Texto enviado por João Gil Freitas:
"A crise que
se instalou na região autónoma da Crimeia tem sido encarada como o mais grave
problema afectando a segurança europeia desde o conflito balcânico.
Ao contrário
da guerra russo-georgiana de 2008, a tensão na península da Crimeia
ainda não atingiu
níveis de conflito armado directo, mas o seu potencial de ameaça
para a estabilidade
do continente europeu é comparativamente muito superior. Não está
em jogo apenas
a integridade territorial de um dos maiores e estrategicamente mais importantes
estados europeus – está em jogo o estado actual da própria
balança de poder na
Europa, cuja eventual alteração acarretará consequências que,
nesta altura, são
imprevisíveis.
A actual
situação na Crimeia pode ser analisada de várias perspectivas,
sendo que uma das
mais prementes está directamente relacionada com o modo com a Rússia tem feito
evoluir a sua posição como actor internacional.
Desde a
dissolução da URSS que a política externa adoptada pelo seu estado herdeiro, a
Federação Russa, tem sofrido uma gradual mas profunda mutação,
quer ao nível dos
seus princípios regulamentares quer ao nível do comportamento que o
país tem assumido
perante os diversos desafios com que se tem deparado.
Historicamente,
e designadamente desde o século XVIII, que são identificáveis na sociedade
russa duas grandes correntes de pensamento em torno daquilo que deve ser o lugar
do país na cena internacional: a corrente pró-Ocidental e a
corrente eslavófila.
Este debate civilizacional, que se estende até à Rússia
contemporânea, esteve
particularmente activo na década de noventa no seio das elites
russas, vindo a perder
fulgor desde a subida ao poder do Presidente Putin. Putin marcou de
facto uma mudança de
paradigma das relações internacionais do país, através da
inculcação progressiva
da ideia de que a Rússia pode e deve ocupar um lugar de destaque no concerto das
nações e fazer reflectir o seu estatuto de potência nos fóruns internacionais.
Com Putin, o pensamento das elites russas tendeu a cristalizar-se oficialmente
em torno de uma visão da Rússia mais eurasiática do que europeia.
O Eurasianismo,
mais do que uma mera expressão de identidade nacional – que também o é – vem
estruturar discursivamente a grandeza geopolítica do país.
Esta
concepção do estatuto internacional do país vem redundando no
difícil
equilíbrio
entre interesses alegadamente divergentes ou, se quisermos, entre o
desejo de pertença
à Europa e a auto-percepção como grande potência – este último acarretando
uma permanente possibilidade de conflito com blocos políticos tradicionalmente
contrários, como é o caso da UE e dos EUA.
Para
perceber muita da actual rectórica e postura internacional da Rússia
é necessário
recuar, pelo menos, até ao período imediatamente subsequente ao 11
de Setembro de
2001. O então recentemente empossado presidente russo foi dos
líderes mundiais que
mais cedo e mais contundentemente se colocou ao lado dos EUA. Para Putin,
tratava-se de uma oportunidade de ouro de recentralizar Moscovo nos
grandes fóruns internacionais, recolocando o país como interlocutor
igual entre os seus pares.
Depositando
uma generosa dose de confiança no Ocidente, nomeadamente nos EUA, o Kremlin
viu goradas as suas expectativas em recuperar esse lugar e, logo, o
prestígio e a
importância entretanto perdidos desde a queda da URSS. Cedo a Rússia
percebeu que o
Ocidente não lhe iria reconhecer o seu papel de potência reguladora
no espaço pós-soviético.
A desilusão com o Ocidente acabaria por resvalar para um antagonismo mais ou
menos evidente, que pressuporia a progressiva concepção de um
modelo económico,
político e mesmo normativo alternativo ao ocidental.
Sem uma
ideologia consistente e estruturada, o Kremlin desenvolveu todavia uma série
de princípios basilares sobre os quais poria em prática uma
renovada política
externa. A um discurso realista e marcadamente nacionalista, Moscovo
passou a
privilegiar na condução das suas relações internacionais uma
visão multipolar do Sistema
Internacional, por contraponto à unipolaridade dominante em torno
dos EUA.
A reeleição
de Putin em 2004 acabaria por substanciar este novo modelo comportamental
da Rússia. Com a consolidação do poder presidencial veio a renovação
da imagem de força do estado russo, a partir da contenção dos seus principais
problemas de segurança internos (leia-se: dos separatismos e da
ameaça islamita). A
recuperação do Kremlin como centro nevrálgico de poder veio
recuperar a autocracia
interna, e suprir a ancestral necessidade do país de um centro
referencial de poder. Na
visão da sociedade da nova liderança russa, a principal função do
Estado deve
privilegiar o controlo e não a representação da sociedade.
