No dia 1 de Maio, fiz esta comunicação numa noite de música russa, realizada no Salão Árabe do Palácio da Bolsa do Porto:
Dizem
os russos que o seu país tem um “passado imprevisível”. Paradoxo? Não, eles
apenas querem dizer que a História da Rússia é escrita e reescrita sempre que
no Kremlin, símbolo do poder russo, entra um novo inquilino.
E
esta imprevisibilidade transforma-se num terreno fértil para o aparecimento de
utopias, sob as mais diversas formas.
Após
a tomada de Constantinopla em 1453 pelos muçulmanos, os senhores da Rússia
quiseram fazer de Moscovo uma “Terceira Roma”, considerando-se os únicos
cristãos verdadeiros, ortodoxos.
Em 1472, Ivan III, o "Grande” casou-se
com a sobrinha do último Imperador de Bizâncio. O casamento serviu para
estabelecer uma ligação dinástica com Bizâncio. O Grão Duque de Moscovo começou
a assumir os títulos bizantinos de "autocrata" e "Czar"
(uma adaptação do romano "César") e a usar a águia bicéfala de
Bizâncio como seu brasão.
A
teorização desta utopia ficou a cargo do monge Filoteu de Pskov, que a traçou
numa carta ao Czar: “Eu gostaria de acrescentar algumas palavras sobre o
Império Ortodoxo do nosso senhor: ele é na terra o único Czar dos Cristãos, o
líder da Igreja Apostólica que não está mais em Roma ou em Constantinopla, mas
na abençoada cidade de Moscovo. Só ela brilha no mundo inteiro mais do que sol
.... Todos os impérios Cristãos caíram e resta apenas o do nosso senhor, de
acordo com os livros proféticos. Duas Romas caíram, mas a terceira vive e uma
quarta não existirá!».
Não
havendo tempo para analisar com pormenor toda a época da monarquia russa, podemos
constatar que esta doutrina foi uma das bases ideológicas do alargamento
territorial da Rússia, tendo as tropas russas estado, várias vezes, às portas
de Bizâncio, ou mais precisamente, de Istambul.
Mas
ela prestou um mau serviço ao país, pois, quando os ventos da democracia e da
liberdade atravessavam a Europa, essa doutrina/utopia serviu para justificar a
continuação da autocracia no poder, pouco permeável às reformas exigidas pela
sociedade. Este desfasamento entre a conservação do autarca abençoado por Deus
e a sociedade sedenta de mudanças conduziu a fortes convulsões na Rússia, no
início do séc. XX, transformando esse país num terreno fértil para o
aparecimento de uma nova utopia: o comunismo.
De
sinal ideológico oposto, o comunismo soviético herdou muito da ideologia
autocrática russa. A Ideia da Terceira Roma Ortodoxa não foi abandonada, mas
transformada em
Revolução Mundial , teoria elaborada por Lenine e Trostki e
realizada na prática por Estaline.
Voltamos
a recordar uma das frases do monge Filoteu: “Só ela, cidade de Moscovo, brilha
no mundo inteiro mais do que o sol”. Não faz isto lembrar frases da propaganda soviética
como “O comunismo é o futuro radioso da humanidade”? Só que o brilho dourado
das cúpulas dos templos ortodoxos foi substituído pelo brilho das estrelas
vermelhas no Kremlin e das foices e martelos e a autocracia czarista foi
substituída por um dos regimes mais desumanos e cruéis na história da
Humanidade. Não era por acaso que Estaline gostava de ser comparado ao czar
Ivan o Terrível no seu autoritarismo. Basta ver a forma como Estaline emendou o
segundo episódio do filme de Serguei Eiseintein para que muito fique claro.
Mas
o comunismo soviético foi mais longe, saiu das fronteiras russas e estendeu-se
a numerosas regiões do mundo. Tudo parecia dar razão ao marxismo-leninismo
quando afirmava que o capitalismo seria inevitavelmente substituído pelo
socialismo e, este, pelo comunismo.
Aquela
que foi talvez a maior utopia do séc. XX parecia tornar-se realidade, mas teve
o mesmo destino de todas as utopias: alguns continuam a ver no comunismo um
sonho doce abruptamente interrompido, mas que pode ser retomado. Para muitos
outros, para muitos milhões de pessoas, num pesadelo sangrento que deve ser
definitivamente atirado para os lados da História.
Digo
deve ser definitivamente atirado para a História porque ainda continuam a
existir ilhas utópicas, sendo a Coreia do Norte a mais exótica.
