Texto escrito e enviado por António Campos:
Só nos lembramos do Quirgistão, uma república pobre, semi-esquecida nascida das cinzas da União Soviética, dominada pela corrupção (para não fugir à regra) quando ocasionalmente esta é palco de tensões étnicas e protestos políticos, tal como o que deu origem à "revolução das túlipas", em 2005, e as manifestações ocorridas em Abril deste ano, que resultaram na deposição do presidente Kurmanbek Bakiyev.
O que surpreenderá muitas pessoas é que em 28 de Janeiro de 1987 nascia em Bishkek de pais russos uma criança que se haveria de tornar precocemente numa referência no panorama musical contemporâneo. Filho de Tatiana, musicóloga e professora de música num colégio local, e de Emil, engenheiro mecânico entusiasta da música jazz, que ouvia constantemente os programas musicais da BBC e da Voice of America, Eldar Djangirov ouvia aos cinco anos o seu pai a tocar o piano da família e repetia nota por nota o que ele tocava e também o que ouvia da discografia caseira. Com a ajuda da mãe, iniciou muito cedo a prática do instrumento, tendo começado a notar-se rapidamente nas suas execuções uma tendência para a improvisação. Numa ocasião em que praticava Mozart com a mãe, no final de uma sonata em que deveria ter terminado com um simples acorde em dó maior, Eldar deriva para um acorde complexo de jazz. Tatiana diz-lhe então: "Eldar, isso não é o acorde de Mozart", ao que ele responde: "Mas é melhor!".
O ponto de viragem na sua vida surge aos nove anos, num festival de Jazz em Novosibirsk, onde Eldar é "descoberto" por Charles McWhorter, entusiasta musical e patrono do jazz americano, que, impressionado pelo talento em bruto do jovem pianista, convence-o a frequentar um curso de verão no Interlochen Center of Arts, no Michigan. Sabendo meia dúzia de palavras em inglês, Eldar acaba por se mudar para os Estados Unidos com a família para um subúrbio de Kansas City. O reajustamento à pátria de acolhimento foi difícil, mas ajudados pela comunidade local, os Djangirov viram facilitada a sua inserção e Eldar pôde prosseguir os seus estudos.
A ascensão tornou-se meteórica quando McWhorter enviou à sua amiga pianista Marian McPartland, autora do famoso programa de rádio Piano Jazz na NPR, uma gravação de Eldar. O jovem pianista tornou-se imediatamente no mais jovem convidado do programa e, a partir daí, as solicitações tornaram-se incessantes. Eldar é convidado para tocar no programa da CBS Sunday Morning e acaba por aparecer nos Grammy Awards de 2000, aos treze anos. Desde então, tem tocado em inúmeros festivais, tendo vencido o concurso do Lionel Hampton Jazz Festival de 2001. Aos 15 anos, executava a Rhapsody in Blue de Gershwin com a Independence Symphony Orchestra.
Antes dos 18 anos, já tinha gravado três CDs, um deles com dois dos mais importantes nomes do jazz actual, John Patitucci e Michael Brecker, e assinado um contrato com a Sony Classical, um feito de que nenhum outro artista da sua área e da mesma idade se pode orgulhar. O seu álbum Re-Imagination recebeu uma nomeação para um Grammy Award.
Numa crítica a uma das suas aparições em público, a revista Billboard relatava: "Eldar tem as mãos mais rápidas do Jazz…mistura a alma russa (nas baladas) com a vertigem do be-bop em standards e composições originais. O seu reportório de nove peças deitou a casa abaixo. Eldar parece veicular facilmente Art Tatum e Oscar Peterson na sua abordagem, mas em seu benefício, perde-se na música à sua maneira original." De facto, Eldar faz questão de combinar de forma vertiginosa os estilos pianísticos mais diversos e não se acanha de enveredar, ocasional e surpreendentemente, pelos caminhos da electrónica e do lo-fi. O público fica estarrecido.
Apesar do seu talento e de toda a fama que o persegue, Eldar, nunca pensou em si como uma celebridade, nem alguma vez foi visto como tal pelos amigos e colegas do liceu. Era apenas conhecido como o Eldar, um jovem inteligente e simpático que, no fundo, era um adolescente normal que gostava de fazer as coisas que os adolescentes normais fazem.
Hoje, com 23 anos, aclamado unanimemente pela crítica, com cinco CDs gravados e aparições ao vivo em todos os cantos do mundo, Eldar Djangirov, a viver agora em Nova Iorque, continua a amadurecer estilisticamente, encontrando-se, na minha opinião, no caminho de se tornar um dos músicos de jazz mais importantes de todos os tempos.
A pergunta que repetidamente me faço é inevitavelmente a mesma: o que teria sido do prodígio Eldar se não tivesse dado o salto para o ocidente? A resposta encontra-se, obviamente, nos meandros da História alternativa. Neste caso, as coisas não poderiam ter corrido melhor. Ainda bem.
4 comentários:
Sorte a esse rapaz!
Ora ainda bem que falamos de cultura, porque nem só de política vive o homem.
Gostei do texto, já tinha visto um vídeo do jovem pianista e ele toca de facto de forma sublime.
António, só dois pequenos reparos (construtivos!!!). Não é que tenha muita importância, mas o Eldar não é filho de pais russos, mas de mãe russa e pai quirguise, como se vê pelo nome e apelido do pai e também pelo próprio nome do pianista, que não é um nome russo.
Vemos é que a família e especialmente a mãe estimularam desde cedo a formação musical do jovem o que é muito frequente na tradição russa (não é por acaso que o país tem alguns dos melhores músicos do mundo). Basta dizer que a maioria das crianças da Rússia ou, pelo menos, uma grande parte, frequenta escolas de música equivalentes aos nossos conservatórios. O nível de ensino e a exigência são muito altos. Agora se o jovem músico podia ter tido o sucesso se não vivesse nos EUA: tudo tem a ver com as oportunidades que ele teve de promover a carreira, de aparecer na imprensa, de ter produtores (que, no Ocidente, são muito activos e profissionais). Na Rússia arrisco-me a dizer que há outros tantos Eldares, só que não são conhecidos, não gravaram discos e não actuam em salas conhecidas.É outra forma de encarar a cultura.
Aconteceria o mesmo que ao Grigori Perelman, um dos melhores matemáticos do Mundo.
Tem sucesso e recusa a fama. E vive na Rússia.
Acontece que para um matemático ter sucesso só é necessário cérebro, papel e caneta.
Para os milhares de outros cientistas que precisam de recursos para conduzir a sua investigação, ou para os artistas, que precisam de formação adequada e, por definição, de um público para divulgarem o seu trabalho, a coisa já não é tão risonha.
Aiás, em Outubro, 170 cientistas russos expatriados escreveram uma carta aberta a Medvedev a queixarem-se das "condições catastróficas para praticar ciência fundamental na Rússia". Os galardoados russos com o Nobel da física deste ano, a trabalhar no Reino Unido, mostraram o "dedo" a Medvedev quando este os convidou a voltar. Eles lá terão as suas razões.
António Campos
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