As “lições” das tragédias
Não deve haver na Póvoa de Varzim
qualquer família piscatória que não tenha perdido alguns dos seus entes
queridos no terrível naufrágio de 27 de Fevereiro de 1892.
Quando passo por detrás da Igreja
de Nossa Senhora da Lapa, quase nunca esqueço de olhar uma vez mais e ler a
"Supplica" gravada em azulejos pela alma das dezenas de homens do mar
que partiram e não regressaram vivos. Foram 105 (cento e cinco pescadores)
engolidos pelas ondas.
Deixo aqui aquilo que foi escrito
por um dos mais ilustres estudiosos poveiros. António dos Santos Graça, na obra
“Epopeia dos Humildes: para a história trágico-marítima dos poveiros” escreveu:
“ A tragédia de 27 de Fevereiro
de 1892 fez mergulhar em negro o garrido trajar poveiro. Não houve lar onde não
entrasse o luto. Heroicidade, abnegação, de tudo houve nesse dia de angústia! A
tempestade surpreendeu as lanchas no mar da Cartola a sudoeste de Aveiro. Duas
lanchas, a do tio Praga e a do tio Jéque, caminhavam a par, apenas com uma
latina, a caminho do norte. Tinham que seguir como Deus fosse servido, porque
não havia força humana que as pudesse desviar do seu curso tempestuoso. Sem um
minuto de descanso, os homens das companhas esforçavam-se para deitar fora a
água, que as vagas alterosas teimavam em atirar para dentro das embarcações. Os
mestres eram compadres e amigos. As companhas afoitavam-se mutuamente para não
esmorecerem. Mas uma – a do mestre Jéque – pelas alturas de Esposende,
encheu-se de água e soçobra; a outra tenta, mas não pode acudir-lhe. É o mestre
da que naufraga que grita:
– ‘Não tentes o socorro,
compadre, que morreis todos. Deus te guie e leve a salvamento! Leva o último
adeus para as nossas mulheres e nossos filhos! Até à eternidade, compadre!’
O velho mestre João Praga
levantou a mão num gesto de despedida mas não respondeu. Duas lágrimas
rolaram-lhe pela face – mas ninguém mais lhe ouviu uma palavra. Leme bem firme,
todo o dia e toda a noite até ao alvorecer do dia seguinte, em que entrou em
Vila Garcia, na Espanha. Salvou a companha. Dois dias depois chegava à Póvoa,
de comboio. Após a tragédia nunca mais comeu, nunca mais falou. Oito dias
depois da sua chegada – morria! A grande dor de não poder salvar – matou-o!...”
Como acontece depois de
catástrofes de grandes dimensões, as autoridades prometem resolver todos os
problemas e, dessa vez, anunciam o início da construção de um porto de abrigo
na Póvoa de Varzim, mas prometer é fácil, custa a cumprir. 33 anos depois da
tragédia, o sociólogo poveiro Vasques Calafate inicia uma intensa campanha em
favor da construção do porto de pesca, apoiando a proposta do deputado Santos
Graça para que se contraísse um empréstimo para a obra e sugerindo que se
cativasse 50 por cento do rendimento do pescado e se impusesse um imposto
progressivo de 5 a 100 escudos sobre prédios rústicos e urbanos para a
amortizaçãoo do empréstiino. Nada feito, viva-se tempos difíceis e os políticos
estavam mais virados para a luta pelo poder.
Em 1928 , graças ao grande
trabalho do incansável Santos Graça, foi criada a Junta Autónoma do Porto da
Póvoa de Varziin que nesse ano entrou em funcionamento. Pela denominada "
Lei dos Portos”, este porto foi classificado de 2" classe e a Comissão de
Obras Portuárias colocou-o em primeiro lugar, na zona norte, para ser
construído.
O início das obras (imaginem!)
teve lugar em 1935 e a construção, feita a conta gotas, terminou apenas em
1973. Primeiro foi o molhe norte, depois o molhe sul. Mas, mesmo assim, o porto
parece inacabado. Ou melhor, as obras terminaram, mas a manutenção deixa muito
a desejar. Em comparação com a imagem que guardo da minha infância, o porto de
pesca da Póvoa parece ser uma pequena marina cada vez mais assoreada. Por isso,
nos últimos anos, os pescadores morrem não por falta de portos de abrigo, mas
por falta de condições seguras de entrada nas barras. A incúria continua a
pagar-se cara e as tragédias não param de suceder.
1 comentário:
No seu livro "A Minha Aventura no País dos Sovietes" fui surpreendido com as
suas descrições da Póvoa do Varzim da sua infância, da forma limpa e generosa como narra a vida dos pescadores locais, incluindo os seus familiares, mas também do desprendimento com que expõe a sua passagem pelo seminário, etc.
Tudo isto explica que eu tenha lido muito mais do que me é habitual no próprio dia em que comprei o livro.
Já comecei a “acompanhá-lo por Moscovo” que era a minha curiosidade inicial. Espero que não me desiluda (muito) lá mais para a frente, quando entrar a fundo no discurso político – passe a ironia respeitosamente sarcástica.
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