quarta-feira, agosto 30, 2006

Contributos para a História de Portugal - 19


"O nosso homem em Lisboa" de Eduard Kovaliov, agente do KGB soviético

YANKEES NA CORTE PORTUGUESA (cap.VI)

No que respeita às acções dos serviços secretos americanos, claro que os seus agentes e colaboradores em Portugal tentavam de todas as formas comprometer-nos aos olhos das autoridades oficiais portuguesas e perante a opinião pública do país. Frequentemente, realizavam contra nós acções activas de desinformação. É preciso dizer que os representantes americanos não tinham pejo de recorrer a invencionices e boatos provocatórios sobre nós nas conversas com as autoridades portuguesas.
Pouco experientes nas intrigas dos serviços secretos, os oficiais do Conselho da Revolução, às vezes, perguntavam-me como que perplexos se "nós - eu e outros correspondentes soviéticos no país - não nos dedicavamos a actividade não permitida".
Um dos meus conhecidos "neutros" de então, o membro do Conselho da Revolução Sousa e Castro, perguntou-me certa vez, com um olhar malicioso, sobre isso. A minha resposta foi directa, simples e pronta: "Veja quantos materiais chegam aos telexes da TASS de Moscovo vindos de Lisboa e pode concluir que não fica tempo livre para "actividade não permitida"".
Semelhante resposta satisfazia praticamente sempre o meu interlocutor. Além disso, a Moscovo, via TASS, chegavam realmente numerosos materiais, o que, para minha satisfação, foi confirmado mais tarde pelo meu cohecido do Conselho da Revolução.
Não escondo que me preocupava também em não provocar com a minha "grande actividade" pela linha da TASS a irritação da direcção do meu departamento nos serviços secretos de Moscovo. Isto porque alguns "altos" dirigentes do nosso departamento de Moscovo consideravam "uma perda desnecéssária de tempo" a intensa actividade com vista a encobrir o agente secreto. Digo isto porque o mau trabalho de encobrimento em numerosos países conduzia frequentemente ao desmascaramento antecipado dos funcionários que desprezavam esta actividade extremamente importante. Quanto a mim, fui sempre da opinião que o trabalho digno de "encobrimento" é o melhor desmentido de diferentes boatos e invencionices, que dificultavam a vida e o serviço de funcionários dos serviços secretos russos no estrangeiro.
Segundo as minhas observações, Leonid Zamiatin estava bastante satisfeito com o trabalho do escritório lisboeta da TASS, elogiando frequentemente as "prendas" feitas pelos serviços secretos soviéticos na minha pessoa. Não foi por acaso que ele, um ano após o início do meu trabalho em Lisboa, ordenou que fosse publicado um artigo sobre mim no jornal "Tassovets", a quem os meus colegas moscovitas da TASS chamavam com humor "O nosso homem em Lisboa", parodiando o romance de Graham Greene "O nosso homem em Havana".
E embora Leonid Zamiatin tenha ficado zangado com eles devido ao "desmascaramento" desnecessário do correspondente em Lisboa, essa publicação ajudou a tornar-me "seu" entre os jornalistas moscovitas, tornou a minha existência enquanto correspondente estrangeiro mais legítima nos círculos jornalísticos de Moscovo, facilitou a minha posterior ingressão na União dos Jornalistas da URSS.
Depois do meu regresso a Moscovo, Leonid Zamiatin, ao procurar, no fim de 1979, quadros para a secção de propaganda externa no CC do PCUS, então acabada de formar, convidou para trabalhar o desconhecido jornalista de Lisboa, tendo-me "pedido" a Andropov. Como já assinalei, este convite mudou bruscamente o meu destino, conduziu-me definitivamente para a carreira de burocrata do PCUS e de jornalista especialistas em problemas internacionais.
Hoje, é difícil dizer se estou arrependido ou não. Talvez esteja arrependido, mas a carreira de agente dos serviços secretos no estrangeiro também não é eterna. Ela é rigorosamente limitada no que respeita à idade, ao nível do próprio "não desmascaramento" perante o inimigo, à fiabilidade do "estatuto legal", o que, frequentemente, não depende só das nossas próprias acções, da nossa "falta de atenção", mas é determinada em grande parte pelas acções da colónia soviética no país onde trabalhas (o paleio irresponsável dos funcionários das embaixadas e, prticularmente, das suas esposas, a possível "fuga" da tua embaixada ou dos teus serviços secretos) ou por acções operativas do "adversário", que por vezes nos vence, ou devido a traição que também teve lugar, embora, nos longínquos anos 70, graças a Deus, fosse coisa rara.
