segunda-feira, abril 11, 2011

Recensão ao meu livro "Angola - O Princípio do Fim da União Soviética"

Recensão ao meu livro "Angola - o Princípio do Fim da União Soviética" escrita por Maciel Santos (Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto):


"O título deste livro--talvez um factor para que logo em 2009 esta obra tivesse duas edições--é representativo da impressão ambivalente que a sua leitura deixa. Na verdade, pouco se demonstra sobre a ligação entre o envolvimento soviético em Angola e o “princípio do fim” da URSS. Entre 1976-89,a União Soviética terá fornecido a Angola (e nada prova que gratuitamente) equipamentos militares no valor de 3,7 mil milhões de rublos , isto é, um pouco mais de  6 biliões de US dólares (p. 171); a transformação da URSS em Federação Russa acompanhou, como se sabe, um “encolhimento” do PIB soviético da ordem dos 2% em 1990 e de 17% em 1991 ! A escala desigual destes fenómenos desfaz certamente qualquer nexo causal entre eles, mesmo admitindo a hipótese (falsa) de os referidos fornecimentos militares não representarem, na sua maioria, simples exportações comerciais.

Não é apenas pelo desajustamento do titulo com os conteúdos do livro que o trabalho de Milhazes se aproxima mais do jornalismo que do trabalho académico. Abstraindo de importantes detalhes técnicos como os de não haver bibliografia final ou de as fontes russas serem citadas com os seus títulos traduzidos, verifica-se que a estrutura do livro é igualmente pouco sistemática. Os seus sete capítulos seguem uma ordem cronológica mas arrumam a informação, tanto de capítulo a capítulo como no interior de cada um, quase exclusivamente à deriva das fontes arroladas. Assim, por exemplo, o capítulo II junta as memórias de dirigentes soviéticos sobre os encontros de 1961 (com duas delegações do MPLA, a de Mário de Andrade e Viriato da Cruz e depois a de Agostinho Neto), a visita de Amílcar Cabral, também desse mesmo ano, uma curta biografia de Eduardo dos Santos (como exemplo de apoio á formação de quadros), episódios das dificuldades logísticas no apoio ao MPLA em 1967, testemunhos de um jornalista soviético entrado em Angola durante o ano de 1970, os relatório Kulikov  e Ulianovski (anos 1973-74) sobre o MPLA, e uma igualmente interessante descrição da actividade do campo de treinos da Crimeia (Perevalnoe) onde, entre 1965-90, cerca de 18 mil combatentes africanos e asiáticos receberam formação !

E no entanto, a leitura da obra de Milhazes vale bem as duas edições que o livre já teve. Representa seguramente a primeira--e até agora única--investigação sobre fontes em língua russa (soviéticas e pós-soviéticas) relativas às guerras de Angola (1961-2002). O prefácio, a cargo do historiador angolano Carlos Pacheco, salienta que o autor ... conseguiu até certo ponto penetrar no mundo desaparecido da documentação fechada dos arquivos russos; entrevistou veteranos de guerra que estiveram em Angola; entrevistou personalidades dos altos escalões da política soviética, joeirou a imprensa periódica do país e mergulhou na leitura de memórias e biografias que falam da presença soviética em África (p. 10). Embora isto se assemelhe talvez mais ao programa de trabalhos a que J. Milhazes aspirava mais do que aos resultados obtidos (que, de outro modo, não se condensariam num volume com apenas 160 p. de texto corrido), a importância de algumas destas informações acrescenta realmente conhecimento à história recente de Angola.

Convém começar pela conclusão principal a que se chega, expressa várias vezes nos capítulos mais “diacrónicos” (II a V): no conflito angolano, a URSS teria sido mais conduzida pelos acontecimentos do que executora de uma política planeada.

