quarta-feira, setembro 19, 2018

NAVEGADORES RUSSOS E IMPÉRIO COLONIAL PORTUGUÊS


Kruzenshtern

Terminado o processo de centralização das terras russas em torno do Reino de Moscovo, os czares russos colocam a abertura de saídas para os mares navegáveis durante todo o ano como uma das suas prioridades da política externa. Isso tornou-se mais premente com o estabelecimento de contactos comerciais entre a Inglaterra e o Reino de Moscovo em 1553. O czar Ivan IV, o Terrível, cujo reinado se estendeu de 1545 a 1584, manteve prolongadas guerras contra a Suécia, Polónia e Lituânia para conseguir fixar-se nas costas do Mar Báltico, mas sem êxito. Essa tarefa foi bem realizada mais tarde pelo czar Pedro I, o Grande, que reinou entre 1695 e 1725, com a vitória na longa Guerra do Norte contra a Suécia, que se prolongou entre 1700 e 1721 e terminou com a conquista pela Rússia de parte significativa das costas do Báltico e da construção aí da nova capital do império: São Petersburgo. Ao mesmo tempo que se afirmava no Báltico, o Império Russo alargava-se até para o Pacífico, a Leste, e para o Mar Negro, a Sul.

A necessidade de ligações marítimas entre as várias regiões do Império, a luta contra os turcos, não só por terra, mas também através do Mar Mediterrâneo, e a instalação de colónias russas nas costas orientais da América do Norte, a procura de novos mercados comerciais levaram a Rússia a empreender viagens marítimas de circum-navegação. Os navios russos passaram a utilizar portos do extenso Império Colonial Português para se reabastecerem e estabelecerem contactos comerciais, estudos em vários ramos da ciência. Antes de passarmos à análise das várias viagens, é importante assinalar que neste estudo foram empregues, no fundamental, fontes escritas em russo: diários de bordo, memórias de viagens, cartas, etc. A primeira viagem de circum-navegação russa foi realizada entre 1803 e 1806 em dois navios: «Nadejda» e «Neva», sob o comando do almirante Ivan Kruzenshtern (1770-1846). Depois de deixar para trás o Continente Europeu e as Ilhas Canárias, os navios russos chegam à ilha de Santa Catarina a 21 de Dezembro de 1803. Kruzenshtern legou-nos um pormenorizado diário de bordo, onde fixou observações importantes sobre a passagem por terras brasileiras, nomeadamente a boa recepção de que foi alvo pelas autoridades locais: «O governador, Dom José de Currado, coronel português, com quem eu, Lissianski e vários oficiais fomos ter para apresentar cumprimentos, recebeu-nos com extrema simpatia. Mostrou-se imediatamente pronto em prestar-nos toda a ajuda possível. Enviou um sargento para cada um dos nossos navios e ordenou-lhes que ficassem à nossa disposição. Pegou na lista de todos os víveres de que necessitávamos e deu ordem a um oficial para adquiri-los o mais rapidamente possível em diferentes lugares da ilha e no continente. Ele foi tão atencioso que obrigou os seus homens a partirem lenha para nós; o que eu lhe tinha pedido especialmente, porque esse trabalho, devido ao forte calor, era extremamente penoso, podia prejudicar a saúde dos nossos serviçais. Ele permitiu-nos montar, na pequena ilha de Atomirice, o nosso observatório, que nos era bastante necessário, tanto para verificar o funcionamento dos cronómetros, que, durante a nossa viagem de Tenerife, divergia em todos, como para outras observações úteis, que o doutor Gorner esperava realizar no Hemisfério Sul do céu, ao qual os astrónomos têm acesso raramente» (1). Não escapou também à atenção do almirante russo o abandono a que estava deixada aquela ilha pela Coroa Portuguesa: «Mas cada viajante, embora eu não tenha tido oportunidade de falar pessoalmente com os portugueses cultos que vivem aqui, pode facilmente constatar que o governo português não presta nenhuma atenção a esta aldeia. Se isso é provocado pela política, então ela é indiscutivelmente a mais falsa; se isso decorre simplesmente do desprezo leviano, isso é ainda mais inaceitável. Que Portugal não vê, em geral, a utilidade que poderia ter das suas possessões nesta parte da Terra é uma verdade reconhecida por todos e não exige mais a mais pequena prova. Em todo o Brasil, a ilha de S. Catarina, com as aldeias que lhe pertencem na parte continental, é a parte destas possessões à qual o governo português nunca prestou particular atenção, embora ela não mereça esse desprezo devido à sua situação extremamente favorável, ao clima saudável, terra fértil e outras posições» (2). (continua…)

1 Крузенштерн, Иван Фёдорович «Путешествие вокруг света в 1803, 1804, 1805 и 1806 годах на кораблях Надежда и Нева». Москва, 2009 года, с. 58-59 (KRUZENSHTERN, Ivan – Viagem de circum-navegação nos navios «Nadejda» e «Neva». Moscovo, 2009, p. 58-59).

2 Ibidem, p. 61.

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