É verdade que já estou na Rússia há trinta anos, ou seja, quase dois terços da minha vida foram passados por estas longínquas paragens. Não costumo assinalar o dia 10 de Setembro de forma particular, embora essa data constitua um marco fulcral na minha vida. Quem seria eu agora se não tivesse vindo para a União Soviética estudar a 10 de Setembro de 1977? Tenho dificuldade em imaginar... mas não excluo que, no fim da semana passada, tivesse passado pela Festa do Avante.
Como o condicional faz parte da ficção, vou pô-lo de lado e recordar um momento curioso da minha vida de estudante.
Tinha chegado há uns dois meses a Moscovo e vivia na residência estudantil (na foto) da Faculdade Preparatória, escola especial onde os estudantes estrangeiros aprendiam russo durante um ano, antes de ingressar na Universidade.
O dia era de festa. Não porque se festejasse a aprovação da nova Constituição da União Soviética, que “abria o caminho para o comunismo”, ou mais um aniversário da Revolução de Outubro, mas porque, nesse dia, recebi a minha bolsa de estudo. O dinheiro da bolsa estava longe de chegar para manter um jovem estudante durante um mês e a única salvação estava nas jovens portuguesas que viviam na mesma residência, que comiam menos e conseguiam fazer algumas poupanças. Mas, mesmo assim, o dinheiro não chegava até ao fim do mês.
Já com o dinheiro no bolso, eu e o C. fomos a uma loja fazer compras para fazer um grande “banquete” no nosso quarto, onde além de nós viviam mais dois portugueses e um grego. Trouxemos o que havia, porque, na União Soviética, ninguém sabia o que iria encontrar numa loja ou mercearia. Dessa vez, comprámos pão, almondegas, macarrão com um diâmetro significativo e pasta de tomate. Não me recordo se comprámos ou não uma garrafa de vinho, mas acho que não.
Quando chegámos ao quarto, encontravam-se aí não só os outros colegas que nele viviam, mas também algumas estudantes portuguesas que nos vieram visitar. O jantar estava um divino pitéu, talvez porque, nos dias anteriores, a fome tivesse sido quase negra. O aquecimento central, que já estava ligado, porque o Inverno estava à porta, e o farto repasto obrigou-nos a desabotar as camisas e desapertar cintos e calças. Resumindo, estávamos na maior, como hoje se diz.
De súbito, entrou no quarto uma jovem libanesa, alta e esbelta, um verdadeiro hino à beleza feminina oriental se não tivesse um olho de vidro.
- C., empresta-me o teu manual de Biologia – dirigiu-se a jovem a um dos estudantes portugueses com a mais pacífica das intensões.
- Não posso –respondeu o jovem português, explicando que precisava do livro para estudar para um teste.
A jovem libanesa dirigiu-se para a mesa onde se encontrava aberto o manual de Biologia, pegou nele e saiu do quarto a correr. O estudante português levantou-se da cadeira e saiu do quarto com a velocidade de uma flecha, embora tivesse de segurar as calças com as mãos para que não caíssem.
C. alcançou rapidamente a libanesa no corredor, agarrou-se à jovem e tentou, com uma das mãos, recuperar o livro. No sentido contrário, dois estudantes árabes avançavam pelo corredor e depararam com uma cena altamente condenável em qualquer sociedade, e muito mais no mundo muçulmano. Um jovem, de camisa desabotoada e calças abertas, segura com a mão esquerda as calças e, com a direita, aperta a jovem libanesa. O que teriam pensado os orientais?
C. conseguiu recuperar o livro e regressar ao quarto, sem dar conta que era seguido por dois árabes irados, que pareciam trazer no rosto o desejo de se vingarem pela Reconquista da Península Ibérica ou pela conquista do Estreito de Ormuz.
Quando os árabes entraram no nosso quarto, os estudantes portugueses compreenderam que se deviam preparar para uma “guerra de civilizações” (em 1977, esse termo ainda não era empregue no jornalismo e na política, mas foi precisamente o que sentimos, pois, normalmente, cenas dessas acabavam em pancadaria”).
- Que querias fazer à nossa jovem? – perguntaram os dois estudantes árabes, preparando-se para desferir o primeiro golpe.
Desta vez, tudo acabou pacificamente graças à intervenção involuntária das jovens portuguesas que se encontravam no quarto. Quando entenderam o que se passara no corredor, começaram a rir à gargalhada, tendo entrado mesmo em perfeita histeria. Rolavam-se nas camas e não conseguiam parar. Esta reacção hilariante desarmou os dois muçulmanos e fê-los compreender que a intenção de C. não era aquela que eles tinham imaginado. As coisas normalizaram completamente quando souberam que toda a confusão se devera a um manual de Biologia.
