Em Novembro de 1987, Mário Soares, então Presidente da República Portuguesa, foi a Moscovo em visita oficial, tendo-se encontrado com Mikhail Gorbatchov, então Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética. Aqui fica fragmentos de um documento que pode ser integralmente consultado no arquivo da Fundação Gorbatchov, em Moscovo.
Fundo 1. 49
Notas da conversa de M. S. Gorbatchov com M. Soares, Presidente da República Portuguesa
24 de Novembro de 1987
Mikhail Gorbatchov (M.S.G.) Sinto-me feliz em saudá-lo, senhor Presidente.
Mário Soares (M. S.) Estou muito contente pelo encontro com o Senhor. Para mim, tem um significado extremamente importante.
M.S.G. Infelizmente, eu só pude estar uma vez em Portugal: no congresso do PCP no Porto, onde fui um representante tão consciente que só uma vez consegui sair da sala de sessões.
(Gorbatchov aborda o tema do Vinho do Porto)
M. S. Os franceses compram mais. A propósito, o vinho das ilhas dos Açores – Portugal – era fornecido para a Rússia em tempos antigos para a mesa imperial.
M.S.G. Senhor Presidente, tive algumas dúvidas como tratar o Senhor, visto que com o seu antigo colega da Internacional Socialista, W. Brandt, nós tratava-nos por “camarada”. Mas visto que o Senhor, antes da eleição para esse cargo, abandonou o Partido Socialista, irei dirigir-me a si como Presidente.
M. S. Correcto. Saí do PS, mas continuo a ser socialista.
M.S.G. Relações bilaterais. Respeitamos o povo português, mas um período de queda…
M. S. Além das nossas causas puramente internas, o resfriamento nas relações soviético-portuguesas, considero, foi originado também pela tendência para dar prioridade ao desenvolvimento das relações entre o PCUS e o PCP em relação às relações entre estados…
… Por isso, considero que, agora, formaram-se as condições necessárias para o aprofundamento das nossas relações. A minha visita à União Soviética é a manifestação do desejo de Portugal passar para uma etapa nova, mais alta nas relações com a União Soviética.
(Soares explica a adesão à CEE)
M. S. Em Outubro, esteve em Portugal em visita oficial o Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. E nós com ele falámos de uma situação paradoxal. Angola é um país muito rico, mas Portugal, depois de ficar privado dela, bem como de outras colónias, sente-se significativamente melhor que durante o regime colonial.
M.S.G. Mas os países em desenvolvimento também colocam a questão: Por que é que é assim? Temos recursos naturais, laborais e outros, temos liberdade política. Mas não temos resultados na esfera económica.
Penso que a causa se encontra no carácter dos laços do “terceiro mundo” com os países ocidentais, na desequilíbrio das trocas, que se forma e aprofunda à custa desses laços. Este tema é realmente fulcral, objecto para discussões e conversas. Eu falei sobre isso com muitos políticos ocidentais: com Miterrand, Tarcher, Kraksi, Reagan, e com muitos outros. Eu tentei mostrar claramente que, hoje, o desenvolvimento dos países industrialmente desenvolvidos do Ocidente é pago, em medida significativa pelos países em desenvolvimento. Nestes países agudizam-se os problemas económicos, aumenta o contraste entre as enormes possibilidades potenciais e o nível de vida extremamente baixo da população. O Ocidente não que por enquanto compreender a profundeza do conflito em amadurecimento, safando-se com paliativos, com tentativas de liquidar a agudeza dos problemas, mas não os resolver.
Pode-se dar o nome que se quiser a essa problemática: diálogo Norte-Sul ou ordem económica internacional. Isso não faz com que as coisas mudem significativamente. Mas se se continuar a conservar os restos do sistema colonial, se a crise for empurrada para o interior, terá lugar a explosão. Por isso, este problema é mais político do que económico…
M. S. Estou de acordo com muitos raciocínios seus. Em muitos países em desenvolvimento, como no Brasil, Argentina, México, criou-se uma situação catastrófica com a dívida externa. Eu também falei sobre isso com os americanos, nomeadamente com Reagan e Schultz.
Portugal, nestas questões, está solidário com o Brasil, que constitui um exemplo escandaloso de como, tendo todas as possibilidades para um desenvolvimento rápido, o país se vê sufocado por dívidas. Tenho o direito de falar assim também porque eu enfrentei pessoalmente problemática semelhante quando ocupava o cargo de primeiro-ministro. Eu realizei duas vezes conversações com o FMI sobre as condições de prestação de ajuda económica a Portugal. Fomos obrigados, depois, a realizar uma política de economia rígida.
