Vassili Golovnin
Konstantin Staniukovitch, oficial da marinha russa, fez uma longa viagem marítima, em 1860-1861, e passou também pela Madeira e Cabo Verde.
No livro «Viagem de Circum-navegação na Korchun», este escritor descreve como algo «fantástico», «irreal» a vista da cidade do Funchal a partir do mar: «As suas pequenas casas encostam-se uma às outras como celas numa colmeia, com uma coroa verde, e sobre elas altas montanhas verdes, onde aqui e ali se pavoneiam casas de campo e villas, mergu- lhadas em verdura. Numa das montanhas vê-se um mosteiro branco. E tudo isso cercado de árvores tropicais densas e onduladas».
Em Cabo Verde, Staniukovitch ficou apaixonado pelas mornas cabo-verdianas: «Um dos oficiais dirigiu-se ao português para pedir que transmitisse à dona de casa que todos lhe pediam que cantasse alguma canção popular negra. Quando o português lhe transmitiu o pedido, todas as mulheres abanaram afirmativamente a cabeça. Elas sussurraram entre si, talvez para escolher a canção. Por fim, decidiram-se. De súbito, os seus rostos fizeram-se sérios; elas apertaram as maçãs do rosto com as mãos e começaram a cantar muito baixi- nho. Era algo monótono, extremamente triste e que apertava a alma. Cantavam de forma suprema; as vozes eram jovens e frescas. Nessa canção melancólica ouvia-se lamentos silenciosos e uma tristeza profunda, cheia de resignação... E tudo isso era cantado em voz baixa, monocórdica, monótona. E mais lamentos e tristeza sem fim... Nem um só som maior, nem uma notinha de protesto! Os marinheiros russos sentiram algo de conhecido, familiar nessa canção. Faziam involuntariamente recordar as melancólicas canções russas. As negras cantaram assim durante um quarto de hora e calaram-se. – Então, gostaram? – perguntou o português com ironia. O português – amarelo, magro e antipático – olhou, perplexo, para os russos: mas que bárbaros no campo da música; será que gostaram?! – Qual a letra da canção? – revelou curiosidade Achanin, em quem a canção tinha provocado forte impressão. – As comuns queixas estúpidas: queixam-se dos brancos, têm pena dos irmãos escravos e mais ou menos nesse sentido. Os marinheiros estiveram sentados mais um quarto de hora e saíram, depois de terem pousado num prato uma moeda cada um, como agradecimento pela hospitalidade e o canto...»31.
Este artigo não pretende ser uma investigação exaustiva sobre o tema acima apontado, mas visa chamar a atenção para a existência de parte de um enorme espólio escrito referente às relações entre a Rússia e Portugal.
Neste trabalho, abordámos algumas das obras mais emblemáticas da história das viagens de circum-navegação russas, escritas por figuras relevantes como o almirante Ivan Kruzenshtern ou o escritor Ivan Gontcharov, mas trata-se de um número muito res- trito. Existem numerosos relatos de viagens publicados em livros e revistas ou à espera de publicação nos arquivos russos.
É de sublinhar que a literatura de viagens era extremamente popular na Rússia do século XIX, pois trazia visões e abordagens de países e civilizações distantes e exóticas. Já na literatura russa da segunda metade do século XVIII Portugal figura como um palco de aventuras e paixões.
Além disso, este tipo de literatura era um meio importante de transmissão de ideias novas vindas da Europa e da América. Esta foi uma das formas de entrada da Rússia das ideias liberais. As revoluções liberais em Portugal e Espanha, entre outras, tiveram influência significativa na sociedade russa do século XIX. A Revolta dos Dezembristas, de que acima falámos, é um dos exemplos mais flagrantes. (FIM)
31 Станюкович Константин, Михайлович. «Вокруг света на Коршуне». M. 1987, c. 119-136 (STANIUKOVITCH, Konstantin – Viagem de circum-navegação na «Korchun». M., 1987, p. 119-136).
1 comentário:
Muito interessante o que tem publicado sobre as relações entre a Rússia e Portugal. Conhecia já algumas das histórias, estas últimas, relacionadas com viagens, foram uma descoberta. Obrigado.
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