domingo, agosto 19, 2007

19 de Agosto - Memórias de um acto de solidariedade



Passou mais um ano após a tentativa de contra-revolução comunista de 19 de Agosto de 1991, mas esta é das datas mais marcantes da minha vida não só como jornalista, mas também como cidadão e pai. Foi preciso tomar decisões rápidas e, nesses momentos difíceis, não faltou o ombro solidário de russos simples.
Os meus filhos eram ainda pequenos (nove e seis anos, respectivamente) e, quando começaram a cair em catapulta as notícias sobre a tentativa de golpe comunista, eu e a minha esposa tivemos de decidir o que fazer com eles. Decidimos, inicialmente, afastá-los dos acontecimentos, distraindo a sua atenção para outras coisas, mas rapidamente tivemos de constatar que a nossa iniciativa falhou.
O prédio onde residíamos em Moscovo era habitado por algumas dezenas de estrangeiros que, tal como eu, trabalhavam como tradutores numa editora soviética. E, não sei se por isso ou por mero acaso, numerosos automóveis e camiões militares vieram estacionar em redor do prédio, facto que logo despertou a curiosidade da miudagem.
Tínhamos de decidir o que fazer com as crianças caso os comunistas realmente conseguissem a desforra e regressassem em força ao poder. No primeiro dia da contra-revolução comunista, ainda era difícil adivinhar o rumo das coisas. Tudo parecia muito semelhante ao golpe palaciano de Outubro de 1964, quando Nikita Khrutchov, que também se encontrava a descansar na Crimeia, foi derrubado por Leonid Brejnev.
Em nosso auxílio veio uma família de russos comuns, pais de uma amiga da minha filha que viviam num prédio perto do nosso. Chegaram e disseram apenas: "Se acontecer alguma coisa convosco, não se preocupem com as crianças. Nós cuidaremos delas".
Foi assim que algumas crianças conseguiram sobreviver às perseguições de Estaline, quando os seus pais desapareciam à noite de casa sem deixar rasto. Bem diz o ditado russo: "Mais vale ter cem amigos do que cem rublos". Neste caso, eram apenas três pessoas (pai, mãe e filha), mas que, nessa altura, valiam mais do que todo o dinheiro do mundo, pelo menos para a minha família.

Felizmente, a sua ajuda não foi necessária e, à noite, já nos divertíamos a ver pela televisão a conferência de imprensa dos "seis", quando os dirigentes da contra-revolução, tremendo de medo ou de consumo excessivo de álcool, explicavam atabalhoadamente os objectivos da sua acção.
Mas, antes disso, apanhámos um valente susto...

8 comentários:

Naguib disse...

Gostava que José Milhazes aprofundasse mais um pouco a questão dos comunistas retomarem o poder e o receios que adviriam daí para um simples tradutor de uma editora soviética.
Quais os seus receios?
ZédeAlmada

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Zé, se os comunistas retomassem o poder, certamente que muitas pessoas iriam sofrer com isso, principalmente se olhar para a cara dos dirigentes da contra-revolução comunista. Nikolai Rijkov, um dos dirigentes comunistas de então, vem agora dizer que deveriam ter seguido a via chinesa.
Espero que entenda o que isso significa. Um banho de sangue estava garantido, tal como foi feito na China, mas seria de maiores dimensões, porque a oposição aos comunistas não se limitava aos estudantes.
Além disso, eu não era apenas tradutor de uma editora soviética, mas trabalhava já para a TSF e o Público. E, o que não é menos importante, a minha esposa e filhos eram cidadãos soviéticos.
Se ainda não ficou tudo claro, pergunte.

Naguib disse...

«(…)
Na Rússia, a necessidade de programas é enorme. A adicção e os problemas correlacionados são epidémicos. A esperança média de vida dos homens é de 56 anos. O alcoolismo está fora de controlo. Há um declínio demográfico acelerado por causa da baixa taxa de natalidade e emigração. Uma falta de esperança teimosa atravessa toda a sociedade.
(…)
Pr. Tom Bremer»

José Milhazes
Que diferença, para pior, entre a União Soviética e a Rússia de hoje.
Em 19 de Agosto de 1991, um punhado de pessoas, nenhum deles, figura de destaque, tentou ainda evitar o descalabro. Se calhar até os «empurraram» para aquela situação, para darem o contra-golpe «definitivo». Ficaram como os «maus da fita».
Gorbatchev foi muito elogiado pelo Ocidente, e depois foi esquecido, Ieltsin era um herói, depois apareceu como um bêbado insuportável. Putin era o supra sumo da democracia e hoje é atacado por ainda ter um pouco de coluna vertebral.
Mas repare… há 55 anos atrás, precisamente em 19 de Agosto de 1936, um poeta espanhol, Federico Garcia Lorca, foi preso por um deputado católico direitista que justificou sua prisão sob a alegação de que ele era "mais perigoso com a caneta do que outros com o revólver." Acabou por ser fuzilado pelos franquistas.
A história é escrita pelos vencedores, mas nem sempre essa «história» é a correcta.
Em homenagem a essas pessoas, que me pareciam bem intencionadas, transcrevo 4 versos de Federico Garcia Lorca
«Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.»
(...)
(Romance sonâmbulo- Federico Garcia Lorca)

