sexta-feira, agosto 25, 2006

Contributos para a História de Portugal - 18


"O nosso homem em Lisboa" de Eduard Kovaliov, agente do KGB soviético

"LIGAÇÕES NA ALTA SOCIEDADE" (cap.V)
Os meus conhecimentos neutros com os ministros portugueses e "famosidades da alta roda" trouxeram-me tanto momentos felizes como infelizes. Por exemplo, Mário Firmino Miguel, um dos candidatos a primeiro-ministro no Verão de 1974, depois da demissão do primeiro-ministro spinolista Palma Carlos, tornou-se um dos meus amigos mais próximos. Tratava-se de um homem honestíssimo, de grandes qualidades morais, fantástico, afável, muito atencioso, sempre pronto a ajudar este estrangeiro que se interessava vivamente pela vida do seu país. Contou-me muitas coisas interessantes sobre os portugueses, sobre a hua História, psicologia nacional. Era sempre gradável conversar com ele. Esperava-o uma brilhante carreira, pois tratava-se de um dos mais capazes oficiais do Exército Português e não estava ligado à política. Infelizmente, a sua morte permatura num acidente e viação na marginal entre Lisboa e o Estoril interrompeu a sua carreira de sucesso no campo militar: nessa altura, ele era comandante do Exército Português e sem dúvida que o esperava o mais alto posto militar no Estado: o de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.
Devo reconhecer abertamente que esta ligação oficial, "neutra", foi-me muito útil na qualidade de "capa" nos meus contactos com pessoas próximas dos americanos ou com funcionários das instituições americanas que tinham "interesse operativo" para nós.
Tinha igualmente relações excelentes com o então comandante do Exército Português, o general Carlos Fabião (antes da Revolução de Abril era coronel). Tratava-se de uma pessoa agradável e simpática, com um carácter meigo, desempenhou um papel importante no início dos acontecimentos revolucionários, mas, depois, como dizem, não conseguiu "aguentar-se à tona". A sua posição política indecisa, vacilante, pouco definida, as intrigas dos seus numerosos inimigos que ele não soube neutralizar, levaram-no, no fim de contas, à demissão.
Todavia, em ambiente informal, era um interlocutor interessante, profundo conhecedor da História, Geografia, Literatura e Arte portuguesas. Ele falou-me muito de Portugal, apresentou-me a numerosas pessoas interessantes. Cativava-me especialmente com a sua humildade.Lembro-me que, certa vez, quando eu fui convidado para sua casa e observava a sua querida colecção de soldadinhos de chumbo "de todas as épocas e povos", lancei um olhar rápido por uma metralhadora soviética AK-1, que estava pendurada na parede da sala.
"Eduardo, podes perguntar-me onde arranjei essa "kalachnikov"" - observou ele ao notar o meu interesse "secreto".
"Tive de prestar serviço nas selvas da Guiné-Bissau. Aí, nos combates com os guerrilheiros, arranjei esse troféu" - explicou-me Fabião, ficando incomodado, como que esperando de mim censuras por ter combatido contra os soldados da resistência nacional africana.
Mais um conhecimento agradável foi a minha relação com um dos dirigentes do MFA, o coronel e, depois, general Vasco Gonçalves, antigo-primeiro-ministro de Portugal desde os meados de 1974 a meados de 1975. Ele era a alma da ala progressista do MFA, adepto de transformações sociais decididas em Portugal. Homem de princípios, enérgico, encarnação de tudo o que as Forças Armadas portuguesas, que estiveram durante quase meio século sob o jugo férreo do fascismo salazarista, originaram de melhor; homem extremamente popular não só entre as classes desfavorecidas de Portugal (interesses que defendeu irredutivelmente quando no governo), mas também entre muitos intelectuais portugueses que defendiam uma via original de desenvolvimento do seu país, manifestavam-se contra a ditadura da NATO e dos Estados Unidos. As pessoas simples de Portugal chamavam-lhe com amor "companheiro Vasco", sabendo que o seu popular primeiro-ministro estava sempre atento às suas necessidades.