Milhazes contextualiza esta tese fazendo uma retrospectiva--igualmente interessante e nova para leitores portugueses--da (quase inexistente) política da III Internacional para a África colonial, de 1919 até à ao final da II Guerra Mundial. Apesar desta “tradição”, não deixa de ser inesperado o episódio de 1963 em que o governo soviético, por ordem directa de Krutchov, se preparava para reconhecer o Governo no exílio de Holden Roberto, estando precisamente Agostinho Neto de visita a Moscovo (pp. 33-36)! Neto seria salvo pela intervenção de Álvaro Cunhal embora episódios posteriores viessem confirmar que, longe de se tratar de uma gaffe circunscrita a 1963, as ligações entre a URSS e o MPLA seriam quase sempre mais fracas do que se pensa, a ponto de o interesse soviético pela FNLA e mais tarde pela UNITA se tornarem ... intermitentes, antes e depois de 1974! Milhazes cita Karen Brutenz do Sector África do Comité Central: “O nosso apoio ao MPLA era ditado não tanto, como frequentemente se pensa, por considerações ideológicas, como por pragmáticas” (p. 35). Demonstrações evidentes desta orientação são os relatórios ao Comité Central dos militares Kulikov (Dezembro de 1973) e Ulianovksi (Janeiro de 1974), desacreditando a direcção de Neto pela sua incapacidade militar e divisionismo político, chegando Kulikov a propor conversações com Mobutu e a FNLA para acções conjuntas (p. 44). Esta descrição confirma o que se sabe a partir de outros estudos: comparando para o ano de 1973 o valor do apoio soviético ao MPLA, isto é, ao movimento nacionalista que nas colónias portuguesas Moscovo considerava apesar de tudo prioritário (220 mil dólares, p. 55), com o do governo sueco, verifica-se que este dava ao movimento de Neto praticamente o mesmo (cerca de 209.000 dolares ), sendo que os suecos, ao contrario dos soviéticos, apoiavam muito mais o movimento guineense PAIGC (3,3 milhões de dólares) e o moçambicano FRELIMO (750 mil dólares).[1]

Independentemente da maior ou menor surpresa soviética pelo movimento de 25 de Abril de 1974 em Portugal e dos motivos para o seu envolvimento em Angola e na Etiópia durante os anos seguintes--pontos para os quais o “tal” trabalho a fazer nos arquivos soviéticos espera recompensas--as fontes citadas por Milhazes apontam para a continuação da passividade soviética na política angolana depois de 1974. A sua manifestação mais evidente, e que também vem confirmar outras pesquisas,[2] parece ser a de que a intervenção cubana em Angola se fez a pedido directo do MPLA e sem qualquer mediação ou autorização soviética. É pelo menos o que cinco importantes testemunhos soviéticos (Adamichin, ex-vice ministro dos NE; Brutenz, do Sector África do CC; Dobrinin, ex-embaixador nos EUA; Kolomnin, do Conselho da União da Rússia dos Veteranos de Guerra de Angola; Neguin, “agente soviético”) citados por Milhazes declaram explicitamente (pp.67-72).

Tendo a operação Carlota (designação dada à missão militar cubana enviada a partir de Novembro de 1975) tido êxito, poderia pensar-se que qualquer divergência sovieto-cubana (entrada de operacionais em Angola--sim ou não antes da independência oficial?, efeito sobre as negociações SALT, etc.) não deixara resíduos nas relações soviético-angolanas. Afinal, foi com material soviético--avaliado para o período 1976-81 em 618 milhões de dólares  que o MPLA ganharia a primeira fase da guerra civil. Porém, o capítulo III de Milhazes mostra que o pior estava para vir. Em Maio de 1977 a antiga desconfiança de Moscovo a respeito do titismo de Neto teve novos desenvolvimentos na sequência do movimento de Nito Alves. Neste ponto, Milhazes limita-se a citar fontes oficiais e historiadores oficiosos mas com uma notável excepção: o testemunho directo de Brutenz sobre a interpelação não protocolar de Neto a Brejnev. Vale a pena citar o que Neto terá dito a meio da cerimónia--Eu vim aqui porque ocorreu uma coisa: um levantamento, e gostaria de saber pessoalmente de Você se Moscovo participou no conluio contra mim ou não. Porque, segundo me informaram, muitos dos vossos homens estiveram envolvidos--assim como o que se seguiu, isto é, Brejnev segura perante si um texto previamente preparado e começa a ler: “A situação no nosso país é boa, as previsões sobre as colheitas são fantásticas” (p. 98). Não é de crer que, depois deste episódio, o clima de suspeição mútua melhorasse entre os aliados. Como se sabe, tanto a morte de Neto num hospital de Moscovo (que Milhazes aproveita para fazer uma digressão sobre o papel das clínicas soviéticas na diplomacia de Moscovo, incluindo os casos Frunze, Dimitrov e Cunhal) como os episódios do seu funeral se prestaram a variadas especulações (pp. 99-104).