Ao que tudo indica, foi isso que aconteceu precisamente em Lisboa, onde actuava o nosso funcionário Gundariev, que trabalhava "sob o tecto" do Ministério da Marinha Mercante e, com a mão leve dos nossos chefes directos, tinha a fama de "agente com sorte". Mais tarde, alguns anos depois, foi trabalhar para a Grécia para um emprego semelhante, traiu a pátria e fugiu para os EUA.
Presentemente, por muito difícil que o seja fazer, há razões suficientes para admitir que esse homem, que respondia em Lisboa pela contra-espionagem que protegia o nosso trabalho, já era, em Portugal, agente do nosso principal adversário, os EUA.
A traição de Gundarev em Atenas mostrou uma vez mais que precisamente a "fuga de informações" para os americanos pode explicar asneiras pouco agradáveis na nossa actividade em Lisboa.
Parece-me mesmo que Lisboa era uma cidade infeliz para s nossos serviços secretos: o caso de Gundarev não foi o único; por exemplo, ficou no estrangeiro Rechetilov, funcionário da TASS, que se dizia "que tinha caído sob a influência do ópio religioso". O coronel Galkin, antigo agente do GPU (Direcção Política Principal), que trabalhou em Lisboa e passou à reserva nos anos 80, foi detido há alguns anos atrás, em arrepio de todas as normas internacionais, pelas autoridades americanas, quando ele chegou a Nova Iorque com um visto americano.
O problema da traição nas nossas fileiras é um problema muito complicado. Isso foi abordado de forma particularmente impressionante pelo conhecido agente secreto alemão (da RDA). Marcus Wolf, na sua obra "Jogo em território alheio".
Ele assinala justamente que a luta dos serviços secretos um contra o outro, o recrutamento e o aliciamento de agentes, a sua posterior perseguição podem parecer aos leigos na matéria um trabalho sujo e, no fundo, insensato. Na realidade, o confronto de uns serviços secretos com o adversário são o cume da sua actividade: a infiltração na esfera dos serviços do adversário é uma coroa de glória, enquanto que a infiltração do adversário no nossos serviços é uma derrota desoladora.
Estou completamente de acordo com ele quando afirma que, no plano psicológico, qualquer serviço secreto, principalmente os serviços secretos dos países socialistas, pode ser comparado, no respeitante à sua constituição, a uma tribo ou clã: vários indivíduos estão unidos por um objectivo comum e pelo sentimento de igual importância.
Nos serviços secretos dos países socialistas, o sentimento de serviço da causa comum era reforçado pela fé sincera na causa do comunismo, fé em que se trabalhava em nome da construção de um mundo melhor. Considero que foi precisamente isso que tornou os nossos serviços mais eficazes do que os respectivos serviços no Ocidente, que atraíam os seus funcionários, fundamentalmente, com meios financeiros.
É verdade que os nossos críticos afirmavam que a superioridade dos serviços de espionagem dos países socialistas em comparação com os respectivos serviços secretos da NATO, que muitos desses críticos reconheciam, se devia, em primeiro lugar, "às vantagens da ditadura totalitária e omnipresente no socialismo", que o Estado socialista tinha em relação ao Estado liberal-democrático de direito, porque os castigos dracónicos contra, por exemplo, os agentes ocidentais que agiam na União Soviética, tornavam demasiadamente grande o risco para os agentes e funcionários dos serviços secretos ocidentais.
Depois do fim da União Soviética e do chamado "sistema socialista", para grande insatisfação dos nossos críticos, constatou-se que a esmagadora maioria dos funcionários do KGB e dos serviços secretos de muitos outros países socialistas acreditava nos ideais do socialismo. Salvo raras excepções, eram movidos por motivos políticos nobres e sentiam verdade moral na competição mundial dos dois sistemas antagónicos. Por outro lado, os nossos homens não perdiam a capacidade de pensamento lógico próprio.
Posso garantir-vos que muitos deles não eram cegos face às insuficiências do próprio sistema socialista. Contudo, além da sua capacidade profissional, a consciência da superioridade política desempenhou sempre um enorme papel e esta posição espiritual, ideológica frequentemente assimilada pelas pessoas com quem colaborávamos. O nosso segredo, e é preciso reconhecer isso, deve ser procurado no facto de os nossos homens, na sua maioria, se considerarem portadores da ideia e do ideal do sistema social justo.