Conseguimos resolver alguns problemas económicos, mas à custa do aumento considerável de tensão social, o que levou a que tenha sofrido duas vezes derrota nas eleições. Por isso tenho razões para dizer: é preciso avançar para uma nova ordem económica mundial nas relações com os países em vias de desenvolvimento. Agora, a meu ver, são dados alguns passos nesse sentido, embora, por enquanto, de forma vagarosa.
M.S.G. É insuficiente que isso seja feito separadamente, em grupos fechados.
M. S. Estou de acordo que, por enquanto, isso é feito num âmbito limitado. Fico com a impressão de que até o FMI compreende hoje que é preciso fazer alguma coisa.
Gostaria de abordar ainda dois aspectos deste problema. Primeiro, enquanto continuar a corrida aos armamentos entre o Oriente e o Ocidente, será impossível encontrar meios para resolver os problemas dos países em desenvolvimento.
M.S.G. Saúdo isso. É minha profunda convicção.
(Solução dos problemas económicos e sociais em Portugal e na URSS)
Gorbatchov fala longamente da perestroika…
M. S. … O Senhor recordou os 2,5 mil milhões de pessoas que vivem nos países em desenvolvimento, lutam contra a fome, as doenças e outras privações. Portugal sente esses problemas talvez mais do que qualquer outro. Conhecemos a situação em África e estamos extremamente preocupados com o facto de o processo de descolonização não se ter tornado base para o progresso dos países africanos. E sentimos sinceramente os sofrimentos que enfrentam as pessoas nesses países. Conhecemos e compreendemos bem os angolanos, ligados a nós por laços seculares. Até o chefe do meu gabinete – N. Barata – é angolano de origem. Por isso, consideramos que é preciso dar alguns passos para ajudar os países africanos na luta contra as epidemias, fome e miséria. Mesmo se, por enquanto, não há possibilidade de uma regularização global no Sul de África, é preciso dar alguns passos práticos. A URSS é uma potência com interesses e responsabilidade globais. Vocês também têm interesses em África. Penso que, nessa base, poderíamos analisar mais pormenorizadamente as questões que interessam a ambas as partes.
M.S.G. Somos solidários com o povo de Angola na sua luta e na opção que ele próprio fez. A luta dos angolanos em defesa dessa opção é-nos próxima e compreensível talvez também porque, no início de 1918, a jovem república soviética se tornou objecto da intervenção de 14 estados. Depois, desabou sobre nós a máquina militar fascista, na luta contra a qual perdemos 20 milhões de vidas. Por isso os ideais da luta pela liberdade e a independência são-nos mais próximos do que a ninguém.
O principal é que a opção seja feita pelo próprio povo e é assunto dele que opção fizer. No Zimbabwe há um regime, em Angola outro, em Moçambique um terceiro. Mas nós estamos solidários com a luta de todos esses povos e iremos ajudá-los. Aqui as nossas posições divergem das do Ocidente, dos EUA, que tentam economicamente e por outros meios sufocar esses regimes de quem não gostam.
M. S. Não estou de acordo com isso. Se a companhia americana “Gulf – oil” não extraísse petróleo em Angola e não o exportasse para os EUA, Angola nada teria para pagar até a presença de 38 mil cubanos.
M.S.G. Mas os americanos colocam assim a questão: retirem os cubanos, reconheçam a UNITA, porque, caso contrário, nada teremos para conversar. Isto não será pressão?
M. S. Eu não falo da posição americana. Nós e os EUA também temos divergências a esse propósito. No que respeita a Portugal, nós realizamos em África “jogo limpo”. No período do fascismo, eu próprio estive na prisão com o futuro presidente de Angola: A. Neto, e manifestei-me sempre contra a guerra colonial.
Depois da revolução de 1974, nós fizemos o que devíamos fazer: realizámos a descolonização. Com o nosso apoio foram concluídos os acordos de Alvor entre os três movimentos de libertação nacional de Angola. Hoje, mantemos relações normais com o governo de Luanda, demonstrando assim o nosso desejo de olhar lucidamente para o real estado das coisas.
M.S.G. Os angolanos escolheram a sua via. Eu nem sequer posso dizer que regime lá vigora. Do ponto de vista económico e social, pouco aí mudou. Nós apoiamo-los do ponto de vista político, moral, e economicamente dentro das possibilidades.
Mas os EUA não gostam dessa opção. Mais, em tudo o que não gostam continuam a ver a “mão de Moscovo”. Eu disse ao presidente Reagan, durante o nosso primeiro encontro em Genebra: vós transformastes a América Latina numa periferia dos EUA, explorastes durante décadas os povos dos países latino-americanos. Mas, agora, quando eles não querem suportar mais isso, vós considerais a sua luta “ameaça aos interesses dos EUA” e “mão de Moscovo”. Isso é demagogia!…
M. S. Penso que existem muitos pontos comuns nas nossas abordagens, nomeadamente para com os problemas de África…
Notas da conversa de M. S. Gorbatchov com M. Soares, Presidente da República Portuguesa
24 de Novembro de 1987
Mikhail Gorbatchov (M.S.G.) Sinto-me feliz em saudá-lo, senhor Presidente.