PS: É sempre mais fácil caminhar a favor do vento, mas, nem sempre, esse vento nos leva no caminho certo.
ZédeAlmada

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Zé, o facto de na Rússia se viver mal não justifica a existência de um regime repressivo na URSS. O caro leitor sabe o que são senhas de racionamento? Recordo-lhe que são umas senhas que garantem um mínimo de um produto ou outro deficitário. Semelhantes senhas existiram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto que na União Soviética existiram do primeiro ao último dia do comunismo (07 de Novembro de 1917 e 19 de Agosto de 1991).
Poder-me-á retorquir que a URSS enviava foguetões para o Espaço, fabricava bombas atómicas, etc., etc., mas pergunto-lhe: para uma mãe que tem filhos o que é mais importante, que haja à venda nas lojas coisas elementares como fraldas de papel e comida infantil ou que o seu país seja o primeiro no campo da corrida aos armamentos?
Volto a repetir o que já escrevi aqui muitas vezes: o comunismo soviético falhou porque se esqueceu do homem concreto, real, e apostou no chamado "colectivo", que integrava aqueles que, ao contrário da nomenclatura dirigente, tinham de apertar constantemente o cinto.
Você tem razão quando diz que é mais fácil caminhar ao sabor do vento. Pois trata-se de uma boa imagem: os comunistas caminhavam e caminham contra o vento do bom senso. Queriam e querem empurrar à força os soviéticos e outros povos para "o futuro radioso da humanidade", sem lhes perguntar, primeiro, o que eles queriam.
Tal como Garcia Lorca foi fuzilado pelos franquistas, muitos grandes escritores e poetas soviéticos (e nõ só) foram fuzilados pelos comunistas precisamente pela mesma razão. E já que tanto gosta de comparações, deixo-lhe mais uma. Comparativamnente, o comunismo matou mais gente do que o fasccismo.
Mas peço-lhe que não me venha dizer que gosto mais do fascismo do que do comunismo. Para mim, são duas faces de uma só moeda: repressão desenfreada e ódio à democracia e aos direitos dos cidadãos.
Recomendo-lhe a leitura do Manifesto do Partido Comunista...

Bottled (em português, Botelho) disse...

Quando a loucura de alguns, em nome de ideais que deles apenas possuem o nome, coloca a vida de outros, a maior parte deles inocentes, em perigo é bom saber que existe quem nos estende uma mão amiga e oferece o que realmente de bom um ser humano pode oferecer a outro.

Relato impressionante na primeira pessoa e que dá que pensar, politiquices à parte, no tipo de mundo em que vivemos e criamos os nossos filhos.

Permita-me que lhe dê os parabéns pelo blog!

São merecidos!

Hic Hic Hurra

xana disse...

Caro Milhazes!
Eu sei o que são senhas de racionamento e a menos que a Ucrânia não pertencesse à URSS entre 1986 e 1991, nem sempre houve senhas de racionamento. Também sei que essas senhas, quando existiam, asseguravam os produtos básicos a todos, principalmente às crianças. Agora pergunto eu, o que sente uma mãe desempregada cujo marido também está desempregado e que tem três filhos para criar, quando vê as montras cheias de tudo o que é de bom e não tem dinheiro para comprar o essencial para os seus filhos??
É muito fácil falar de barriga cheia...
Xana

xana disse...

Á pouco esqueci-me de perguntar a fonte dos dados que permite concluir que o comunismo matou mais gente que o fascismo. Claro que todas as vítimas de Estaline devem estar contabilizadas como vítimas do comunismo, certo? Ora nós sabemos que uma grande maioria das vítimas de Estaline foram vítimas da suberba do próprio e não tinham rigorosamente nada a ver com ideologia.

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Cara Xana, as senhas de racionamento asseguravam os bens básicos a todos? Então para que são precisas as senhas. Uma super-potência precisa de papelinhos para distribuir equitativamente os produtos? Ou será que as senhas garantiam o "mínimo" (que os funcionários comunistas assim consideravam) ao povo, enquanto que a nomenclatura não precisava delas para viver, pois tinha mais "mimos".
Os comunistas soviéticos tentavam combater o capitalismo com ideologia, que não enche a barriga a ninguém. Não conseguiram, e uma leitora como a Xana que viveu na URSS sabe disso, fazer com que a esmagadora maioria dos seus habitantes vivesse ao nível da classe operária portuguesa.
Cara Xana, as estatísticas são muitas, basta lembrar os cálculos de Alexandre Soljenitzin. O regime na URSS matou 60 milhões entre 1917 e 1991. E os assassinatos não começaram com Estaline, mas com Lenine...