Na véspera da Revolução de Abril, não encontrei nada melhor para publicar estas memórias de Igor Fessunenko, jornalista que foi durante muitos anos o correspondente da televisão soviética.
Trata-se de um fragmento de uma entrevista concedida ao jornal electrónico “Solidarnost” (Solidariedade) a 02 de Fevereiro de 2005.
Estória portuguesa
“Isto ocorreu em 1974, quando em Portugal ocorreu uma revolução, o fascismo foi derrubado e começou uma guerra civil entre comunistas pró-soviéticos e anticomunistas pró-americanos. À nossa delegação em Lisboa chegou a notícia de que, numa pequena cidade, tinham incendiado a sede do partido (comunista) e assassinado muitos comunistas. Então, em Portugal, a destruição de uma sede do partido era um ritual completo: hoje, pilham-no e sacam-no energicamente e, amanhã, as mesmas pessoas reconstroem-no com igual energia... Resumindo, era preciso ir filmar uma peça sobre os caminhos sinuosos da revolução portuguesa.
Eramos pouca gente: eu e o operador de imagem, Liocha Babadjan, um jovem simpático e que gostava de comer e beber bem. Preparámo-nos e partimos. Chegámos a essa cidadezinha, muito pequena, com uma igrejinha. Na prática, parecia uma aldeia ucraniana. Mas o principal é que vimos o antigo edifício da sede do partido, queimado, enfarruscado e coberto de palavrões portugueses, mas ninguém tencionava reconstruí-lo.
“Não faz mal, filma na mesma – disse eu ao Liocha. Servirá para qualquer peça sobre os caminhos complicados da revolução portuguesa”.
Ponho-me a andar à volta das ruínas, enquanto o Liocha filma. De súbito, vejo que se aproximam de nós cinco homens de grande porte físico e mal-humorados, com um aspecto totalmente camponês, embora portuguesa, mas roupa camponesa. Pensei: bem, vou falar com os trabalhadores.
Aproximo-me, saúdo em português. Eles não respondem. Por fim, o mais velho diz: “O que estais a filmar? Quem e de onde são?” Compreendo, nós somos estrangeiros. “Estamos a filmar diferentes curiosidades. Somos suecos. Turistas” - disse eu. Em situações complexas, eu dizia sempre que era sueco, porque em português sueco e soviético pronunciam-se de forma muito semelhante. Em caso extremo, podíamo-nos safar, dizer que o português ouviu mal.
Mas o velhote não quis acreditar em palavras. “Mostra os documentos”.
- “Não tenho documentos– disse eu –, eles ficaram em Lisboa, no hotel (cito o nome real do hotel). Se quiser, venha comigo. E quem é o senhor para exigir documentos?”.
Então, o mais velho disse-me calmamente: “Somos camponeses locais, mantemos a ordem aqui, enforcamos os comunistas e os russos. Já enforcámos todos os comunistas, mas, por enquanto, não encontrámos russos”.
-Porque é que estão tão furiosos com os russos?” pergunto.
- “Mas será que não compreendes que toda esta maldita revolução, organizada pelo comuna Cunhal, foi feita com dinheiro de Moscovo para levar toda a riqueza de Portugal para a Rússia!”.
Entretanto, Liocha Babadjan deu conta da nossa animada conversa. “Ei – grita-me ele em russo -, vejo que já fizeste amizade com os camaradas! Se nos convidarem para comer, não recuses!”.
Os homens estavam em silêncio, ouvindo atentamente o discurso “sueco” do Liocha.
“Vós tendes carro! – disse o velho batendo palmas. – Mostra-me os documentos dele!”.
Aqui eu compreendi em que me tinha metido...
Na Europa pode-se andar por cidades e aldeias sem documentos de identificação mesmo durante a guerra civil, mas nunca sem os documentos do carro. Claro que na minha carta estava escrito URSS, em inglês e português. Talvez nem tivesse tempo para mostrar a carta. No banco da frente do carro que estava a dez passos via-se, em cima do jornal comunista “Avante”, as recordações preferidas dos comunistas portugueses: emblemas e galhardetes com martelos, foices, estrelas vermelhas e retratos do Lénine...
E, de súbito, lembrei-me... Segundo um antigo hábito jornalístico, antes de partir para as filmagens, lia tudo o que podia encontrar e ler sobre esse lugar. Recordei-me que, no templo principal dessa cidadezinha infeliz, se encontra o túmulo do grande navegador português Tristão da Cunha...