Com os cubanos, há indicadores de que durante a década de 1980 as divergências políticas continuaram a produzir efeitos sobre a coordenação militar. O capítulo IV, assente quase exclusivamente em memórias de ex-combatentes de várias patentes, regista queixas sobre a fraca participação dos cubanos em combate, (Tanto mais que os nossos conselheiros militares, que agiam a todos os níveis ... eram obrigados a combater juntamente com os seus subordinados, diz o general Varennikov, pp. 115-116) e informa sobre a crise político-militar de 1984 quando, perante o avanço da UNITA/África do Sul, Castro decidiu fazer recuar as linhas cubanas até Benguela (pp. 116-120).

O capítulo V contem seguramente os testemunhos de maior interesse político imediato. Nele, Milhazes descreve as reacções soviéticas ao realinhamento estratégico que os países da linha da frente realizaram a partir de 1984, com Angola a tentar “normalizar” as suas relações com a África do Sul e os Estados Unidos. Alguns pontos altos:

-o registo da conversa (de Novembro de 1987 entre Mário Soares e Gorbatchov (na qual Soares discorda das acusações que Gorbatchov faz às pressões americanas sobre Luanda dizendo: Não estou de acordo com isso. Se a empresa americana Gulf Oil não extraísse petróleo em Angola.... Angola nada teria para pagar até a presença de 38 mil cubanos. (pp.139-141).[3] (Se mais novidades não houvesse na entrevista, bastaria este detalhe do número exacto de cubanos, dado por Soares, não ter sido contestado por Gorbatchov);

– a revelação sensacional do embaixador Kazimirov (no mesmo ano do acordo de Nova Iorque, que protocolizou a retirada cubana e sul-africana!) de que a diplomacia soviética considerava “apostar em Jonas Savimbi”, o qual se encontrou então com o ministro Chevardnaze (pp.141-142).

- o registo da conversa entre José Eduardo dos Santos e Gorbatchov (Outubro de 1988) na qual o presidente angolano informou sobre as negociações com a UNITA a decorrer em Marrocos (um plano que, a ter-se realizado, representaria o primeiro ensaio da “UNITA renovada”), acrescentando haver, na sequencia da tal “reorganização da UNITA”,  um “mini-plano Marshall para Angola” no qual o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal  estaria particularmente activo (pp. 143-145: o ministro era Deus Pinheiro e o secretario de estado para a Cooperação era Durão Barroso). De novo se regista a passividade soviética, que vai reagindo com surpresa--e indignação, por vezes--às iniciativas do seu aliado.

- a notícia de que militares russos desempregados após 1991 se teriam oferecido individualmente ao governo de Luanda e à UNITA (embora aqui Milhazes não revele as suas fontes, p. 148) O autor não esclarece se passou a haver soviéticos a trabalhar com a UNITA na segunda fase da guerra civil angolana.

Os dois capítulos finais continuam a obra demolidora de expor as opiniões soviéticas sobre instituições e personalidades angolanas (políticas e militares), desde os funcionários do Ministério de Segurança Nacional às propostas aeronáuticas do general M’beto Traça.

