sexta-feira, agosto 18, 2006

Memórias de 19 de Agosto de 1991


Sabia-se que os conversadores do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) estavam descontentes com a política de Mikhail Gorbatchov, mas era difícil acreditar que iriam também tentar derrubá-lo com um golpe palaciano, semelhante ao que derrubára Nikita Khrutchov em Outubro de 1964 do cargo de Secretário-Geral do PCUS. Os tempos eram bem diferentes, pois a perestroika já tinha libertado os "génios" mais perigosos para qualquer poder totalitário: a liberdade de expressão e o sabor da democracia. Mas os "dinossauros" do regime soviético tentaram "a sua última cartada".
Os ponteiros do relógio ainda não marcavam as seis horas da manhã quando soou a campaínha do telefone no meu apartamento de Moscovo. Não fiquei preocupado por me acordarem tão cedo, estava a isso habituado, tal era a abundância de acontecimentos na União Soviética. Mas, desta vez, quando levantei o auscultador e ouvi a voz de uma colega da rádio para quem eu trabalhava disser: "Milhazes, o Gorbatchov foi preso, parece ser um golpe de Estado!", fiquei furioso, interrompi a chamada com as palavras: “Deixa-te de brincadeiras!”, pousei o aulscutador e fui dormir.
Porém, passados uns segundos, o telefone tocou novamente e a mesma voz disse-me: "Milhazes, não estou a brincar!".
Atordoado, liguei a televisão e fiquei intrigado ao ver que todos os canais mostravam o bailado "Lago dos Cisnes", de Piotr Tchaikovski. Quem vivia na União Soviética sabia que isso era um sinal de alguma coisa de anormal se estava a passar no país. Era preciso ver o que realmente se estava a passar. Aproximei-me da janela da cozinha, onde estava a preparar o café, e vi que se concentravam camiões carregados de soldados junto do prédio onde residia .
Acordei a minha esposa, que, como cidadã soviética cuja família conhecera o exílio e campos de concentração estalinistas, começou a pensar na segurança dos nossos filhos caso as coisas se complicassem. Ajudou a minha filha a decorar o número de telefone da avó que residia na Estónia para o que desse e viesse.
Uma família russa, nossa vizinha, veio em ajuda. "Não se preocupem. Caso vos aconteça alguma coisa, não abandonaremos as crianças, eu escondo-as" - disse-nos Sveta, mãe de um colega de escola da minha filha, pessoa que mal conhecíamos.
Entretanto, eu concentrava-me nos directos para a rádio. Recordo-me da voz do António Macedo: "Golpe de Estado na União Soviética!". A determinada altura, penso que cerca das 11 horas de Moscovo, 8 em Portugal Continental, telefonou Emídio Rangel, então à frente dessa rádio, para dizer: "Milhazes, és o único jornalista português em Moscovo! Toda a gente te está a ouvir, até o Presidente! Bom trabalho!".
Bem, voltemos a 19 de Agosto de 1991. Os acontecimentos desenrolavam-se rapidamente e não conseguia ficar mais tempo em casa junto do telefone, era preciso sair para a rua. De metropolitano, cheguei à Manejnaia Plochad, no centro de Moscovo, onde os moscovitas se começavam a concentrar. Este era o lugar das numerosas manifestações do início da "perestroika" e "glasnost"em apoio da "democratização".
De repente, tanques começam a avançar na direcção da multidão. "Se os militares abrirem fogo sobre as pessoas ou esmagarem os que se deitaram à frente das lagartas, as coisas vão complicar-se" - pensei eu. Mas os tanques pararam e os soldados e oficiais mostravam as metralhadoras e pistolas sem carregadores e diziam: "não viemos para matar!".
Estranho golpe de Estado! Quem leu a obra de Vladimir Lénine, primeiro dirigente comunista, "O Estado e a Revolução", sabe que para que um levantamento armado (revolução, golpe) tenha êxito, é preciso ocupar estações de caminho de ferro, correios, telégrafo, órgãos de informação, etc. Mas a rádio independente Eco de Moscovo continuava a transmitir, os telefones continuam a funcionar e Boris Ieltsin e os "democratas radicais" não tinham sido detidos.
Os membros do Comité Estatal para a Situação Extraordinária da URSS, órgão que anunciou a "doença" do Presidente Gorbatchov e o controlo do poder, ou não tinham com atenção uma das obras fundamentais do seu "timoneiro", ou estavam convencidos que os soviéticos não sairiam para as ruas a fim de defender os seus direitos, embora ainda muito embrionários. Enganaram-se, porque os habitantes de Moscovo, Leninegrado, Tallinn, Riga, Vilnius, etc. vieram mesmo para as barricadas.
Era preciso regressar a casa para manter os ouvintes portugueses ao corrente da situação, tarefa que durou algumas horas devido aos postos militares, mas lá cheguei.
Os vizinhos ajudavam a recolher informação de vários locais de Moscovo e da União Soviética, telefonando para familiares e amigos. Nunca vi as telefonistas soviéticas trabalharem tão operacionalmente.
Naquela altura, não tinha internet, nem telemóvel, nem sequer telefone directo. Se queria ligar para a redacção do Público ou da rádio para onde trabalhava, tinha de encomendar previamente às telefonistas uma chamada para Portugal, o que apenas acontecia algumas horas depois. Nesse dia, as telefonistas ligavam no mesmo momento, contribuindo assim para não permitir uma barreira informativa.
Foi nesse dia que disse, aos microfones da rádio, que "à medida que a noite cai, as coisas tornam-se mais claras". Ou seja, tornava-se evidente que os golpistas estavam condenados ao fracasso, o que ficou bem patente na famosa conferência de imprensa em que eles apareceram já "bem bebidos". Aquilo que poderia ser uma tragédia apocalíptica, pois a acção desenrolava-se no território de uma superpotência com armas nucleares capazes de destruir todos os seres vivos, tornou-se numa monumental farsa, um reflexo claro de onde tinha chegado a degradação do comunismo soviético.
A propósito, quando um dos meus colegas da rádio me comunicou que o Partido Comunista Português tinha anunciado o seu apoio ao golpe, não senti espanto, mas alívio, porque eu já não fazia parte dessa organização. Caso contrário, talvez tivesse morrido de vergonha ao confirmar que a miopia política dos dirigentes comunistas portugueses era bem maior do que eu imaginava.
Depois caiu a noite trágica de 19 para 20 de Agosto, quando os tanques esmagaram mortalmente três jovens que lhes tentaram cortar o caminho para a Casa Branca, lugar onde se encontrava Boris Ieltsin, Presidente russo, o homem que dirigiu a resistência contra a tentativa de desforra comunista.
Depois, os golpistas deixaram de aparecer em público, Gorbatchov foi libertado e, como reconheceu no regresso a Moscovo, “cheguei a outro país”, onde se veio a revelar que já não havia lugar para ele enquanto Presidente da União Soviética.
Não faltavam motivos de reportagem. Estive na Praça Lubianka no momento em que os moscovitas derrubaram um dos mais odiosos monumentos do poder soviético: a estátua de Félix Dzerjinski, fundador da polícia política KGB.
Entrei na Casa Branca, sede do Governo russo e da resistência de Boris Ieltsin ao golpe, onde não existia qualquer tipo de controlo. Numa das salas foi improvisado um centro de imprensa, onde existia apenas um telefone com ligação directa para o estrangeiro. Eram muitos os jornalistas que a queriam utilizar e através dele tive possibilidade de levar aos ouvintes a emoção, a euforia das centenas de milhares de moscovitas que festejavam a vitória da democracia.
Foram dias de trabalho árduo, quase sem sono pelo meio, mas o cansaço não aparecia. Para pessoas que viram o 25 de Abril como eu, o sonho da “liberdade, igualdade e fraternidade” parecia estar “ao dobrar da esquina”, tanto mais que já caíra o “Muro de Berlim”, acabára o Tratado de Varsóvia. Mas depois dessa bonança, vieram as tempestades, que continuam, hoje, a agitar muitos dos países que saíram de sob as ruínas soviéticas. Nunca antes se fizera a experiência da transição do socialismo para o capitalismo.
Em termos profissionais, foi um dos períodos mais interessantes da minha carreira de jornalista. Recentemente, aquando do processo no Tribunal de Trabalho de Lisboa sobre o meu despedimento da rádio a que dei 16 anos da minha vida, ouvi Emídio Rangel dizer que eu estava a trabalhar sem seguro de saúde e vida…e José Fragoso, actual director desse órgão de informação, a jurar que “passavam-se dezenas de dias sem que o Milhazes fizesse uma crónica”…
Vence a memória da felicidade de participação em momentos históricos, que já foram tantos…

5 comentários:

José Manuel disse...

