A Páscoa é
talvez aquela festa religiosa que mais recordações deixou na minha
memória, recordações felizes.
O momento
mais marcante era a “Procissão do Senhor Morto”, na Póvoa de
Varzim, que me incutia terror na infância. O barulho das pesadas
roletas transportadas por homens vestidos de negro e encarapuçados,
bem como os cânticos cortantes como finas lâminas de Maria Madalena
(não tenho a certeza se é esta que canta nessa procissão, mas
penso que sim) faziam-me tremer de medo, obrigavam-me a esconder por
detrás dos adultos, mas não faltava a nenhuma.
Depois, era
a “ida à hera”, organizada por algum dos adultos da família.
Saíamos da Poça da Barca-Caxinas depois do almoço e íamos colher
hera para o lado dos arcos, onde hoje se encontra o estádio do Rio
Ave. Naquela altura, era ainda uma boa caminhada, pois as estradas
eram poucas e a hera ainda só crescia nos muros das aldeias, por
exemplo, em Argivai.
A hera
constituía um atributo importante da festa, pois servia para
enfeitar a entrada das casas, onde toda a família esperava o
“passo” com a cruz, era uma espécie de tapete improvisado para
dar solenidade ao momento. O soar da sineta era como um toque a
chamar para a parada, pois todos os membros da família deviam estar
presentes e esperar pela sua vez para beijar a cruz.
Quando
estudava no seminário, tive a oportunidade de participar no “passo”
da Senhora da Lapa, paróquia então dirigida pelo Padre Telmo,
recentemente falecido. De opa vermelha e preta vestida, lá andávamos
de casa em casa a “levar o Senhor”. Praticamente todos queriam
oferecer alguma coisa além da esmola ao padre e acompanhantes: uns
doces, um copo de vinho do Porto, dependia das possibilidades dos
donos. Em algumas casas, era obrigatória uma paragem mais longa,
pois tratava-se de alguma família mais ilustre da terra. Por
exemplo, a casa da família Quintas era a que merecia maior atenção.
Isto tudo
para dizer que, depois de tantas insistências, não havia corpo que
resistisse a tanta oferta e, para o fim, as pernas já sentiam não
só cansaço, mas alguma falta de equilíbrio. Não se tratava de
bebedeiras, mas um copinho aqui, outro ali, deixava marcas em
qualquer jovem de 13 ou 14 anos, a minha idade da altura.
Normalmente,
na Senhora da Lapa, o “passo” era feito à tarde e, por isso,
ainda havia tempo para deliciar um almoço melhorado, feito pela
minha avó e pela minha mãe. Não me consigo recordar qual era o
prato principal, mas, nesse dia, certamente que era carne, pois nos
restantes dias da semana era apenas peixe e bacalhau.
Depois do
almoço, quando o Sol brilhava, porque havia Páscoas em que São
Pedro parecia não controlar o tempo e deixava cair chuva, as pessoas
saíam para a rua para jogar à péla. Colocavam um banco deitado no
meio do caminho, pegavam numa bola de borracha, formavam duas equipas
e toca a praticar um desporto que dizem ter vindo da corte francesa,
mas não sei de que maneira chegou aos bairros piscatórios da Póvoa
de Varzim e Caxinas. Normalmente, jogavam solteiros contra casados,
mas sempre muito a sério, com acesas disputas sobre se a bola bateu
ou não no banco, se alguém a apanhou correctamente, etc.
Claro que
não me podia esquecer da “rosca de trigo” (folar) pascal,
embora, neste campo, eu não “tivesse grande sorte”. Nesse dia,
era costume ir visitar os padrinhos para receber uma rosca de trigo
ou pão de ló, bem como algumas moedas ou até uma nota de Santo
António. Ora, como o meu padrinho era o Senhor na Agonia, cujo altar
se encontra na Igreja da Senhora da Lapa, era lá que eu tinha de ir
buscar a minha “rosca”. Antes de o fazer, a minha mãe prevenia
qual a cor do laço que decorava a rosca que eu devia trazer. Quando
criança, ficava muito intrigado porque é que uns afilhados do
Senhor na Agonia recebiam pão de ló e outros roscas, mas só mais
tarde vim a compreender que Jesus nada tinha a ver com isso e que
tudo dependia das algibeiras dos pais.
Como a minha
madrinha vivia em Matosinhos (então, vila piscatória muito afastada
da Póvoa) e os padrinhos dos restantes seis irmãos eram da terra,
eu era o “mais desafortunado”.
Depois foi a
ida para a União Soviética em 1977 e, após essa data, nunca mais
tive oportunidade de passar a Páscoa na Póvoa ou nas Caxinas.
Na URSS, só
me lembro da Páscoa por motivos completamente diferentes. Recordo-me
que, nessa altura, poucos soviéticos se arriscavam a ir à Missa da
Ressurreição nos poucos templos abertos para mostrar que no país
existia liberdade religiosa. Em Moscovo, isso implicava ser
identificado pela milícia que cercava os templos e problemas
posteriores no trabalho ou nos estudos. Como eu estudava na
Universidade Estatal de Moscovo (Lomonossov), sabia que, se um
estudante soviético ousasse ir às celebrações, seria alvo de
repreensão ou até mesmo de expulsão da escola. Claro que esta
norma não abrangia os estrangeiros para não fazer estalar o verniz
das “mais amplas liberdades democráticas”.
Mas para
desviar ainda mais as atenções dos soviéticos das celebrações
pascais, a televisão transmitia, à meia noite de Sábado para
Domingo, o programa “Melodias da Música Ligeira Estrangeira”,
onde se podiam ver clips de cantores que muito raramente se podiam
ouvir no país, para já não falar em concertos ao vivo. Recordo-me
de nomes como os “Abba”, Joe Dassin, Beatles, etc.
Agora, todos
podem festejar a Páscoa, embora em Domingos diferentes. Hoje,
festejam os católicos protestantes e hebreus, no próximo Domingo,
os cristãos ortodoxos. Feliz Páscoa para todos os meus amigos:
católicos, ortodoxos, judeus, protestantes e ateus.
1 comentário:
Feliz Páscoa ao José Milhazes.
Recordo que em Sevilha, em 1932, uma época de amplas republicanas, apenas saiu uma procissão a que os comunistas alvejaram a tiro.
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