Conclusões? Milhazes não as extrai formalmente, embora no seu capítulo VII faça um balanço das remessas e perdas soviéticas nestas aventuras angolanas. Os números são verdadeiramente aterradores: para além do material militar, entre 1975-91 teriam passado por Angola cerca de 11 mil militares, incluindo 107 generais e almirantes, entre os quais terá havido--no mínimo--2.454 baixas (pp. 173-175)! Mesmo pertencendo a fontes diferentes, são números que fazem, esses sim, associar Angola a maus presságios para o futuro da URSS.

Este inquérito termina assim de modo muito positivista--sem conclusões e com um anexo documental (já agora, porquê só dois documentos e, para mais, de fontes oficiais quando o livro tem tantas iguarias historiográficas?). Mas é inevitável que um ponto ressalte deste extraordinário conjunto de revelações, umas mais outras menos fiáveis : que a guerra civil angolana foi essencialmente conduzida e ganha por uma aliança Sul-Sul. Em 1975, MPLA e cubanos terão agido de motu próprio, ignorando e aproveitando o auxilio que a URSS por arrastamento lhes enviou; em seguida (de 1984 a 1991, o governo de Angola despediu cubanos e soviéticos sem aviso prévio.

Restará talvez dizer que, apesar de tudo, o primeiro ministro português tivera razão na referida conversa de 1987 : os Estados Unidos (“o Ocidente” dizia Gorbatchov, a “Gulf Oil” dizia Soares) não estavam a “sufocar” Angola."

P.S. Não tenho nada contra as críticas que são feitas aos meus artigos e textos, mas surpreende-me a forma superficial como se critica a obra do alheio. Fiquei com a impressão que o crítico leu o livro muito apressadamente.
Quanto ao título do livro, quero sublinhar que ele foi retirado de um pensamento do académico Arbatov, na altura conselheiro de Leonid Brejnev: "Depois de Angola, avançãmos destemidamente pela via já desbravada, na realidade, pelos degraus da escalada intervencionista. Estes degraus são Etiópia, Iémen, uma série de países africanos... e, por fim , o Afeganistão" (pág. 76).
Claro que os seis mil milhões de dólares em armas enterrados pela URSS em Angola não derrubaram a União Soviética, mas houve mais gastos: transporte de armas (por exemplo, transporte de tanques por via aérea), envio de milhares de especialistas militares e civis e, por fim, o reacendimento da guerra fria. Esta foi fatal para a economia soviética.
O autor da recensão critica-me por não tirar conclusões, mas antes de concluir isso, escreve: "Convém começar pela conclusão principal a que se chega, expressa várias vezes nos capítulos mais “diacrónicos” (II a V): no conflito angolano, a URSS teria sido mais conduzida pelos acontecimentos do que executora de uma política planeada".
"Não é apenas pelo desajustamento do titulo com os conteúdos do livro que o trabalho de Milhazes se aproxima mais do jornalismo que do trabalho académico. Abstraindo de importantes detalhes técnicos como os de não haver bibliografia final ou de as fontes russas serem citadas com os seus títulos traduzidos, verifica-se que a estrutura do livro é igualmente pouco sistemática", escreve o crítico.
As fontes russas são traduzidas porque o livro é dirigido a um amplo leitor, reconheço que não tive por objectivo escrever uma "obra académica". Mas quem souber russo, pode facilmente encontrar as fontes citadas. 
E o que significa "Não é apenas pelo desajustamento do titulo com os conteúdos do livro que o trabalho de Milhazes se aproxima mais do jornalismo que do trabalho académico"? Que se trata de uma obra superficial, que o que lá está escrito não tem crédito? 
Quanto ao resto, os leitores do livro que façam o julgamento.
Mas não quero deixar mais uma pequena nota. Na biografia publicada no livro está escrito que doutorei-me em História na Faculdade do Porto. Além disso, sou também professor universitário. Por isso fiquei perplexo ao ser tratado simplesmente por "Milhazes" por um colega da mesma Faculdade. 
Será que ele trata assim os seus outros colegas académicos? Ou estarei eu desactualizado?
Não estou contra que me tratem apenas por Milhazes na rua, entre amigos, conhecidos e desconhecidos, mas penso que no mundo académico há regras.
 

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