Mário Soares (M. S.) Estou muito contente pelo encontro com o Senhor. Para mim, tem um significado extremamente importante.
M.S.G. Infelizmente, eu só pude estar uma vez em Portugal: no congresso do PCP no Porto, onde fui um representante tão consciente que só uma vez consegui sair da sala de sessões.
(Gorbatchov aborda o tema do Vinho do Porto)
M. S. Os franceses compram mais. A propósito, o vinho das ilhas dos Açores – Portugal – era fornecido para a Rússia em tempos antigos para a mesa imperial.
M.S.G. Senhor Presidente, tive algumas dúvidas como tratar o Senhor, visto que com o seu antigo colega da Internacional Socialista, W. Brandt, nós tratava-nos por “camarada”. Mas visto que o Senhor, antes da eleição para esse cargo, abandonou o Partido Socialista, irei dirigir-me a si como Presidente.
M. S. Correcto. Saí do PS, mas continuo a ser socialista.
M.S.G. Relações bilaterais. Respeitamos o povo português, mas um período de queda…
M. S. Além das nossas causas puramente internas, o resfriamento nas relações soviético-portuguesas, considero, foi originado também pela tendência para dar prioridade ao desenvolvimento das relações entre o PCUS e o PCP em relação às relações entre estados…
… Por isso, considero que, agora, formaram-se as condições necessárias para o aprofundamento das nossas relações. A minha visita à União Soviética é a manifestação do desejo de Portugal passar para uma etapa nova, mais alta nas relações com a União Soviética.
(Soares explica a adesão à CEE)
M. S. Em Outubro, esteve em Portugal em visita oficial o Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. E nós com ele falámos de uma situação paradoxal. Angola é um país muito rico, mas Portugal, depois de ficar privado dela, bem como de outras colónias, sente-se significativamente melhor que durante o regime colonial.
M.S.G. Mas os países em desenvolvimento também colocam a questão: Por que é que é assim? Temos recursos naturais, laborais e outros, temos liberdade política. Mas não temos resultados na esfera económica.
Penso que a causa se encontra no carácter dos laços do “terceiro mundo” com os países ocidentais, na desequilíbrio das trocas, que se forma e aprofunda à custa desses laços. Este tema é realmente fulcral, objecto para discussões e conversas. Eu falei sobre isso com muitos políticos ocidentais: com Miterrand, Tarcher, Kraksi, Reagan, e com muitos outros. Eu tentei mostrar claramente que, hoje, o desenvolvimento dos países industrialmente desenvolvidos do Ocidente é pago, em medida significativa pelos países em desenvolvimento. Nestes países agudizam-se os problemas económicos, aumenta o contraste entre as enormes possibilidades potenciais e o nível de vida extremamente baixo da população. O Ocidente não que por enquanto compreender a profundeza do conflito em amadurecimento, safando-se com paliativos, com tentativas de liquidar a agudeza dos problemas, mas não os resolver.
Pode-se dar o nome que se quiser a essa problemática: diálogo Norte-Sul ou ordem económica internacional. Isso não faz com que as coisas mudem significativamente. Mas se se continuar a conservar os restos do sistema colonial, se a crise for empurrada para o interior, terá lugar a explosão. Por isso, este problema é mais político do que económico…
M. S. Estou de acordo com muitos raciocínios seus. Em muitos países em desenvolvimento, como no Brasil, Argentina, México, criou-se uma situação catastrófica com a dívida externa. Eu também falei sobre isso com os americanos, nomeadamente com Reagan e Schultz.
Portugal, nestas questões, está solidário com o Brasil, que constitui um exemplo escandaloso de como, tendo todas as possibilidades para um desenvolvimento rápido, o país se vê sufocado por dívidas. Tenho o direito de falar assim também porque eu enfrentei pessoalmente problemática semelhante quando ocupava o cargo de primeiro-ministro. Eu realizei duas vezes conversações com o FMI sobre as condições de prestação de ajuda económica a Portugal. Fomos obrigados, depois, a realizar uma política de economia rígida.
Conseguimos resolver alguns problemas económicos, mas à custa do aumento considerável de tensão social, o que levou a que tenha sofrido duas vezes derrota nas eleições. Por isso tenho razões para dizer: é preciso avançar para uma nova ordem económica mundial nas relações com os países em vias de desenvolvimento. Agora, a meu ver, são dados alguns passos nesse sentido, embora, por enquanto, de forma vagarosa.
M.S.G. É insuficiente que isso seja feito separadamente, em grupos fechados.