“Mas que coisa? – disse eu num português correcto. – Nós, os suecos, somos descendentes dos vikings, viemos fazer um filme sobre o grande navegador de Tristão da Cunha, mas o vosso templo com o seu túmulo está fechado, não se conhece o paradeiro do padre e querem-nos revistar!”
Foi então que aqueles terríveis rapazes compreenderam e foram a correr procurar o padre à cidade (encontraram-no com os copos), esquecendo-se completamente dos nossos documentos e do nosso automóvel... E eu esqueci-me do Liocha. Tive sorte, porque olhei atempadamente para ele, antes de todos terem compreendido o que ele queria mostrar e falar.
Alexei (Liocha) não dominava o português, mas era um jovem atencioso. Inicialmente, só sabia dizer em português “olá” e “quanto custa”, mas, a meio da viagem de serviço, conseguiu aprender uma frase bastante complicada: “Viva o Partido Comunista Português!”
Ao mesmo tempo que pronunciava essa saudação, ele levantava ainda o punho e fazia uma saudação antifascista: “Rot Front!” Ainda bastante longe de nós, Alexei aproximava-se sem presas... Segurava a câmara com a mão esquerda, braço direito levantado, boca aberta para pronunciar a sua mais difícil frase e um riso...
Foi aqui que gritei no mais puro calão russo: “...!...!!...!!!”. Todos os palavrões que conhecia, em voz alta, clara, sem pausas. Alexei atrapalhou-se e não pronunciou a frase, nem levantou o braço. Aproximou-se.
“Vamos filmar o túmulo de Tristão da Cunha” – disse-lhe em voz baixa.
“A fita acabou” – respondeu ele.
“Palerma, mesmo assim liga a câmara” – ordenei eu.
Não me recordo de como estivemos com a câmara junto do túmulo, como nos despedimos dos terríveis aborígenes. Só quando nos afastámos da aldeiazinha é que eu contei a Liocha o que nos esperava na realidade.
Em Lisboa, soubemos que o camponês e os rapazes que tínhamos encontrado eram um latifundiário e os seus filhos, a quem os pobres vermelhos locais tinham tentado tirar a terra, tendo pago isso com a vida. E ninguém podia controlá-los. Continuaram ainda durante muito tempo a pendurar comunistas na região. Por isso, eu só não foi enforcado por engano.
Trata-se de um fragmento de uma entrevista concedida ao jornal electrónico “Solidarnost” (Solidariedade) a 02 de Fevereiro de 2005.
Estória portuguesa
“Isto ocorreu em 1974, quando em Portugal ocorreu uma revolução, o fascismo foi derrubado e começou uma guerra civil entre comunistas pró-soviéticos e anticomunistas pró-americanos. À nossa delegação em Lisboa chegou a notícia de que, numa pequena cidade, tinham incendiado a sede do partido (comunista) e assassinado muitos comunistas. Então, em Portugal, a destruição de uma sede do partido era um ritual completo: hoje, pilham-no e sacam-no energicamente e, amanhã, as mesmas pessoas reconstroem-no com igual energia... Resumindo, era preciso ir filmar uma peça sobre os caminhos sinuosos da revolução portuguesa.
Eramos pouca gente: eu e o operador de imagem, Liocha Babadjan, um jovem simpático e que gostava de comer e beber bem. Preparámo-nos e partimos. Chegámos a essa cidadezinha, muito pequena, com uma igrejinha. Na prática, parecia uma aldeia ucraniana. Mas o principal é que vimos o antigo edifício da sede do partido, queimado, enfarruscado e coberto de palavrões portugueses, mas ninguém tencionava reconstruí-lo.
“Não faz mal, filma na mesma – disse eu ao Liocha. Servirá para qualquer peça sobre os caminhos complicados da revolução portuguesa”.
Ponho-me a andar à volta das ruínas, enquanto o Liocha filma. De súbito, vejo que se aproximam de nós cinco homens de grande porte físico e mal-humorados, com um aspecto totalmente camponês, embora portuguesa, mas roupa camponesa. Pensei: bem, vou falar com os trabalhadores.
Aproximo-me, saúdo em português. Eles não respondem. Por fim, o mais velho diz: “O que estais a filmar? Quem e de onde são?” Compreendo, nós somos estrangeiros. “Estamos a filmar diferentes curiosidades. Somos suecos. Turistas” - disse eu. Em situações complexas, eu dizia sempre que era sueco, porque em português sueco e soviético pronunciam-se de forma muito semelhante. Em caso extremo, podíamo-nos safar, dizer que o português ouviu mal.