Hoje,
a Rússia tem novos senhores que, nas palavras, não defendem utopias, mas preferem
falar em “ideia nacional”. Uma das componentes é a agitação do espantalho do
país rodeado de inimigos por todos lados, sitiado. Isto é uma das formas para
afastar as atenções dos cidadãos dos problemas reais do país. Fala-se na
necessidade de modernização do tecido económico, político e social, mas a
Rússia continua a perder vitalidade e posições no campo do desenvolvimento
científico.
A
chuva de petrodólares e petroeuros, que poderiam contribuir para a modernização
do país, somem-se nas areias sedentas da corrupção, do nepotismo.
Em
2000, no início do seu mandato, Vladimir Putin prometeu que a sua política
faria com que a Rússia ultrapassasse Portugal em 15 anos quanto ao nível de
vida, mas, não obstante a grave crise que afecta o nosso país, esse objectivo
não deverá ser conseguido.
Se
não forem tomadas medidas sérias e urgentes, a organização dos países BRICS
arrisca-se a perder a letra R.
Nos
anos 60 do séc. XX, o dirigente soviético Nikita Khrutchov prometeu aos
soviéticos que o seu país iria ultrapassar os Estados Unidos segundo todos os
parâmetros. E estes responderam com uma anedota retirada das boas regras de
comportamento nas estradas: “Se não está seguro, não ultrapasse”.
É
minha profunda convicção pessoal que a Rússia precisa de se concentrar em si,
de tratar das profundas chagas sociais e políticas de que sofre, tal como um
soldado gravemente ferido. Para depois de recuperada, avançar e não perder a
estafeta da modernidade, da inovação.
A
Rússia precisa de neutralizar pragas como o alcoolismo, que provocam a degradação
demográfica, o desequilíbrio na distribuição de rendimentos entre as várias
regiões da Federação, a fórmula da sadia convivência dos numerosos povos que a
habitam.
Para
isso necessita de um poder forte, mas democrático e renovável, que não leve os
russos a confundir quem é o Presidente e o primeiro-ministro, de uma sociedade
civil activa e participante. Resumindo, a Rússia deve deixar para trás as
utopias e olhar para objectivos bem mais humildes, mas mais eficazes, por
exemplo, o bem estar dos russos.
Se
isto for conseguido, a Rússia poderá também recuperar novas posições na
política internacional. Nesta sentido, Moscovo deve contar com o apoio da
Europa. Mas, para que isso aconteça, também é preciso que a União Europeia
resolva os seus problemas. Neste momento, não temos grande autoridade para
pregar sermões aos russos…
Será
caso para dizer, viremos a página e ouçamos o que de melhor vem da Rússia: a
música.
14 comentários:
Impérios são opressores, violentos e não respeitam a soberania de nações inteiras! Por um mundo não imperial, mas sim democráticos e com países com direitos iguais. Chega de tiranias mundias! Pela democratização do Conselho de Segurança da Onu!
O capitalismo esse sim é utópico, o capitalismo esse sim é um sistema desumano e mais cruel de toda a história que faz sofrer e mata por razões egoístas muitas pessoas , o capitalismo é que deve ser posto de lado da história.
Essa velha história de vir condenar o regime socialista na URSS com as acções de Estaline também já não cola, porque qualquer pessoa esclarecida sabe que Estaline afinal não foi tão "cruel, autoritário e assassino" como alguns "democratas" tentam fazer crer.
Já há provas encontradas pelo historiador Grover Furr, que comprovam que Nikita Khrushchev mentiu sobre Estaline no discurso secreto.
Muito interessante, sem dúvida, a palestra. Aborda uma série de facetas que às vezes, quando falamos da Rússia, não temos em conta, o que leva a sermos superficiais. Houve quem dissesse que todos os países grandes têm uma psicologia especial: uma auto-estima nacional extremada.Ela conduz a relações tensas com os vizinhos e também a guerras de "alargamento do território". A utopia na Rússia nasce facilmente - as pessoas são sedentas de ideias e aceitam líderes que as conduzam porque a imensidão e a complexidade é mais facilmente controlada com um poder forte. Muitas vezes essa aceitação não é assim tão voluntária como parece mas produto da acção impositiva de um Estado poderoso (como é o caso do atual presidente eleito). A Rússia é um país enorme, para o bem e para o mal. A grandeza física dá, em certos casos, origem a grandeza cultural e espiritual. Noutros casos, gera a autocracia e o poder desmesurado do Estado. Ao viver na Rússia nunca deixamos de ter a sensação de ser um país de extremos: de coisas fantásticas, que não há em mais lado nenhum, como a sua cultura e as suas paisagens, e de coisas deploráveis. Podemos louvar umas e não aceitar outras? Naturalmente.
