quarta-feira, outubro 18, 2006

O Português (conto)



Nota prévia: como nem tudo é política neste mundo, também há lugar para outras coisas, pequenas mas agradáveis. Encontrei uma delas na Internet. Trata-se de um conto de Valeri Missiliuk, escritor russófono que não conhecia. Gostei e traduzi.
Apenas devo acrescentar que a acção decorre na era comunista na União Soviética, quando era muito difícil sair para o estrangeiro.

"Descanso de caçadores" de Vassili Perov

A pesca tinha corrido mal, acabámos por não encontrar duas redes e a terceira estava carregada de lixo, ramos, algas e cascas. O vento e a corrente tinham-na transformado num novelo peludo.
- Eu tinha dito que o melhor era ter lançado as redes mais perto da margem, por lá da ilha! – disse Vitka, irritado. Nós tínhamos acabado precisamente de dar a volta a essa malfadada ilha num barco a motor. Aí, tranquilamente, dois pescadores locais, numa chata comum, verificavam com atenção as redes. Até de longe se via que eles tinham pesca farta.
- Amigos, atirem uns peixitos para a caldeirada! Estamos vazios!
Sem desviar a atenção do trabalho, um virou-se para o outro:
- O Português irá levar, a minha velhota está à minha espera.
Acendemos a fogueira, aquecemos chá, secámos a roupa. Eis que aparece aquele a quem o camarada chamou Português, com um balde com peixe. Sentou-se cansado junto da fogueira, serviu-se do chá e acendeu um cigarro.
Tratava-se de um homenzinho pequeno, ressequido. Eu fazia muitas vezes, para o meu filho, homenzinhos de cenoura, com as caras gordas e coradas. Alguns dias depois, a cenoura secava e a carinha envelhecia, cobrindo-se de profundas rugas. Como velhinhos japoneses. O meu filho, de três anos, chamava espinhas a essas rugas. Os dedos retorcidos de pescador pareciam não se endireitar mais. Nas gretas e rugas tinha-se entranhado um betume negro, que fazia ressaltar a linha da vida na palma da mão. Como um caminho, não asfaltado, mas rural, de terra batida. Devia ter por volta dos 60 anos.
- Você esteve em Portugal?
- Aconteceu! A cooperativa de pesca prendou-me com duas semanas de férias. Em Janeiro! – O mujique revirou os olhos como que a sonhar, deixando-se afundar em recordações. As suas mãos, porém, viviam a sua própria vida. Elas apagaram o cigarro, começaram a ajudar-nos a limpar o peixe, a pôr o pote ao lume.
- Em Janeiro, lá a temperatura ronda os quinze graus positivos. Andávamos em camisa. – Continuou o relato.
- O Oceano Atlântico faz mesmo grandes ondas. Verdes, com cristas brancas. E quando fomos visitar as montanhas, o mesmo oceano confunde-se com infinitas cordilheiras. Verde. Eu gosto de água: seja mar, seja lago! E a quantidade de peixe que lá se pesca! Atuns, sardinhas! – Ele olhou com desdém para o que tinha trazido no balde. – E Lisboa! A Avenida da Liberdade! Beleza indescritível!
Despachámo-nos depressa. A verdadeira caldeirada começou devagar a ferver no pote. Era verdadeira porque só tinha peixe! Postas grandes. E só leva sal, pimenta e cebola picada quando se retira do fogo. E escolhes o peixe no prato. Então, o peixe é salgado à parte. Isso é um bom agoiro, pesca-se mais. O Português entendia muito de caldeirada. Atirou, no momento exacto, um molho de ramos secos para o fogo. A caldeirada ferveu imediatamente, transbordou do ponte, lançando espuma. A espuma acalmou o fogo, deixando assim a caldeirada acabar de cozer.
- Em Portugal, gastámos tudo em peixe, até ao último escudo. Acendíamos uma fogueira na praia e fazíamos o que estamos agora a fazer. Conversávamos, filosofávamos. Foram os melhores dias da minha vida. Agora, quando sinto frio e cansaço, recordo-me do Oceano e a vida torna-se bela!
- A propósito! – recordou ele no momento exacto. – E quanto vinho aí bebemos. Era só vinho do Porto e da Madeira. – Ele voltou a olhar para o balde, cuspiu para o chão e voltou a acender um cigarro. – Portugal é famoso pelo Vinho do Porto! Até tem uma cidade especialmente para ele! Chama-se Braga! Todos bebem braga (1). – Eu e Vitka trocámos olhares e abri uma garrafa de vodka. Deitei em três copos.
- Não dizes não à vodka?
- Se não há vinho do Porto, até uma vodkazita escorre bem! – Comemos o peixe e começámos a beber o caldo.
- E o principal é que, nesse país, tudo está comodamente situado! Crescem sobreiros por toda a parte! Ao lado estão videiras! Abriste uma garrafa de vinho caseiro e podes fechar a garrafa com rolha caseira. Muito cómodo.
Ainda ficámos sentados um pouco mais, fumámos perto da fogueira que se apagava. Gozámos o pôr do Sol. O Sol vermelho mergulhava silenciosamente no frio lago de um cinzento esverdeado. Resfriava nele os seus raios. Por isso, eles, em finais de Outubro, são tão frios, rudes! As ondas atiravam para cima da areia pedaços de espuma cinzenta. Talvez o rei do lago estivesse também a preparar uma caldeirada.
Depois, o Português despediu-se e foi-se embora. Sonhar sozinho com o seu Portugal. Pouco tempo depois, apareceu o avô Micha, o camarada do Português. O seu coração não aguentou. Adivinhara que iríamos beber vodka sem ele. Sentou-se. Ainda tínhamos vodka. Claro que também lhe oferecemos.
- Então, avô Micha, o Português foi de férias sozinho ou acompanhado?
- Foi sozinho, mas não chegou a Portugal!
- Como assim?
- Foi de autocarro da nossa aldeia até à cidade, onde deveria apanhar o avião. Encontrou um amigo da cidade . Beberam. E fizeram uma aposta. O Português dizia que facilmente conseguia beber um balde de portwein(2). Ele até é boa pessoa, bebe pouco. Mas, às vezes, descuida-se. Talvez tivesse sido de alegria. Compraram portwein. Entornaram-no num balde. Mas o Português não conseguiu beber tudo. Começou a rogar pragas, a gritar! O organismo recusava-se a aceitar mais! Os vizinhos chamaram a polícia. O Português apanhou quinze dias de cadeia. Teve de trabalhar duro nessa altura e a polícia não informou a sua empresa do sucedido. Afinal, ele estava de férias.
Saiu da prisão, mas, antes de se dirigir para a central de camionagem, a fim de regressar a casa, passou por uma biblioteca. Leu sobre Portugal na Pequena Enciclopédia Soviética. Só dois anos depois soubemos que ele tinha passado por um vytrezvitel (3).

1) Braga – bebida alcoólica fermentada.
2) Vinho de alto teor alcoólico feito a martelo, muito popular na União Soviética.
3) Vytrezvitel – esquadra policial na União Soviética especialmente preparada para receber e tratar de pessoas detidas na rua alcoolizadas.

Sem comentários: