terça-feira, março 11, 2014

A Crise da Crimeia – Uma Interpretação a partir do Kremlin

 Texto enviado por João Gil Freitas:

"A crise que se instalou na região autónoma da Crimeia tem sido encarada como o mais grave problema afectando a segurança europeia desde o conflito balcânico. Ao contrário da guerra russo-georgiana de 2008, a tensão na península da Crimeia ainda não atingiu níveis de conflito armado directo, mas o seu potencial de ameaça para a estabilidade do continente europeu é comparativamente muito superior. Não está em jogo apenas a integridade territorial de um dos maiores e estrategicamente mais importantes estados europeus – está em jogo o estado actual da própria balança de poder na Europa, cuja eventual alteração acarretará consequências que, nesta altura, são imprevisíveis.
A actual situação na Crimeia pode ser analisada de várias perspectivas, sendo que uma das mais prementes está directamente relacionada com o modo com a Rússia tem feito evoluir a sua posição como actor internacional.
Desde a dissolução da URSS que a política externa adoptada pelo seu estado herdeiro, a Federação Russa, tem sofrido uma gradual mas profunda mutação, quer ao nível dos seus princípios regulamentares quer ao nível do comportamento que o país tem assumido perante os diversos desafios com que se tem deparado.
Historicamente, e designadamente desde o século XVIII, que são identificáveis na sociedade russa duas grandes correntes de pensamento em torno daquilo que deve ser o lugar do país na cena internacional: a corrente pró-Ocidental e a corrente eslavófila. Este debate civilizacional, que se estende até à Rússia contemporânea, esteve particularmente activo na década de noventa no seio das elites russas, vindo a perder fulgor desde a subida ao poder do Presidente Putin. Putin marcou de facto uma mudança de paradigma das relações internacionais do país, através da inculcação progressiva da ideia de que a Rússia pode e deve ocupar um lugar de destaque no concerto das nações e fazer reflectir o seu estatuto de potência nos fóruns internacionais. Com Putin, o pensamento das elites russas tendeu a cristalizar-se oficialmente em torno de uma visão da Rússia mais eurasiática do que europeia. O Eurasianismo, mais do que uma mera expressão de identidade nacional – que também o é – vem estruturar discursivamente a grandeza geopolítica do país.
Esta concepção do estatuto internacional do país vem redundando no difícil
equilíbrio entre interesses alegadamente divergentes ou, se quisermos, entre o desejo de pertença à Europa e a auto-percepção como grande potência – este último acarretando uma permanente possibilidade de conflito com blocos políticos tradicionalmente contrários, como é o caso da UE e dos EUA.
Para perceber muita da actual rectórica e postura internacional da Rússia é necessário recuar, pelo menos, até ao período imediatamente subsequente ao 11 de Setembro de 2001. O então recentemente empossado presidente russo foi dos líderes mundiais que mais cedo e mais contundentemente se colocou ao lado dos EUA. Para Putin, tratava-se de uma oportunidade de ouro de recentralizar Moscovo nos grandes fóruns internacionais, recolocando o país como interlocutor igual entre os seus pares.
Depositando uma generosa dose de confiança no Ocidente, nomeadamente nos EUA, o Kremlin viu goradas as suas expectativas em recuperar esse lugar e, logo, o prestígio e a importância entretanto perdidos desde a queda da URSS. Cedo a Rússia percebeu que o Ocidente não lhe iria reconhecer o seu papel de potência reguladora no espaço pós-soviético. A desilusão com o Ocidente acabaria por resvalar para um antagonismo mais ou menos evidente, que pressuporia a progressiva concepção de um modelo económico, político e mesmo normativo alternativo ao ocidental.
Sem uma ideologia consistente e estruturada, o Kremlin desenvolveu todavia uma série de princípios basilares sobre os quais poria em prática uma renovada política externa. A um discurso realista e marcadamente nacionalista, Moscovo passou a privilegiar na condução das suas relações internacionais uma visão multipolar do Sistema Internacional, por contraponto à unipolaridade dominante em torno dos EUA.
A reeleição de Putin em 2004 acabaria por substanciar este novo modelo comportamental da Rússia. Com a consolidação do poder presidencial veio a renovação da imagem de força do estado russo, a partir da contenção dos seus principais problemas de segurança internos (leia-se: dos separatismos e da ameaça islamita). A recuperação do Kremlin como centro nevrálgico de poder veio recuperar a autocracia interna, e suprir a ancestral necessidade do país de um centro referencial de poder. Na visão da sociedade da nova liderança russa, a principal função do Estado deve privilegiar o controlo e não a representação da sociedade.
A partir daqui, tornou-se possível a Moscovo redefinir as suas prioridades de política externa, permitindo-se fazer prevalecer as ameaças externas em detrimento das ameaças internas. O objectivo último do Kremlin é desde então o de prevenir o surgimento de regimes anti-russos na sua periferia, e de evitar a propagação desses
mesmos modelos para a própria Rússia.
É nesta linha que pode ser entendida a acção do Kremlin perante desafios de segurança externa como os das revoluções coloridas de 2003 e 2004, da Geórgia em 2008, e os actuais acontecimentos na Ucrânia. Entre estes desafios à sua segurança, percepcionados como uma afronta ao seu estatuto internacional, é possível identificar um padrão de comportamento, que pode ser interpretado, precisamente, à luz do que foi a transformação interna da Rússia ao longo dos anos 2000 e, subsequentemente, da sua política externa.
No caso da Crimeia, é sem surpresa que o precedente kosovar é
permanentemente apontado como factor legitimador do discurso e da acção de Moscovo. Desde há vários anos que a Rússia tem procurado promover e impor o seu próprio código de valores, procurando projectar uma imagem de “normalidade”, à semelhança da Europa e dos EUA. As actuais elites russas não acreditam na capacidade do país de adoptar como suas as práticas, normas e valores políticos e económicos do Ocidente. A prossecução do seu próprio código de valores tem consequências directas na sua acção externa. Assim se entende a propensão para o recurso à força militar como instrumento de imposição dos seus interesses.
O caso da Crimeia traduziu-se rapidamente em mais uma oportunidade para a Rússia de mostrar a sua assertividade e evidenciar a eficácia dos seus instrumentos de política externa. A tensão naquela península deve ser interpretada num quadro de ressurgimento da Rússia enquanto actor internacional a ter em conta na definição dos equilíbrios de poder mundiais. Esse ressurgimento é um processo em curso, no qual a Crimeia se afirma agora como uma importante peça de xadrez. A crise nesta península
vem provar que a realpolitik não é um jogo do passado; ao invés, vem relembrar-nos que a propensão para o conflito permanece uma realidade na Europa.
Infelizmente, e atendendo aos níveis de antagonismo latente que estão em jogo – tal como em 1914 – essa propensão parece perigosamente próxima de uma inevitabilidade." 