Em relação á musica não posso concordar mais.
Eu pessoalmente em tempos dediquei-me a "piratear" diversos estilos de musica Russa.
E tenho uma enorme colecção de CD's pirateados. Eu sei que é crime, mas cá em Portugal não há á venda.
Gosto das canções patrióticas do coro do exercito Russo(Re Army choir).
Musica classica, como Tchaikovsky, borodin, Glinka, Sviridov, 09 - Rimsky-Korsakov etc.
O Tenor Hvorostovski é do melhor que há.
Tenho ainda outras coisas mais antigas como Boris Rubashkin, Anna German,B.Shtokolov,Sasha Zelkin etc.
Adoro a assombrosa Zanna Bichevskaya.
De musica mais recente adoro o trabalho de um jovem chamado Peter Nalitch. É simplesmente fantástico. Se o rapaz fosse inglês já tinha batido todos os recordes de vendas e recebido honrosas aclamações.
Concordo consigo, JM, que a Rússia tem de melhorar enormemente ao nível interno, sobretudo na sua faceta social/comportamental. Não sei é se isso é possível de operar através da actuação política.
Não concordo, contudo, na questão de se utilizar uma hipotética agressão estrangeira como forma de desviar as atenções pois, como a História recente nos demonstra, há países, sobretudo os EUA, que procuram isolar o máximo possível a Rússia, colocando-lhe um verdadeiro colete de forças.
Música russa? Por favor nos poupe dessa tortura! Tirante a música clássica, a música russa é um horror! Francamente! Esse país é muito kitsch! Tudo lá é kitsch! Como um ocidental pode gostar daquilo tendo tão boa música no Ocidente? Na Alemanha, Austria Itália, França, Espanha...
Pq meu comentário nao foi postado?
Caro Europeísta, não postei, porque não recebi, reenvie.
No tocante á melhoria em vários aspectos sociais a Rússia realmente ainda tem um bom caminho pela frente. Com relação à política internacional a Rússia não deve mudar seu posicionamento e sim as nações que rastejam átrás da política externa dos Estados Unidos. Quanto à questão dos BRICS perderem o "R", hoje é mais plausível a União Européia perder o G, F e até mesmo o I, visto que a crise e a retórica da "união" só existirem mesmo no papel.
A Rússia não pode ser um país por si só? Sem precisar de mais ninguém?
Caro Wandard, se ler o que diz o PC do Brasil, os BRIC também perderão o B e o C. Conclusão: ainda havemos de ser nós, os portugueses, quem vai liderar o mundo. Enfim, é o Eterno Retorno revisitado - ou retornado.
Antonio,
No calor de todas as discussões o seu comentário foi o melhor em todos ests dias :o))
Constantinopla pertence por direito ao mundo ocidental. Não entendo como o Ocidente pode deixar Constantinopla cair nas mãos dos turcos. A queda de Constantinopla bem que pode servir como um aviso para Roma se prevenir, pois os muslos sempre sonharam com sua queda tb. Seria a cereja no bolo deles.
Constantinopla foi e é um símbolo da Helenismo, desde Alexandre, passando pelo Império Romano do Oriente e culminando com o Império Bizantino, aquela região representa uma cultura.
Até o nome da cidade os canalhas dos turcos mudaram. De Constantinopla passou a ser Istambul. Hoje a igreja de Santa Sofia foi transformada e mesquita e rodeada por minaretes. Uma pena!
Acho que o Patriarca ortodoxo ainda sonha com sua libertação. Eu tb. Numa espécie de devaneio sempre quis ver constantinopla passar a pertencer a Grécia, dividindo com Athenas o posto de capital da Grécia. Constantinopla, hoje Istambul, seria para os ortodoxos o que Roma representa para os católicos.
Isso seria uma revitalização para o país que certamente superaria a cirse em que se encontra atualmente. Nasceria então uma nova grécia: o verdadeiro e legítimo império do Leste!
"Europeísta", está tudo absolutamente correcto na sua ideia excepto a de que "Constantinopla pertence por direito ao mundo ocidental". Na verdade, Constantinopla pertence e sempre pertenceu ao mundo oriental, europeu, é certo, mas oriental.
Enviar um comentário