M. S. Estou de acordo que, por enquanto, isso é feito num âmbito limitado. Fico com a impressão de que até o FMI compreende hoje que é preciso fazer alguma coisa.
Gostaria de abordar ainda dois aspectos deste problema. Primeiro, enquanto continuar a corrida aos armamentos entre o Oriente e o Ocidente, será impossível encontrar meios para resolver os problemas dos países em desenvolvimento.
M.S.G. Saúdo isso. É minha profunda convicção.
(Solução dos problemas económicos e sociais em Portugal e na URSS)
Gorbatchov fala longamente da perestroika…
M. S. … O Senhor recordou os 2,5 mil milhões de pessoas que vivem nos países em desenvolvimento, lutam contra a fome, as doenças e outras privações. Portugal sente esses problemas talvez mais do que qualquer outro. Conhecemos a situação em África e estamos extremamente preocupados com o facto de o processo de descolonização não se ter tornado base para o progresso dos países africanos. E sentimos sinceramente os sofrimentos que enfrentam as pessoas nesses países. Conhecemos e compreendemos bem os angolanos, ligados a nós por laços seculares. Até o chefe do meu gabinete – N. Barata – é angolano de origem. Por isso, consideramos que é preciso dar alguns passos para ajudar os países africanos na luta contra as epidemias, fome e miséria. Mesmo se, por enquanto, não há possibilidade de uma regularização global no Sul de África, é preciso dar alguns passos práticos. A URSS é uma potência com interesses e responsabilidade globais. Vocês também têm interesses em África. Penso que, nessa base, poderíamos analisar mais pormenorizadamente as questões que interessam a ambas as partes.
M.S.G. Somos solidários com o povo de Angola na sua luta e na opção que ele próprio fez. A luta dos angolanos em defesa dessa opção é-nos próxima e compreensível talvez também porque, no início de 1918, a jovem república soviética se tornou objecto da intervenção de 14 estados. Depois, desabou sobre nós a máquina militar fascista, na luta contra a qual perdemos 20 milhões de vidas. Por isso os ideais da luta pela liberdade e a independência são-nos mais próximos do que a ninguém.
O principal é que a opção seja feita pelo próprio povo e é assunto dele que opção fizer. No Zimbabwe há um regime, em Angola outro, em Moçambique um terceiro. Mas nós estamos solidários com a luta de todos esses povos e iremos ajudá-los. Aqui as nossas posições divergem das do Ocidente, dos EUA, que tentam economicamente e por outros meios sufocar esses regimes de quem não gostam.
M. S. Não estou de acordo com isso. Se a companhia americana “Gulf – oil” não extraísse petróleo em Angola e não o exportasse para os EUA, Angola nada teria para pagar até a presença de 38 mil cubanos.
M.S.G. Mas os americanos colocam assim a questão: retirem os cubanos, reconheçam a UNITA, porque, caso contrário, nada teremos para conversar. Isto não será pressão?
M. S. Eu não falo da posição americana. Nós e os EUA também temos divergências a esse propósito. No que respeita a Portugal, nós realizamos em África “jogo limpo”. No período do fascismo, eu próprio estive na prisão com o futuro presidente de Angola: A. Neto, e manifestei-me sempre contra a guerra colonial.
Depois da revolução de 1974, nós fizemos o que devíamos fazer: realizámos a descolonização. Com o nosso apoio foram concluídos os acordos de Alvor entre os três movimentos de libertação nacional de Angola. Hoje, mantemos relações normais com o governo de Luanda, demonstrando assim o nosso desejo de olhar lucidamente para o real estado das coisas.
M.S.G. Os angolanos escolheram a sua via. Eu nem sequer posso dizer que regime lá vigora. Do ponto de vista económico e social, pouco aí mudou. Nós apoiamo-los do ponto de vista político, moral, e economicamente dentro das possibilidades.
Mas os EUA não gostam dessa opção. Mais, em tudo o que não gostam continuam a ver a “mão de Moscovo”. Eu disse ao presidente Reagan, durante o nosso primeiro encontro em Genebra: vós transformastes a América Latina numa periferia dos EUA, explorastes durante décadas os povos dos países latino-americanos. Mas, agora, quando eles não querem suportar mais isso, vós considerais a sua luta “ameaça aos interesses dos EUA” e “mão de Moscovo”. Isso é demagogia!…
M. S. Penso que existem muitos pontos comuns nas nossas abordagens, nomeadamente para com os problemas de África…
1 comentário:
Muito interessante ler este tipo de documentos. Eu fiquei surpreendido, fez-me lembrar um jantar que tive com alguns dos meus professores universitários depois de ter acabado o curso. Nessa altura eles pareceram-me mais sábios do que durante o curso, ao ler este texto tanto Gorbatchiov como o Mário Soares também me pareceram mais sábios que na realidade.
Enviar um comentário