Com frequência, principalmente por altura das nossas festas revolucionárias soviéticas, entrevistei-o para a imprensa soviética. Não obstante estar muito ocupado, nunca me recusou. Aproximou-nos especialmente uma ocasionalidade agradável para mim: certa vez, no Verão de 1976, tive de viajar ao Norte de Portugal para realizar uma operação de espionagem.
Tendo em conta os grandes esforços por mim desenvolvidos em 1974 e 1975, os meus chefes "tiveram pena" de mim e autorizaram-me a passar, depois de cumprir a missão no Norte, dois ou três dias na Pousada de São Bento. E assim fiz, pois o meu "descanço" disfarçava maravilhosamente bem a minha viagem.
Qual não foi o meu espanto e alegria quando, um dia depois, nessa pousada apareceu o primeiro-ministro Vasco Gonçalves também para descansar. Claro que não macei o primeiro-ministro com perguntas, mas a sua permanência nesse lugar permitiu-me reforçar as nossas boas relações.
Elas mantiveram-se depois, quando, nos anos 80, trabalhei com Leonid Zamiatin na sua secção no CC do PCUS e, mais tarde, na Secção Internacional do PCUS, quando me encontrei várias vezes também com o antigo presidente Costa Gomes e com o próprio Vasco Gonçalves, que se tornaram militantes activos do movimento mundial pela paz.
Quando, em Novembro de 1990, quinze anos depois dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 : o fracasso do levantamento esquerdista em Lisboa, visitei novamente Portugal, estive na sua casa e falei com ele com especial satisfação. Não obstante a idade, Vasco Gonçalves continuava então a participar activamente no movimento português pela paz, a lutar energicamente pela coesão das forças de esquerda, progressistas do seu país. Constatei com alegria que a sua popularidade entre o povo simples não tinha diminuído: nas paredes das casas lisboetas perto da sua modesta residência na Av. dos estados unidos continuavam a haver pichagens com palavras elogiosas dirigidas a ele.

CONFRONTO DAS DUAS ESPIONAGENS NA CAPITAL REVOLUCIONÁRIA (cap.VI)

É curioso assinalar que se os americanos agiam em Portugal contra nós de forma bastante activa, nós praticamente limitavamos a nossa actividade contra a NATO (porque, perto de Lisboa, estava situado o quartel-general do Comando Ibérico da NATO na Península Ibérica (COMIBERLANT), onde se concentrava toda a actividade militar da NATO no Sul da Europa) e, claro está, abstínhamo-nos do trabalho activo contra os portugueses, limitando-nos à recolha de informação sobre os acontecimentos no país.
É necessário dizer que, nas suas acções em Portugal, todos os funcionários soviéticos tentavam partir, antes de tudo, da política oficial soviética. Esta política previa o desenvolvimento da amizade e da cooperação multilateral na base da igualdade soberana, respeito mútuo, não ingerência nos assuntos internos. A União Soviética não tinha intenções de ditar aos portugueses a forma como deviam organizar as suas próprias coisas. Partíamos do princípio que cada povo tem o completo direito soberano de decidir o seu destino. Isso tem uma explicação simples: nesse período, tinha primordial importância para a União Soviética a consecução e a realização dos acordos conseguidos na Conferência de Helsínquia para a Segurança e a Cooperação na Europa. É de assinalar particularmente o acordo sobre a "inviolabilidade de fronteiras" na Europa, em que Moscovo via ingenuamente a legitimação das transformações ocorridas neste continente depois da II Guerra Mundial. E qualquer "ingerência" nos assuntos portugueses, segundo Leonid Brejnev e outros dirigentes soviéticos, punha em perigo a débil possibilidade de consecução dos acordos de Helsínquia.
Nós recebíamos instruções neste sentido de Moscovo e do nosso Centro. Por isso, quaisquer invencionices sobre as acções da esponiagem soviética contra as autoridades portuguesas devem ser imediatamente postas de parte.
Quero lembrar aqui um exemplo anedótico da nossa "não ingerência" nos assuntos internos de Portugal, respeitante à Primavera extremamente seca de 1975. O forte calor no Norte do país queimou praticamente todos os tomateiros e a colheita dessses frutos ficou ameaçada, bem como a produção de um produto importante da exportação portuguesa: a pasta de tomate.
Certa vez, o major Victor Alves, um dos membros do Concelho da Revolução, ao conversar comigo, jornalista soviético, queixou-se da seca e pediu-me para ajudar os camponeses portugueses através do embaixador soviético e enviar rapidamente sementes de tomate da URSS, para "salvar este ramo de exportação da falência".
Claro que nós, através da embaixada, enviamos o respectivo pedido para Moscovo, mas os burocratas moscovitas "embrulharam" com êxito isso e não houve resposta da parte soviética. Na nossa próxima conversa, realizada pouco tempo depois, Victor Alves, depois de me agradecer educadamente pelas "preocupações", comunicou-me com alguma cerimónia vitoriosa que os americanos, com quem ele também tinha contactado a propósito, "já enviaram um avião com sementes" e os agricultores do Norte português estavam "salvos".
* * *
Todavia, considero que é precisamente a nossa política bem intencionada em relação a Portugal que explica o interesse e a boa vontade em relação a nós de muitos e muitos portugueses: tanto políticos, diplomatas, jornalistas, intelectuais, como simples cidadãos. Pode-se afirmar com certeza que desde o início que os jovens oficiais do Movimento das Forças Armadas olhavam com simpatia os nossos contactos com eles. Então, estabeleci com numerosos portugueses relações puramente de amizade que, claro está, não iam além e relações oficiais...
Não se pode deixar de falar aqui que, até há bem pouco tempo, em Portugal, se discutia um problema curioso ligado à tomada dos edifícios e arquivos da PIDE. Em Lisboa, afirmou-se que as listas dos agentes da PIDE teriam sido destruídas pelos próprios funcionários da PIDE antes da sua capitulação. Mas, na situação de cofusão e desordem que então reinava na sede da PIDE, dificilmente se poderá afirmar isso com certeza absoluta. Sem dúvida que poderia haver pessoas que entrassem no edifício e se tivessem apoderado dessas listas.
Escrevo isto, porque há outra versão "sensacional" do destino deste valioso espólio: nela insiste o conhecido funcionário da espionagem soviética dessa altura, o general de Oleg Kaluguin, que publicou as suas memórias no Ocidente. É sabido que ele era o chefe da contra-espionagem interna (ou serviço de segurança interna) no seio da espionagem soviética. Kaluguin, sem qualquer tipo de provas, afirma que os comunistas portugueses teriam "roubado" essas listas e as tinham entregue aos seus camaradas soviéticos. O agente Gundarev, outro nosso traidor que trabalhava em Portugal e, mais tarde, fugiu da Grécia para os EUA, apressou-se a confirmar publicamente essa versão.
Da minh parte, posso dizer que, enquanto trabalhei em Lisboa, não soube da operação de saída das listas da PIDE para a União Soviética nem do próprio Gundarev, nem de otros agentes nossos. Também não ouvi nada sobre o trabalho dos agentes da PIDE posteriormente "recrutados" para a espionagem soviética. Claro que isto não exclui completamente a "versão" de Kaluguin, mas gostaria de assinalar que, no meio da confusão, qualquer pessoa (e não só os comunistas portugueses) podia roubar as listas e, depois, entregá-las, ou, mais precisamente, vendê-las a quaisquer pessoas interessadas. Nomeadamente à espionagem soviética. Por isso, penso que qualquer pessoa podia ser o "vendedor"...