Claro que os serviços secretos ocidentais tinham e têm à sua disposição funcionários convictos nas vantagens do seu próprio sistema social, mas, para muitos, o trabalho na espionagem é um trabalho melhor ou pior pago, que garante um determinado nível de vida. O dinheiro, o prestígio e, por vezes, a sede de aventuras foram e continuam a ser estímulos mais atraentes do que servir o Estado.
Nos serviços secretos ocidentais, fizeram-se constantes tentativas de criar entre os funcionários a comunhão de convicções e um dado exemplo para a auto-identificação. Por isso, por exemplo, nos serviços secretos ingleses havia e continua a haver um grande número de alunos formados em Oxford e Cambridge, enquanto que na CIA predominam antigos estudantes das universidades de elite da Costa Oriental dos EUA, tendo todos eles uma forte consciência da sua pertença a uma comunidade eleita.
Todavia, logo que esse sentimento de comunidade é corroído pela traição, uma desconfiança destruidora alastra-se rapidamente até entre os agentes que actuam bem longe do locaal do icidente.
A traição é um veneno para qualquer serviço secreto. Cada caso desses abala profundamente a confiança de todos os funcionários que trabalham nesses serviços, agudiza bruscamente o já alto sentido de risco e perigo. Tanto na periferia como no Centro, os agentes, bem como a própria direcção podem ser desviados, durante vários meses, dos seus deveres directos ou simplesmente ficar paralisados. E se semelhante caso for empolado pelos órgãos de informação, o que provoca inevitavelmente a atenção da direcção política, pode ter consequências pessoais e que podem comprometer os serviços secretos. Estes tornam-se, de súbito, objecto de um interesse indesejável da parte dos políticos, quando se torna evidente que nem tudo corre bem. Por exemplo, a terrível convulsão que paralizou literalmente a CIA quando Aldridge Ames foi descoberto. O traidor pode causar maiores prejuízos dentro dos serviços secretos do que todos os nomes que ele pode tornar públicos. Ele desfere um golpe na própria integridade dos serviços de espionagem.
Também não é de menor importância o facto de, psicologicamente, as pessoas, nos países socialistas, bem como os próprios funcionários dos nossos serviços secretos, considerarem o seu trabalho não como espionagem e não se considerarem espiões. O povo soviético ficava orgulhoso dos seus feitos heróicos, eram exemplos de serviço da Pátria, exemplos dignos de ser seguidos no reforço do socialismo.
Nunca nos chamavamo-nos espiões. "Razvedtchik" é uma palavra que em russo significa "conquistador de informação". A palavra "agente", tanto na URSS como na Rússia czarista, nunca era utilizada em relação aos nossos homens, mas sempre para definir os inimigos. Embora isso não passasse de uma forma linguística, ela ajudava a criar a atmosfera onde os nossos oficiais realmente olhavam para si como para soldados da honra, vendo no adversário um inimigo pérfido.
No que respeita ao Ocidente, estou convencido de que é próprio da CIA, do MI-6 e da maioria dos outros serviços secretos ocidentais, uma falta de paixão para com o trabalho de espionagem, desprovido de emoções.
Com isto não quero dizer que eles não eram profissionais, mas os seus funcionários eram orientados no sentido de serem umas abelhas trabalhadoras, de se entregarem ao trabalho sem ver nele uma missão especial, inspiradora. Mas a rígida estrutura militar e as normas rígidas em relação ao comportamento e moral pessoal criavam uma atmosfera de participação numa tarefa comum e de alta responsabilidade, sem o qual nenhum serviço secreto pode trabalhar sem êxito.
Claro que é difícil encontrar alguém que se torna traidor penas por dinheiro. A CIA inclinou-se sempre para utilizar o dinheiro como meio de recrutamento e o KGB também não colocava de parte essa táctica.

1 comentário:

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Marco, traduzi algumas passagens das memórias desse "agente secreto", porque achei que seria interessante para os leitores do blog do ponto de vista histórico.
Estou de acordo consigo que o comunismo não contribuiu para aproximar os russos de outros povos do Leste da Europa e as feridas provocadas por isso (embora seja preciso sublinho que o povo russo não foi sinónimo de comunismo)levarão tempo a sarar. Quanto à legitimidade das acções dos "agentes secretos", isso é com as autoridades competentes. Segundo conseguimos apurar de algumas fontes, as autoridades portuguesas sabiam qual a verdadeira "profissão" de Kovaliov e tinham-no sob controlo...