C. terminou com êxito a Faculdade de Biologia da Universidade de Moscovo. Quanto à estudante libanesa, talvez tenha conseguido sobreviver a todas as catástrofes que abalaram o seu país e recorde ainda este episódio da sua juventude estudantil.
Como o condicional faz parte da ficção, vou pô-lo de lado e recordar um momento curioso da minha vida de estudante.
Tinha chegado há uns dois meses a Moscovo e vivia na residência estudantil (na foto) da Faculdade Preparatória, escola especial onde os estudantes estrangeiros aprendiam russo durante um ano, antes de ingressar na Universidade.
O dia era de festa. Não porque se festejasse a aprovação da nova Constituição da União Soviética, que “abria o caminho para o comunismo”, ou mais um aniversário da Revolução de Outubro, mas porque, nesse dia, recebi a minha bolsa de estudo. O dinheiro da bolsa estava longe de chegar para manter um jovem estudante durante um mês e a única salvação estava nas jovens portuguesas que viviam na mesma residência, que comiam menos e conseguiam fazer algumas poupanças. Mas, mesmo assim, o dinheiro não chegava até ao fim do mês.
Já com o dinheiro no bolso, eu e o C. fomos a uma loja fazer compras para fazer um grande “banquete” no nosso quarto, onde além de nós viviam mais dois portugueses e um grego. Trouxemos o que havia, porque, na União Soviética, ninguém sabia o que iria encontrar numa loja ou mercearia. Dessa vez, comprámos pão, almondegas, macarrão com um diâmetro significativo e pasta de tomate. Não me recordo se comprámos ou não uma garrafa de vinho, mas acho que não.
Quando chegámos ao quarto, encontravam-se aí não só os outros colegas que nele viviam, mas também algumas estudantes portuguesas que nos vieram visitar. O jantar estava um divino pitéu, talvez porque, nos dias anteriores, a fome tivesse sido quase negra. O aquecimento central, que já estava ligado, porque o Inverno estava à porta, e o farto repasto obrigou-nos a desabotar as camisas e desapertar cintos e calças. Resumindo, estávamos na maior, como hoje se diz.
De súbito, entrou no quarto uma jovem libanesa, alta e esbelta, um verdadeiro hino à beleza feminina oriental se não tivesse um olho de vidro.
- C., empresta-me o teu manual de Biologia – dirigiu-se a jovem a um dos estudantes portugueses com a mais pacífica das intensões.
- Não posso –respondeu o jovem português, explicando que precisava do livro para estudar para um teste.
A jovem libanesa dirigiu-se para a mesa onde se encontrava aberto o manual de Biologia, pegou nele e saiu do quarto a correr. O estudante português levantou-se da cadeira e saiu do quarto com a velocidade de uma flecha, embora tivesse de segurar as calças com as mãos para que não caíssem.
C. alcançou rapidamente a libanesa no corredor, agarrou-se à jovem e tentou, com uma das mãos, recuperar o livro. No sentido contrário, dois estudantes árabes avançavam pelo corredor e depararam com uma cena altamente condenável em qualquer sociedade, e muito mais no mundo muçulmano. Um jovem, de camisa desabotoada e calças abertas, segura com a mão esquerda as calças e, com a direita, aperta a jovem libanesa. O que teriam pensado os orientais?
C. conseguiu recuperar o livro e regressar ao quarto, sem dar conta que era seguido por dois árabes irados, que pareciam trazer no rosto o desejo de se vingarem pela Reconquista da Península Ibérica ou pela conquista do Estreito de Ormuz.
Quando os árabes entraram no nosso quarto, os estudantes portugueses compreenderam que se deviam preparar para uma “guerra de civilizações” (em 1977, esse termo ainda não era empregue no jornalismo e na política, mas foi precisamente o que sentimos, pois, normalmente, cenas dessas acabavam em pancadaria”).
- Que querias fazer à nossa jovem? – perguntaram os dois estudantes árabes, preparando-se para desferir o primeiro golpe.
Desta vez, tudo acabou pacificamente graças à intervenção involuntária das jovens portuguesas que se encontravam no quarto. Quando entenderam o que se passara no corredor, começaram a rir à gargalhada, tendo entrado mesmo em perfeita histeria. Rolavam-se nas camas e não conseguiam parar. Esta reacção hilariante desarmou os dois muçulmanos e fê-los compreender que a intenção de C. não era aquela que eles tinham imaginado. As coisas normalizaram completamente quando souberam que toda a confusão se devera a um manual de Biologia.
C. terminou com êxito a Faculdade de Biologia da Universidade de Moscovo. Quanto à estudante libanesa, talvez tenha conseguido sobreviver a todas as catástrofes que abalaram o seu país e recorde ainda este episódio da sua juventude estudantil.