Mas o velhote não quis acreditar em palavras. “Mostra os documentos”.
- “Não tenho documentos– disse eu –, eles ficaram em Lisboa, no hotel (cito o nome real do hotel). Se quiser, venha comigo. E quem é o senhor para exigir documentos?”.
Então, o mais velho disse-me calmamente: “Somos camponeses locais, mantemos a ordem aqui, enforcamos os comunistas e os russos. Já enforcámos todos os comunistas, mas, por enquanto, não encontrámos russos”.
-Porque é que estão tão furiosos com os russos?” pergunto.
- “Mas será que não compreendes que toda esta maldita revolução, organizada pelo comuna Cunhal, foi feita com dinheiro de Moscovo para levar toda a riqueza de Portugal para a Rússia!”.
Entretanto, Liocha Babadjan deu conta da nossa animada conversa. “Ei – grita-me ele em russo -, vejo que já fizeste amizade com os camaradas! Se nos convidarem para comer, não recuses!”.
Os homens estavam em silêncio, ouvindo atentamente o discurso “sueco” do Liocha.
“Vós tendes carro! – disse o velho batendo palmas. – Mostra-me os documentos dele!”.
Aqui eu compreendi em que me tinha metido...
Na Europa pode-se andar por cidades e aldeias sem documentos de identificação mesmo durante a guerra civil, mas nunca sem os documentos do carro. Claro que na minha carta estava escrito URSS, em inglês e português. Talvez nem tivesse tempo para mostrar a carta. No banco da frente do carro que estava a dez passos via-se, em cima do jornal comunista “Avante”, as recordações preferidas dos comunistas portugueses: emblemas e galhardetes com martelos, foices, estrelas vermelhas e retratos do Lénine...
E, de súbito, lembrei-me... Segundo um antigo hábito jornalístico, antes de partir para as filmagens, lia tudo o que podia encontrar e ler sobre esse lugar. Recordei-me que, no templo principal dessa cidadezinha infeliz, se encontra o túmulo do grande navegador português Tristão da Cunha...
“Mas que coisa? – disse eu num português correcto. – Nós, os suecos, somos descendentes dos vikings, viemos fazer um filme sobre o grande navegador de Tristão da Cunha, mas o vosso templo com o seu túmulo está fechado, não se conhece o paradeiro do padre e querem-nos revistar!”
Foi então que aqueles terríveis rapazes compreenderam e foram a correr procurar o padre à cidade (encontraram-no com os copos), esquecendo-se completamente dos nossos documentos e do nosso automóvel... E eu esqueci-me do Liocha. Tive sorte, porque olhei atempadamente para ele, antes de todos terem compreendido o que ele queria mostrar e falar.
Alexei (Liocha) não dominava o português, mas era um jovem atencioso. Inicialmente, só sabia dizer em português “olá” e “quanto custa”, mas, a meio da viagem de serviço, conseguiu aprender uma frase bastante complicada: “Viva o Partido Comunista Português!”
Ao mesmo tempo que pronunciava essa saudação, ele levantava ainda o punho e fazia uma saudação antifascista: “Rot Front!” Ainda bastante longe de nós, Alexei aproximava-se sem presas... Segurava a câmara com a mão esquerda, braço direito levantado, boca aberta para pronunciar a sua mais difícil frase e um riso...
Foi aqui que gritei no mais puro calão russo: “...!...!!...!!!”. Todos os palavrões que conhecia, em voz alta, clara, sem pausas. Alexei atrapalhou-se e não pronunciou a frase, nem levantou o braço. Aproximou-se.
“Vamos filmar o túmulo de Tristão da Cunha” – disse-lhe em voz baixa.
“A fita acabou” – respondeu ele.
“Palerma, mesmo assim liga a câmara” – ordenei eu.
Não me recordo de como estivemos com a câmara junto do túmulo, como nos despedimos dos terríveis aborígenes. Só quando nos afastámos da aldeiazinha é que eu contei a Liocha o que nos esperava na realidade.
Em Lisboa, soubemos que o camponês e os rapazes que tínhamos encontrado eram um latifundiário e os seus filhos, a quem os pobres vermelhos locais tinham tentado tirar a terra, tendo pago isso com a vida. E ninguém podia controlá-los. Continuaram ainda durante muito tempo a pendurar comunistas na região. Por isso, eu só não foi enforcado por engano.
2 comentários:
Bela história.
Grande história...
Enviar um comentário