A partir
daqui, tornou-se possível a Moscovo redefinir as suas prioridades de política
externa, permitindo-se fazer prevalecer as ameaças externas em
detrimento das ameaças
internas. O objectivo último do Kremlin é desde então o de
prevenir o surgimento
de regimes anti-russos na sua periferia, e de evitar a propagação
desses
mesmos
modelos para a própria Rússia.
É nesta
linha que pode ser entendida a acção do Kremlin perante desafios de segurança
externa como os das revoluções coloridas de 2003 e 2004, da Geórgia
em 2008, e os
actuais acontecimentos na Ucrânia. Entre estes desafios à sua
segurança, percepcionados
como uma afronta ao seu estatuto internacional, é possível
identificar um padrão
de comportamento, que pode ser interpretado, precisamente, à luz do
que foi a
transformação interna da Rússia ao longo dos anos 2000 e,
subsequentemente, da sua
política externa.
No caso da
Crimeia, é sem surpresa que o precedente kosovar é
permanentemente
apontado como factor legitimador do discurso e da acção de Moscovo.
Desde há vários anos que a Rússia tem procurado promover e impor o
seu próprio
código de valores, procurando projectar uma imagem de “normalidade”,
à semelhança
da Europa e dos EUA. As actuais elites russas não acreditam na
capacidade do país de
adoptar como suas as práticas, normas e valores políticos e
económicos do Ocidente. A
prossecução do seu próprio código de valores tem consequências
directas na sua acção externa. Assim se entende a propensão para o
recurso à força militar como
instrumento de imposição dos seus interesses.
O caso da
Crimeia traduziu-se rapidamente em mais uma oportunidade para a Rússia de
mostrar a sua assertividade e evidenciar a eficácia dos seus
instrumentos de política
externa. A tensão naquela península deve ser interpretada num
quadro de ressurgimento
da Rússia enquanto actor internacional a ter em conta na definição
dos equilíbrios
de poder mundiais. Esse ressurgimento é um processo em curso, no
qual a Crimeia se
afirma agora como uma importante peça de xadrez. A crise nesta
península
vem provar
que a realpolitik não é um jogo do passado; ao invés, vem
relembrar-nos que a
propensão para o conflito permanece uma realidade na Europa.
Infelizmente,
e atendendo aos níveis de antagonismo latente que estão em jogo – tal
como em 1914 – essa propensão parece perigosamente próxima de uma inevitabilidade."
3 comentários:
Excelente artigo, J. Milhazes. Este blogue é de facto uma referência. Continue assim, se lhe for possível. Contamos consigo!
O artigo está inteiramente correcto excepto num pensamento:
"As actuais elites russas não acreditam na capacidade do país de adoptar como suas as práticas, normas e valores políticos e económicos do Ocidente. A prossecução do seu próprio código de valores tem consequências directas na sua acção externa. Assim se entende a propensão para o recurso à força militar como instrumento de imposição dos seus interesses."
Na verdade, a utilização da força é apanágio de vários países (aqueles que a podem exercer com uma certa impunidade), e diga-se de passagem que nos anos mais recentes, a força tem sido utilizada, sobretudo, como instrumento da política externa das Democracias: EUA, RU e França.
A força, bem assim como a diplomacia, a economia e outras formas de soft power, é apenas um dos vários instrumentos à disposição dos Estados para fazer impor a sua vontade.
No caso da Rússia, como está bem apontado no artigo, há a necessidade de reimpor o país como grande actor na cena internacional, é certo, mas há, sobretudo, a necessidade premente, objectivamente vital, de assegurar um "espaço de defesa", não só de protecção ao "centro nevrálgico" do território russo, como também de projecção de poder, algo a que a Crimeia se presta bastante bem (daí o seu enorme interesse estratégico).
Em todo o caso, gostei da análise.
O artigo está inteiramente correcto excepto num pensamento:
"As actuais elites russas não acreditam na capacidade do país de adoptar como suas as práticas, normas e valores políticos e económicos do Ocidente. A prossecução do seu próprio código de valores tem consequências directas na sua acção externa. Assim se entende a propensão para o recurso à força militar como instrumento de imposição dos seus interesses."
Na verdade, a utilização da força é apanágio de vários países (aqueles que a podem exercer com uma certa impunidade), e diga-se de passagem que nos anos mais recentes, a força tem sido utilizada, sobretudo, como instrumento da política externa das Democracias: EUA, RU e França.
A força, bem assim como a diplomacia, a economia e outras formas de soft power, é apenas um dos vários instrumentos à disposição dos Estados para fazer impor a sua vontade.
No caso da Rússia, como está bem apontado no artigo, há a necessidade de reimpor o país como grande actor na cena internacional, é certo, mas há, sobretudo, a necessidade premente, objectivamente vital, de assegurar um "espaço de defesa", não só de protecção ao "centro nevrálgico" do território russo, como também de projecção de poder, algo a que a Crimeia se presta bastante bem (daí o seu enorme interesse estratégico).
Em todo o caso, gostei da análise.
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