3 comentários:

Viriatus disse...

Excelente artigo, J. Milhazes. Este blogue é de facto uma referência. Continue assim, se lhe for possível. Contamos consigo!

Pippo disse...

O artigo está inteiramente correcto excepto num pensamento:

"As actuais elites russas não acreditam na capacidade do país de adoptar como suas as práticas, normas e valores políticos e económicos do Ocidente. A prossecução do seu próprio código de valores tem consequências directas na sua acção externa. Assim se entende a propensão para o recurso à força militar como instrumento de imposição dos seus interesses."

Na verdade, a utilização da força é apanágio de vários países (aqueles que a podem exercer com uma certa impunidade), e diga-se de passagem que nos anos mais recentes, a força tem sido utilizada, sobretudo, como instrumento da política externa das Democracias: EUA, RU e França.

A força, bem assim como a diplomacia, a economia e outras formas de soft power, é apenas um dos vários instrumentos à disposição dos Estados para fazer impor a sua vontade.

No caso da Rússia, como está bem apontado no artigo, há a necessidade de reimpor o país como grande actor na cena internacional, é certo, mas há, sobretudo, a necessidade premente, objectivamente vital, de assegurar um "espaço de defesa", não só de protecção ao "centro nevrálgico" do território russo, como também de projecção de poder, algo a que a Crimeia se presta bastante bem (daí o seu enorme interesse estratégico).

Em todo o caso, gostei da análise.

Pippo disse...

O artigo está inteiramente correcto excepto num pensamento:

"As actuais elites russas não acreditam na capacidade do país de adoptar como suas as práticas, normas e valores políticos e económicos do Ocidente. A prossecução do seu próprio código de valores tem consequências directas na sua acção externa. Assim se entende a propensão para o recurso à força militar como instrumento de imposição dos seus interesses."

Na verdade, a utilização da força é apanágio de vários países (aqueles que a podem exercer com uma certa impunidade), e diga-se de passagem que nos anos mais recentes, a força tem sido utilizada, sobretudo, como instrumento da política externa das Democracias: EUA, RU e França.

A força, bem assim como a diplomacia, a economia e outras formas de soft power, é apenas um dos vários instrumentos à disposição dos Estados para fazer impor a sua vontade.

No caso da Rússia, como está bem apontado no artigo, há a necessidade de reimpor o país como grande actor na cena internacional, é certo, mas há, sobretudo, a necessidade premente, objectivamente vital, de assegurar um "espaço de defesa", não só de protecção ao "centro nevrálgico" do território russo, como também de projecção de poder, algo a que a Crimeia se presta bastante bem (daí o seu enorme interesse estratégico).

Em todo o caso, gostei da análise.