dadas aos voluntários, repetiam: "lembrem-se que para o estado vocês não são nada e ninguém vos irá prestar atenção". Entre outros temas, apercebemo-nos deste fenómeno através do interesse suscitado pelo projecto de lei sobre a polícia. Trata-se do despertar de uma situação em que a população começa a tomar consciência dos seus direitos e a defendê-los", prediz o director do Instituto para os Problemas da Globalização.
A situação é agravada pela insatisfação que existe na sociedade russa quanto à justiça, no seu sentido mais lato.
"Um exemplo do aumento da desigualdade é a humilhação pública dos pensionistas militares, que foram preteridos quando do aumento das prestações de todos os outros reformados. O caso teve um grande impacto na sociedade russa. O estado não precisa das pessoas que o defendem. Quando se mostra tão abertamente que não se precisa das Forças Armadas do país, surge uma questão: Porquê? E, consequentemente, ficamos com a impressão que eles julgam que serão defendidos não pelo exército russo mas sim por outro qualquer – americano, inglês, israelita, suíço – ao que parece, no seu próprio país”, diz Mikhail Delyagin.
Começam a surgir motivos para o conflito entre o poder e o povo na sociedade russa
“O Outono será palco de um brusco aumento dos preços de alguns produtos alimentares. Em termos gerais, podemos ter a certeza de que os números oficiais para a inflação não ultrapassarão os 10%, já que este constitui um limite politicamente importante”, refere o economista. “Mas as estatísticas oficiais têm tanto a ver com a realidade como as promessas do partido Rússia Unida relativamente às suas acções. Por conseguinte, a vida tornar-se-á mais difícil”.
Há indícios preocupantes vindos no sector metalúrgico, o qual costuma, com um desfasamento de seis meses, produzir sinais de alarme sobre problemas na economia em geral. Problemas relacionados quer com a procura limitada nos mercados mundiais devido à recessão económica, quer com questões internas ligadas à situação sofrível das dívidas, à excessivamente rígida política financeira do governo, à concorrência por parte dos artigos importados, etc.”.
A situação na economia russa irá agravar-se, prediz o economista. Os preços vão aumentar, levando a uma deterioração do nível de vida. No entanto, não ocorrerá uma catástrofe.
“É um exagero dizer que, a seguir ao trigo mourisco, tudo o resto irá quintuplicar de preço. O estado irá usar formas de travar estes aumentos. Naturalmente que tal é pouco eficaz, mas desviará o cenário de catástrofe. Ocorrerão problemas, que se agravarão a 1 de Janeiro com o aumento tradicional das tarifas dos serviços habitacionais, com a maior agressividade dos funcionários do estado, que se lançam às pessoas como cães, e pelo facto de muitos serviços estatais passarem a ser pagos. Tudo isto prejudica o bem-estar das pessoas”.
“Não nos espera nada de catastrófico, mas sim uma lenta e progressiva deterioração da situação”, resume Mikhail Delyagin. “Tal poderá precipitar a consolidação do emergente grupo social dos “novos pobres””.
6 comentários:
Apenas uma nota: os preços dos alimentos essenciais na Rússia já começaram a aumentar sensivelmente a partir do mês de Julho.
Quando falam dos elevados preços dos hidrocarbonetos nos mercados internacionais no início da década... mas a quanto estava o barril de pitrol em 2001 e a quanto está agora?
Bem sei que já esteve acima dos 120 USD/barril, mas...
A análise deve ser feita desta forma: de 1998 para 2000, o preço médio do crude quase triplicou e em 2004 já tinha quase quadruplicado e quintuplicado em 2005. Em 2008, o preço era já seis vezes superior a essa referência. O PIB russo aumentou em linha com estes aumentos, mas continua extremamente modesto para um país com a população, recursos naturais e potencial educativo/tecnológico de que dispõe. E há que ter em conta que os valores do PIB, sejam eles globais ou per capita, mascaram as brutais assimetrias de rendimentos resultantes dos privilégios da classe dominante. Num país com as assimetrias sociais da Rússia, é impossível usar o PIB como medida da melhoria do nível de vida da população.
Hoje, com o preço do crude a tender para estabilização ou mesmo para a redução no médio prazo, e tendo em conta que a indústria no geral está em declínio (até mesmo a indústria de extracção petrolífera: um editorial do Guardian de há 2 dias referia que a Rússia está a produzir metade do que a URSS produzia nos anos 70, que, mesmo descontando perda das jazidas do Cáspio, corresponde a um declínio pronunciado), o Kremlin deixou de poder contar com a "boleia" do aumento do preço das matérias-primas para fazer crescer a economia.
O que uma grande parte dos analistas aponta como prognóstico para a economia russa é a estagnação. Num tal cenário, o potencial para conflito social cresce, uma vez que a esmagadora maioria da população continua a viver em condições deploráveis e a economia não será capaz de gerar riqueza adicional para as melhorar. Uma economia estagnada consegue apenas manter o status quo. E como o status quo é miserável…
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/sep/10/russia-elite-powermongers
António Campos
António, boa análise. Mas "Hoje, com o preço do crude a tender para estabilização ou mesmo para a redução no médio prazo" é mais o desejo de quem tem carro que outra coisa... o preço do crude vai disparar em breve, é só a "cryse" acabar. Nem que para isso se tenha de invadir o Iräo...
Quanto à economia da Rússia, acertou em cheio quando diz que "Uma economia estagnada consegue apenas manter o status quo. E como o status quo é miserável…", a ver se os 2% de oligarcas começam a dar mais algum ao resto dos 98%, ou entäo arriscam-se a uma festarola marada tipo em 2017...
Em lado nenhum no artigo é referido que a Rússia está a produzir metade do que a URSS produzia e tal não é verdade.
A tendência não é a estabilizção do preço nem a redução do consumo.
A produção na Rússia tem estado a aumentar e não está assim tão longe dos níveis de produção nos tempos da URSS.
A Rússia já está em 1º lugar no ranking mundial dos produtores de petróleo.
O artigo do The Guardian diz que "Soviet oil accounted for 35% of global production in 1985. Oil from Russia accounts today for just 17% – a marked decline even after the partial loss of oil from the Caspian basin is factored in."
traduzido correctamente:
"em 1985 a URSS contribuía para 35% da produção mundial [de crude]. Actualmente, a Rússia contribui para apenas 17%, um acentuado declínio mesmo tendo em conta a perda do petróleo do Cáspio."
O artigo não indica que a produção diminuiu mas sim que o peso da produção de crude da Rússia a nível mundial é hoje mais reduzido. E basta haver mais produtores (Nigéria, Angola, etc.) para que isso aconteça.
A Rússia está em 1º lugar em termos de produção petrolífera, seguida da Arábia Saudita e dos EUA. O Cazaquistão está em 19º e o Azerbaijão em 23º.
Há que prestar atenção quando se fazem traduções e sobretudo quando se comentam notícias.
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