domingo, abril 22, 2007

“Não me enforcaram por engano”



Na véspera da Revolução de Abril, não encontrei nada melhor para publicar estas memórias de Igor Fessunenko, jornalista que foi durante muitos anos o correspondente da televisão soviética.
Trata-se de um fragmento de uma entrevista concedida ao jornal electrónico “Solidarnost” (Solidariedade) a 02 de Fevereiro de 2005.


Estória portuguesa

“Isto ocorreu em 1974, quando em Portugal ocorreu uma revolução, o fascismo foi derrubado e começou uma guerra civil entre comunistas pró-soviéticos e anticomunistas pró-americanos. À nossa delegação em Lisboa chegou a notícia de que, numa pequena cidade, tinham incendiado a sede do partido (comunista) e assassinado muitos comunistas. Então, em Portugal, a destruição de uma sede do partido era um ritual completo: hoje, pilham-no e sacam-no energicamente e, amanhã, as mesmas pessoas reconstroem-no com igual energia... Resumindo, era preciso ir filmar uma peça sobre os caminhos sinuosos da revolução portuguesa.
Eramos pouca gente: eu e o operador de imagem, Liocha Babadjan, um jovem simpático e que gostava de comer e beber bem. Preparámo-nos e partimos. Chegámos a essa cidadezinha, muito pequena, com uma igrejinha. Na prática, parecia uma aldeia ucraniana. Mas o principal é que vimos o antigo edifício da sede do partido, queimado, enfarruscado e coberto de palavrões portugueses, mas ninguém tencionava reconstruí-lo.
“Não faz mal, filma na mesma – disse eu ao Liocha. Servirá para qualquer peça sobre os caminhos complicados da revolução portuguesa”.
Ponho-me a andar à volta das ruínas, enquanto o Liocha filma. De súbito, vejo que se aproximam de nós cinco homens de grande porte físico e mal-humorados, com um aspecto totalmente camponês, embora portuguesa, mas roupa camponesa. Pensei: bem, vou falar com os trabalhadores.
Aproximo-me, saúdo em português. Eles não respondem. Por fim, o mais velho diz: “O que estais a filmar? Quem e de onde são?” Compreendo, nós somos estrangeiros. “Estamos a filmar diferentes curiosidades. Somos suecos. Turistas” - disse eu. Em situações complexas, eu dizia sempre que era sueco, porque em português sueco e soviético pronunciam-se de forma muito semelhante. Em caso extremo, podíamo-nos safar, dizer que o português ouviu mal.
Mas o velhote não quis acreditar em palavras. “Mostra os documentos”.
- “Não tenho documentos– disse eu –, eles ficaram em Lisboa, no hotel (cito o nome real do hotel). Se quiser, venha comigo. E quem é o senhor para exigir documentos?”.
Então, o mais velho disse-me calmamente: “Somos camponeses locais, mantemos a ordem aqui, enforcamos os comunistas e os russos. Já enforcámos todos os comunistas, mas, por enquanto, não encontrámos russos”.
-Porque é que estão tão furiosos com os russos?” pergunto.
- “Mas será que não compreendes que toda esta maldita revolução, organizada pelo comuna Cunhal, foi feita com dinheiro de Moscovo para levar toda a riqueza de Portugal para a Rússia!”.
Entretanto, Liocha Babadjan deu conta da nossa animada conversa. “Ei – grita-me ele em russo -, vejo que já fizeste amizade com os camaradas! Se nos convidarem para comer, não recuses!”.
Os homens estavam em silêncio, ouvindo atentamente o discurso “sueco” do Liocha.
“Vós tendes carro! – disse o velho batendo palmas. – Mostra-me os documentos dele!”.
Aqui eu compreendi em que me tinha metido...
Na Europa pode-se andar por cidades e aldeias sem documentos de identificação mesmo durante a guerra civil, mas nunca sem os documentos do carro. Claro que na minha carta estava escrito URSS, em inglês e português. Talvez nem tivesse tempo para mostrar a carta. No banco da frente do carro que estava a dez passos via-se, em cima do jornal comunista “Avante”, as recordações preferidas dos comunistas portugueses: emblemas e galhardetes com martelos, foices, estrelas vermelhas e retratos do Lénine...
E, de súbito, lembrei-me... Segundo um antigo hábito jornalístico, antes de partir para as filmagens, lia tudo o que podia encontrar e ler sobre esse lugar. Recordei-me que, no templo principal dessa cidadezinha infeliz, se encontra o túmulo do grande navegador português Tristão da Cunha...
“Mas que coisa? – disse eu num português correcto. – Nós, os suecos, somos descendentes dos vikings, viemos fazer um filme sobre o grande navegador de Tristão da Cunha, mas o vosso templo com o seu túmulo está fechado, não se conhece o paradeiro do padre e querem-nos revistar!”
Foi então que aqueles terríveis rapazes compreenderam e foram a correr procurar o padre à cidade (encontraram-no com os copos), esquecendo-se completamente dos nossos documentos e do nosso automóvel... E eu esqueci-me do Liocha. Tive sorte, porque olhei atempadamente para ele, antes de todos terem compreendido o que ele queria mostrar e falar.
Alexei (Liocha) não dominava o português, mas era um jovem atencioso. Inicialmente, só sabia dizer em português “olá” e “quanto custa”, mas, a meio da viagem de serviço, conseguiu aprender uma frase bastante complicada: “Viva o Partido Comunista Português!”
Ao mesmo tempo que pronunciava essa saudação, ele levantava ainda o punho e fazia uma saudação antifascista: “Rot Front!” Ainda bastante longe de nós, Alexei aproximava-se sem presas... Segurava a câmara com a mão esquerda, braço direito levantado, boca aberta para pronunciar a sua mais difícil frase e um riso...
Foi aqui que gritei no mais puro calão russo: “...!...!!...!!!”. Todos os palavrões que conhecia, em voz alta, clara, sem pausas. Alexei atrapalhou-se e não pronunciou a frase, nem levantou o braço. Aproximou-se.
“Vamos filmar o túmulo de Tristão da Cunha” – disse-lhe em voz baixa.
“A fita acabou” – respondeu ele.
“Palerma, mesmo assim liga a câmara” – ordenei eu.
Não me recordo de como estivemos com a câmara junto do túmulo, como nos despedimos dos terríveis aborígenes. Só quando nos afastámos da aldeiazinha é que eu contei a Liocha o que nos esperava na realidade.
Em Lisboa, soubemos que o camponês e os rapazes que tínhamos encontrado eram um latifundiário e os seus filhos, a quem os pobres vermelhos locais tinham tentado tirar a terra, tendo pago isso com a vida. E ninguém podia controlá-los. Continuaram ainda durante muito tempo a pendurar comunistas na região. Por isso, eu só não foi enforcado por engano.

2 comentários:

RioDoiro disse...

Bela história.

Nuno Andrade Ferreira disse...

Grande história...