domingo, abril 05, 2015

As Páscoas que já lá vão



A Páscoa é talvez aquela festa religiosa que mais recordações deixou na minha memória, recordações felizes.
O momento mais marcante era a “Procissão do Senhor Morto”, na Póvoa de Varzim, que me incutia terror na infância. O barulho das pesadas roletas transportadas por homens vestidos de negro e encarapuçados, bem como os cânticos cortantes como finas lâminas de Maria Madalena (não tenho a certeza se é esta que canta nessa procissão, mas penso que sim) faziam-me tremer de medo, obrigavam-me a esconder por detrás dos adultos, mas não faltava a nenhuma.
Depois, era a “ida à hera”, organizada por algum dos adultos da família. Saíamos da Poça da Barca-Caxinas depois do almoço e íamos colher hera para o lado dos arcos, onde hoje se encontra o estádio do Rio Ave. Naquela altura, era ainda uma boa caminhada, pois as estradas eram poucas e a hera ainda só crescia nos muros das aldeias, por exemplo, em Argivai.
A hera constituía um atributo importante da festa, pois servia para enfeitar a entrada das casas, onde toda a família esperava o “passo” com a cruz, era uma espécie de tapete improvisado para dar solenidade ao momento. O soar da sineta era como um toque a chamar para a parada, pois todos os membros da família deviam estar presentes e esperar pela sua vez para beijar a cruz.
Quando estudava no seminário, tive a oportunidade de participar no “passo” da Senhora da Lapa, paróquia então dirigida pelo Padre Telmo, recentemente falecido. De opa vermelha e preta vestida, lá andávamos de casa em casa a “levar o Senhor”. Praticamente todos queriam oferecer alguma coisa além da esmola ao padre e acompanhantes: uns doces, um copo de vinho do Porto, dependia das possibilidades dos donos. Em algumas casas, era obrigatória uma paragem mais longa, pois tratava-se de alguma família mais ilustre da terra. Por exemplo, a casa da família Quintas era a que merecia maior atenção.
Isto tudo para dizer que, depois de tantas insistências, não havia corpo que resistisse a tanta oferta e, para o fim, as pernas já sentiam não só cansaço, mas alguma falta de equilíbrio. Não se tratava de bebedeiras, mas um copinho aqui, outro ali, deixava marcas em qualquer jovem de 13 ou 14 anos, a minha idade da altura.
Normalmente, na Senhora da Lapa, o “passo” era feito à tarde e, por isso, ainda havia tempo para deliciar um almoço melhorado, feito pela minha avó e pela minha mãe. Não me consigo recordar qual era o prato principal, mas, nesse dia, certamente que era carne, pois nos restantes dias da semana era apenas peixe e bacalhau.
Depois do almoço, quando o Sol brilhava, porque havia Páscoas em que São Pedro parecia não controlar o tempo e deixava cair chuva, as pessoas saíam para a rua para jogar à péla. Colocavam um banco deitado no meio do caminho, pegavam numa bola de borracha, formavam duas equipas e toca a praticar um desporto que dizem ter vindo da corte francesa, mas não sei de que maneira chegou aos bairros piscatórios da Póvoa de Varzim e Caxinas. Normalmente, jogavam solteiros contra casados, mas sempre muito a sério, com acesas disputas sobre se a bola bateu ou não no banco, se alguém a apanhou correctamente, etc.
Claro que não me podia esquecer da “rosca de trigo” (folar) pascal, embora, neste campo, eu não “tivesse grande sorte”. Nesse dia, era costume ir visitar os padrinhos para receber uma rosca de trigo ou pão de ló, bem como algumas moedas ou até uma nota de Santo António. Ora, como o meu padrinho era o Senhor na Agonia, cujo altar se encontra na Igreja da Senhora da Lapa, era lá que eu tinha de ir buscar a minha “rosca”. Antes de o fazer, a minha mãe prevenia qual a cor do laço que decorava a rosca que eu devia trazer. Quando criança, ficava muito intrigado porque é que uns afilhados do Senhor na Agonia recebiam pão de ló e outros roscas, mas só mais tarde vim a compreender que Jesus nada tinha a ver com isso e que tudo dependia das algibeiras dos pais.
Como a minha madrinha vivia em Matosinhos (então, vila piscatória muito afastada da Póvoa) e os padrinhos dos restantes seis irmãos eram da terra, eu era o “mais desafortunado”.
Depois foi a ida para a União Soviética em 1977 e, após essa data, nunca mais tive oportunidade de passar a Páscoa na Póvoa ou nas Caxinas.
Na URSS, só me lembro da Páscoa por motivos completamente diferentes. Recordo-me que, nessa altura, poucos soviéticos se arriscavam a ir à Missa da Ressurreição nos poucos templos abertos para mostrar que no país existia liberdade religiosa. Em Moscovo, isso implicava ser identificado pela milícia que cercava os templos e problemas posteriores no trabalho ou nos estudos. Como eu estudava na Universidade Estatal de Moscovo (Lomonossov), sabia que, se um estudante soviético ousasse ir às celebrações, seria alvo de repreensão ou até mesmo de expulsão da escola. Claro que esta norma não abrangia os estrangeiros para não fazer estalar o verniz das “mais amplas liberdades democráticas”.
Mas para desviar ainda mais as atenções dos soviéticos das celebrações pascais, a televisão transmitia, à meia noite de Sábado para Domingo, o programa “Melodias da Música Ligeira Estrangeira”, onde se podiam ver clips de cantores que muito raramente se podiam ouvir no país, para já não falar em concertos ao vivo. Recordo-me de nomes como os “Abba”, Joe Dassin, Beatles, etc.

Agora, todos podem festejar a Páscoa, embora em Domingos diferentes. Hoje, festejam os católicos protestantes e hebreus, no próximo Domingo, os cristãos ortodoxos. Feliz Páscoa para todos os meus amigos: católicos, ortodoxos, judeus, protestantes e ateus.

1 comentário:

Lura do Grilo disse...

Feliz Páscoa ao José Milhazes.

Recordo que em Sevilha, em 1932, uma época de amplas republicanas, apenas saiu uma procissão a que os comunistas alvejaram a tiro.