12 comentários:
said...
Quem na vida passa pelo PCP, mesmo que por variadas razões, siga outros caminhos, nunca mais fica imune a este sentimento de amizade, fraternidade e igualdade que emana da grande família comunista.
Acho que é por isso, que você, mesmo longe, sente a Festa do Avante, ao contrário de praticamente toda a comunicação social portuguesa: é «cega», «surda» e «muda».
Essa é uma das principais razões porque, de vez em quando, manifesto neste blogue a minha opinião sobre um ou outro assunto.
Caro leitor, António, arrisco-me a perder um leitor, mas devo dizer-lhe que não encontrei o ambiente de que você fala na minha passagem pelo PCP. É verdade que tive e tenho bons amigos comunistas, mas também, como acontece em qualquer família, encontrei gente que não me deixaram qualquer tipo de saudade. Quanto à Festa do Avante, eu não tenho recordações especiais a ela ligada, porque nunca por lá passei. Assim aconteceu.
José Milhazes
Não perde um leitor… você fala da Rússia… e eu gosto que me falem desse grande país. Da sua cultura milenária, da sua literatura, das artes, do seu cinema – o melhor do mundo –.
Do lado de cá dos Urais, vigora a superficialidade e eu não gosto daquilo que vejo.
Concordo consigo: não basta ser militante do PCP para emanar esse ambiente que falo.
Revejo-me no poema de Pablo Neruda, que a seguir, pelo licença para transcrever:
"A MI PARTIDO"
Me has dado la fraternidad hacia el que no conozco.
Me has agregado la fuerza de todos los que viven.
Me has vuelto a dar la patria como en un nacimiento.
Me has dado la libertad que no tiene el solitario.
Me enseñaste a encender la bondad, como el fuego.
Me diste la rectitud que necesita el árbol.
Me enseñaste a ver la unidad y la diferencia de los hombres.
Me mostraste cómo el dolor de un ser se ha muerto en la victoria de todos.
Me enseñaste a dormir en las camas duras de mis hermanos.
Me hiciste construir sobre la realidad como sobre una roca.
Me hiciste adversario del malvado y muro del frenético.
Me has hecho ver la claridad del mundo y la posibilidad de la alegría.
Me has hecho indestructible porque contigo no termino en mí mismo.
Boa noite...ao ler estas palavras dá para perceber o espirito de companheirismo e de amizade entre jovens das mais variadas nacionalidades. Esta sua história faz-me lembrar as muitas que já ouvi, uma vez que o meu pai chegou aMoscovo no dia 3 de Setembro de 1977 (exactamente uma semana antes de você) e por ai ficou durante um ano a estudar na Escola Superior do Komsomol.
Caro leitor Cainat, na realidade, estudar no estrangeiro é uma experiência única, enriquece-nos muito, pois contactamos com um grande número de culturas. E, além disso, tive também sorte, porque encontrei bons portugueses, compatriotas com quem mantenho relações de amizade até hoje.
Sou uma assidua leitora do seu blogue , mas só agora resolvi participar. Gosto muito de história e património cultural, como tal não posso deixar de lado os grandes monumentos russos. Deste modo, se possivel gostaria de ver mais referência desta matéria no seu blogue... sei também que duranta a II Guerra Mundial muitos monumentos foram destruidos pelas tropas alemãs e gostaria de saber se foram recuperados ou esquecidos.
Pior são aqueles que nao passam por Partidos Comunistas desse mundo fora, sendo perseguidos por terem ideologias diferentes das comunistas, não é Sr. António? Falo obviamente dos PComunistas da Coreia do Norte, de Cuba, da Russia, entre outros. E até o nosso PCP nao tem propriamente um percurso muito bonito no que toca a estas questões.. Tenho um familiar meu que depois do 25 de Abril, foi combater a tentativa dos comunistas de tomarem a base de Monte Real, para depois tentarem impor um regime ao estilo URSS... Nao queriam a democracia? No que toca á festa do avante uma pessoa normal nao vai a uma festa para a qual foram convidados as FARC (reguilha da Colombia) e muitos Partidos Comunistas criminosos por esse mundo fora (Coreia do Norte).
Sr. Ricardo
Você sabe o que é a Democracia?
Ou apenas tem aquele conceito básico que lhe costumam falar na televisão?
«Não me recordo se comprámos ou não uma garrafa de vinho, mas acho que não.»
Não terá sido um barril de vodka?
Caro Diogo, não foi de certeza um barril de vodka, porque, nessa altura, ainda não sabia apreciar essa bebida e, segundo, o dinheiro não dava para tanto.
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