Por outro lado, "sujar" o Partido Comunista Português com a "cooperação" com os serviços secretos soviéticos era muito útil para os seus adversários em Portugal e para os americanos, nomeadamente para a CIA. Não aparece por acaso a "versão de Kaluguin" e a sua "confirmação" pela boca de Gundarev: ambos vivem hoje nos EUA, precisam de dinheiro e das boas relações para com eles da parte das autoridades americanas; por conseguinte fazem tudo para conseguir isso.
Uma coisa nos deve consolar em toda esta história: até agora não há provas claras de que muitos agentes da PIDE tenham sido "recrutados" e tenham passado a trabalhar para outro senhor.
Nós, agentes secretos dos mais diversos países, que invadiram a Lisboa revolucionária, "tivemos muita sorte": mostrou ser impossível reorganizar o aparelho desmantelado da PIDE e, por isso, os mais diversos serviços secretos trabalhavam em completa liberdade no Portugal revolucionário.
Posso dar um exemplo da minha própria experiência. Nos primeiros meses da minha permanência em Lisboa, procurando fontes de entrevistas para a imprensa soviética, entrei certa vez no edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, no Palácio das Necessidades. Depois de passar o controlo à entrada, comecei a vaguear pelos corredores do edifício à procura de algum responsável. De súbito, de forma completamente inesperada para mim, vi-me num amplo compartimento cheio de prateleiras, onde se encontravam grossos volumes encadernados. Tratava-se dos arquivos do MNE. Não havia ninguém por perto e eu podia ter levado alguns processos, tanto mais que trazia comigo uma volumosa saca e, então, em Portugal, ninguèm verificava nada aos estrangeiros. Travou-me apenas o receio de que tudo se podia tratar de uma "provocação contra um jornalista soviético". Claro que saí do edifício do MNE sem o saco cheio, mas com o texto de uma entrevista de um qualquer alto funcionário desse mistério que, no fim de contas, acabei por encontrar.
O caso por mim relatado confirma em que "ordem" agiam os novos poderes portugueses nos primeiros meses revolucionários. Agora, o leitor pode concluir quem e quando podia roubar as valiosas listas da PIDE.
Todavia, nessa altura, o mais sintomático era que no Portugal revolucionário se concentravam, como moscas no mel, magotes de jornalistas do Ocidente e do Leste. Não posso deixar de citar aqui alguns colegas ocidentais meus, cujo comportamento provocava nos nossos serviços secretos desconfianças legítimas. Aí trabalhava a conhecida jornalista americana Flora Lewis (não me recordo agora quem representava. Actualmente, ela escreve para o "Los Angeles Times" e para o "New York Herald Tribune". Ela estava ligada ao conhecido centro analítico "RAND Corporation", próximo da CIA americana). Entre os jornalistas britânicos vale a pena citar o conhecido James Pringle, que escrevia para os melhores jornais britânicos. Eu conheci-o pessoalmente em Cuba, nos anos 60. James falava razoavelmente bem russo e, quando o encontrei acidentalmente em Lisboa, perguntei-lhe porque razão ele estava em Portugal se não sabia sequer uma palavra portuguesa. Ele respondeu sem corar: "Eduardo, tu vieste para cá logo a seguir à vitória da revolução... A minha direcção enviou-me também para Lisboa para estar aqui contigo, "meu velho amigo".
Mais tarde, os britânicos enviaram para Portugal um jovem jornalista de talento. Não me recordo do seu nome, mas tratava-se de um simpático jovem católico e, por isso, teve acesso imediarto ao coração e intelecto dos dirigentes da Igreja Católica de Portugal e da resistência anticomunista conservadora no Norte do país. Destas minhas notas torna-se evidente a séria atenção concedida pelos serviços secretos ocidentais face ao desenvolvimento da situação em Portugal. Mas voltaremos a esse tema mais tarde.
Quem sabe, se a euforia das primeiras semanas e até meses seguros para nós em Portugal não tivesse durado tanto, os meus colegas de trabalho não teriam de lamentar azedamente depois os casos de fuga de informação (e talvez de traição directa) que tiveram lugar nos serviços secretos soviéticos em Lisboa.

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