E saiu dali uma grande coisa. Um bebado chamado Boris Ieltsin que tornou uma grande potência num país a saque.

Ibn von Faize disse...

Caro José Milhazes,
quero dizer-lhe que não foi a uma “mera” rádio que deu 16 anos de vida: foi ao público. E se a empresa não lhe agradeceu, agradecemos nós.
Mais: nós que consultamos este espaço duvidamos que o JMilhazes fosse capaz de passar um dia sequer sem escrever uma crónica.

Tenho 30 anos e tinha 15 quando o facto se deu. Eu era fã do Gorbatchov, figura que inspirava simpatia e tinha uma aura de coragem e determinação. Por outro lado detestava o Ieltsin, que eu via como o homem que desafiava Gorbatchov. Mas quando o vi em cima dum tanque em defesa do “regular funcionamento das instituições”, mudei a opinião acerca dele. Passei a vê-lo com outros olhos.

Vivi intensamente esses momentos. Quer pela TV quer pela rádio e jornais. Não me recordo da voz que ouvia na rádio (eu ouvia muita rádio à noite), mas é possível que fosse a sua. Na televisão creio que era o Carlos Fino.

E quanto ao Ieltsin ser bêbado, caro José Manuel, deixe lá: há quem seja coisas piores…

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Carlos Brito, está profundamente enganado. Conheço muito bem o trabalho da Alexandra, até porque trabalhamos várias vezes juntos em Moscovo e, presentemente, trabalhamos para o mesmo jornal: o Público. É uma jornalista cujo trabalho conheço bem e pelo qual tenho respeito e consideração.Cumprimentos. JMilhazes

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro leitor, depois do golpe de Agosto de 1991 e da derrota do comunismo, o PCP deixou de ter relações com a URSS e o PCUS, porque a URSS se desintegrou e o PCUS foi proibido. No entanto, e isso é público, o PCP mantém relações com o Partido Comunista da Federação da Rússia (herdeiro do PCUS), força cujo programa político é uma mistura ideológica ecléctica, que vai do marxismo-leninismo-estalinismo até ao nacionalismo. É frequente ver-se em manifestações políticas e Moscovo e noutras cidades russas bandeiras vermellhas com a foice e o martelo e bandeiras vermelhas com um círculo branco e uma cruz gamada no centro.
O Partido Comunista da Federação da Rússia é também uma força claramente anti-semita. Embora se digna um partido anti-capitalista, não tem pejo em receber dinheiro de oligarcas russos, nomeadamente de origem judaica.

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro José, o Partido Comunista da Rússia é uma força políca extremamente oportunista, que, numa situação em que perde terreno entre a população do país, agarra-se a qualquer ideologia que dê votos. Quanto aos oligarcas, alguns deles tentaram utilizar os numerosos deputados comunistas na Duma (Parlamento) como lobby dos seus interesses ou como força para fazer pressão sobre o Presidente Putin. Não é segredo para ninguém que Mikhail Khodorkovski, oligarca russo de origem judaica, financiou os comunistas, sendo essa uma das razões que levou à sua perseguição e detenção.
O PCUS foi ilegalizado a 22 de Agosto de 1991 e, entre essa data e o fim da URSS, a 25 de Dezembro do mesmo ano, o país continuou a ser governado, de direito, por Gorbatchov, e, de facto, por Boris Ieltsin e pelos dirigentes das repúblicas que faziam parte da União Soviética. As estruturas comunistas ruíram rapidamente, tendo muito dos seus dirigentes mudado rapidamente de "cor". Veja-se oa casos dos Presidentes do Cazaquistão, Turcoménia e Uzbequistão, que puseram imediatamente de lado o marxismo-leninismo. Na Turcoménia,por exemplo, a "santíssima trindade comunista": Marx, Engels e Lénine, foi substituída pela ideologia do actual ditador Saparmurat Niazov, cognominado de "Turcmenbachi", o que significa: "pai de todos os turcomenos". Coitados dos filhos...