segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Em memória de uma tragédia


As “lições” das tragédias

Não deve haver na Póvoa de Varzim qualquer família piscatória que não tenha perdido alguns dos seus entes queridos no terrível naufrágio de 27 de Fevereiro de 1892.
Quando passo por detrás da Igreja de Nossa Senhora da Lapa, quase nunca esqueço de olhar uma vez mais e ler a "Supplica" gravada em azulejos pela alma das dezenas de homens do mar que partiram e não regressaram vivos. Foram 105 (cento e cinco pescadores) engolidos pelas ondas.

Deixo aqui aquilo que foi escrito por um dos mais ilustres estudiosos poveiros. António dos Santos Graça, na obra “Epopeia dos Humildes: para a história trágico-marítima dos poveiros” escreveu:

“ A tragédia de 27 de Fevereiro de 1892 fez mergulhar em negro o garrido trajar poveiro. Não houve lar onde não entrasse o luto. Heroicidade, abnegação, de tudo houve nesse dia de angústia! A tempestade surpreendeu as lanchas no mar da Cartola a sudoeste de Aveiro. Duas lanchas, a do tio Praga e a do tio Jéque, caminhavam a par, apenas com uma latina, a caminho do norte. Tinham que seguir como Deus fosse servido, porque não havia força humana que as pudesse desviar do seu curso tempestuoso. Sem um minuto de descanso, os homens das companhas esforçavam-se para deitar fora a água, que as vagas alterosas teimavam em atirar para dentro das embarcações. Os mestres eram compadres e amigos. As companhas afoitavam-se mutuamente para não esmorecerem. Mas uma – a do mestre Jéque – pelas alturas de Esposende, encheu-se de água e soçobra; a outra tenta, mas não pode acudir-lhe. É o mestre da que naufraga que grita:

– ‘Não tentes o socorro, compadre, que morreis todos. Deus te guie e leve a salvamento! Leva o último adeus para as nossas mulheres e nossos filhos! Até à eternidade, compadre!’

O velho mestre João Praga levantou a mão num gesto de despedida mas não respondeu. Duas lágrimas rolaram-lhe pela face – mas ninguém mais lhe ouviu uma palavra. Leme bem firme, todo o dia e toda a noite até ao alvorecer do dia seguinte, em que entrou em Vila Garcia, na Espanha. Salvou a companha. Dois dias depois chegava à Póvoa, de comboio. Após a tragédia nunca mais comeu, nunca mais falou. Oito dias depois da sua chegada – morria! A grande dor de não poder salvar – matou-o!...”





Como acontece depois de catástrofes de grandes dimensões, as autoridades prometem resolver todos os problemas e, dessa vez, anunciam o início da construção de um porto de abrigo na Póvoa de Varzim, mas prometer é fácil, custa a cumprir. 33 anos depois da tragédia, o sociólogo poveiro Vasques Calafate inicia uma intensa campanha em favor da construção do porto de pesca, apoiando a proposta do deputado Santos Graça para que se contraísse um empréstimo para a obra e sugerindo que se cativasse 50 por cento do rendimento do pescado e se impusesse um imposto progressivo de 5 a 100 escudos sobre prédios rústicos e urbanos para a amortizaçãoo do empréstiino. Nada feito, viva-se tempos difíceis e os políticos estavam mais virados para a luta pelo poder.

Em 1928 , graças ao grande trabalho do incansável Santos Graça, foi criada a Junta Autónoma do Porto da Póvoa de Varziin que nesse ano entrou em funcionamento. Pela denominada " Lei dos Portos”, este porto foi classificado de 2" classe e a Comissão de Obras Portuárias colocou-o em primeiro lugar, na zona norte, para ser construído.

O início das obras (imaginem!) teve lugar em 1935 e a construção, feita a conta gotas, terminou apenas em 1973. Primeiro foi o molhe norte, depois o molhe sul. Mas, mesmo assim, o porto parece inacabado. Ou melhor, as obras terminaram, mas a manutenção deixa muito a desejar. Em comparação com a imagem que guardo da minha infância, o porto de pesca da Póvoa parece ser uma pequena marina cada vez mais assoreada. Por isso, nos últimos anos, os pescadores morrem não por falta de portos de abrigo, mas por falta de condições seguras de entrada nas barras. A incúria continua a pagar-se cara e as tragédias não param de suceder.

1 comentário:

antónio m p disse...

No seu livro "A Minha Aventura no País dos Sovietes" fui surpreendido com as
suas descrições da Póvoa do Varzim da sua infância, da forma limpa e generosa como narra a vida dos pescadores locais, incluindo os seus familiares, mas também do desprendimento com que expõe a sua passagem pelo seminário, etc.

Tudo isto explica que eu tenha lido muito mais do que me é habitual no próprio dia em que comprei o livro.

Já comecei a “acompanhá-lo por Moscovo” que era a minha curiosidade inicial. Espero que não me desiluda (muito) lá mais para a frente, quando entrar a fundo no discurso político – passe a ironia respeitosamente sarcástica.