... virar as costas, enquanto o rei, que se afastava de nós, virava-se de todas as vezes para receber a vénia»23.
É importante assinalar que nesta expedição participaram os oficiais Konstantin Torson e Dmitri Zavalichin, dois futuros participantes da Revolução Dezembrista de 25 de Dezembro de 1826, assim é conhecido na Rússia o movimento liberal que tentou derrubar o czar Nicolau I.
A passagem desses dois oficiais pelo Brasil influi fortemente na sua formação ideológica. No interrogatório a que foi sujeito depois da derrota da revolta, Konstantin Torson concretiza as razões que o levaram a aderir ao levantamento: «Vendo diferentes abusos e o desinteresse do governo em emendá-los por via legal, agindo individualmente, convenci-me da necessidade de agir em sociedade para conseguir esse objectivo; então Bestujev informou-me de que existe uma sociedade secreta, cujo objectivo consiste em, após reunir pormenores de abusos e baseando-se na defesa do direito de propriedade e de cada pessoa, elaborar um plano para emendá-los e esperar a morte natural do defunto imperador, informar de tudo o sucessor quando da coroação e convencê-lo a tomar as medidas propostas; considerando o objectivo da sociedade em conformidade com os meus desejos e tendo visto no Brasil um exemplo..., eu perguntei a Bestujev sobre as principais pessoas que dirigiam a sociedade»24.
Dmitri Zavalichin, um dos poucos dezembristas que sobreviveu ao desterro na Sibéria, deixou um diário com numerosas impressões sobre a sua passagem pelo Brasil. Ele escreve: «No Brasil, tinha muitas tarefas para realizar, mas eu queria, obrigatoria- mente, conhecer de mais perto a natureza tropical, que surpreendia mesmo as pessoas simples. Aprofundei-me nas florestas virgens, visitei frequentemente o imperador Dom Pedro, no Corcovado e na Serra de Estrela e, por fim, a nova plantação do nosso cônsul- geral Lamsdorf, e só eu de todos os oficiais podia acompanhá-lo nas excursões botânicas, porque aguentava tão bem o frio forte como o calor intenso»25.
Zavalichin conta um facto curioso que poderia ter consequências negativas na sua carreira militar: «Durante a nossa estadia no Brasil, deu-se um acontecimento que assustou fortemente os meus parentes com boatos infundados. É preciso dizer que, quando chegámos ao Brasil, nós encontrámos aí, no lugar de uma colónia portuguesa, um Império recentemente criado. Porém, o novo imperador não era ainda reconhecido por nenhum governo e, por conseguinte, não podíamos ter com ele contactos oficiais. Isso, todavia, não incomodava a prestação de serviços mútuos e, como realizávamos alguns trabalhos no estaleiro brasileiro, nós, pelo nosso lado, tínhamos de fornecer os nossos mestres. Nessa altura, Dom Pedro tinha pressa em armar a frota para rechaçar o presumível ataque dos portugueses e, diariamente, encontrava-se e conversava comigo no estaleiro. Ele tinha falta de bons oficiais navais e, pouco tempo antes, o tenente da armada inglesa Taylor passara ao seu serviço como comandante de corveta. Vendo o destaque de que eu gozava na fragata, Dom Pedro decidiu propor-me o mesmo posto de Taylor na frota brasileira. Claro que eu recusei, mas o caso tornou-se conhecido e, tendo chegado de forma distorcida à Rússia, preocupou os meus parentes, enquanto as cartas enviadas por mim não lhes esclareceu o que realmente deu origem ao boato, como se eu tivesse deixado a frota russa»26.
Mas não era só a paisagem exótica tropical que interessava ao oficial da marinha russa. Dmitri Zavalichin estudou também com atenção a situação política e social naquele território que pouco antes se tornara independente da Coroa de Portugal: «a nossa per- manência no Brasil tinha interesse vivo não só do ponto de vista do conhecimento de uma natureza completamente nova para nós, mas também no sentido político. Todas as questões políticas, internacionais e internas, bem como as sociais eram candentes e a situação do Brasil apresentava muitos factos evidentes para esclarecer essas questões, e a presença de um grande número de estrangeiros, bem como de navios militares de diferentes nações, permitia ouvir a discussão multilateral de qualquer fenómeno. Por muito que estivesse ocupado no meu serviço, não só com a carga e os fornecimentos para a fragata, mas também com as viagens às plantações para fazer compras, eu não perdia, porém, a oportunidade de conhecer pormenorizadamente a natureza e diferentes produ- ções, principalmente as próprias do Brasil, e seguir o movimento político e social. E se o conhecimento com o cônsul-geral e a excursão com ele eram para mim úteis do ponto de vista científico, para o estudo da natureza tropical, as visitas ao nosso vice-cônsul, casado com uma brasileira e que vivia de forma muito aberta, constituíram uma oportunidade suprema de observar os problemas políticos e sociais no seu movimento vivo. Todos os dias, quando o calor era forte, entre as 10 e as 4 horas, quando toda a actividade parava e todas as coisas paravam, todos dormem, eu refugiava-me nos limoeiros e laranjeiras no Corcovado e dedicava-me aí à leitura de jornais de todo o tipo, e, a falar verdade, era difícil aos outros compreender quando eu dormia, porque às seis ou tínhamos o jantar ou éramos convidados para os jantares que nos davam ou na cidade, ou em navios estrangeiros, e, ao jantar, até bem depois da meia noite, havia algum baile ou passeio. Não obstante, na manhã seguinte, às sete horas, eu já recebia em terra ou no escritório do cônsul ou no estaleiro todos os que tinham algum assunto ligado à expedição»27.
No interrogatório que se seguiu à derrota da revolta dezembrista, Dmitri Zavalichin declarou que a viagem ao Brasil lhe serviu também para ver as diferenças insuperáveis entre a situação nessa ex-colónia portuguesa e no seu país: «Frequentemente, por baixo do Sol claro do Brasil, eu descansava à sombra de limoeiros e laranjeiras, enquanto que os meus olhos gozavam com a paisagem dos campos cobertos de ananases. Mas poderia ser eu considerado uma pessoa inteligente se quisesse ver obrigatoriamente o mesmo nos países com meio ano de noite? No mundo da moral, tal como no mundo físico, há obstáculos insuperáveis»28.
23 Ibidem.24 Вопросы Комитета и Ответы К. Торсона. Апрель 1926 года. Востания Декабристов. Т. XIV. М. 1976, c. 201 (Perguntas do Comité e Respostas de K. Torson. Abril de 1926. Revolta dos Dezembristas. T. XIV. Moscovo, 1976, p. 201).25 Завалишин, Дмитрий. «Воспоминания». M. 2009, c. 85 (ZAVALICHIN, Dmitri – Memórias. Moscovo, 2009, p. 85).
26 Ibidem, p. 85-86.27 Ibidem, p. 86-87.28 «Дело Завалишинa, Д. И. Востания Декабристов». T. 3. M-Л. 1927, c. 239 (Dossier D. I. Zavalichin. Revolta dos Dezembristas. T. 3. M.-L. 1927, p. 239).
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