quinta-feira, novembro 08, 2007

Carta do leitor

O leitor António Campos enviou-nos este comentário que, por ser extenso, decidimos publicar separadamente.
"As respostas a muitas perguntas do senhor “jal” encontram-se bem documentadas nos livros de história recentes, na divulgação pública de arquivos secretos e em testemunhos pessoais, para quem o quiser saber.
É hoje do domínio público que a industrialização forçada da URSS foi conseguida à custa de planos agressivos de requisição de produtos agrícolas que causaram a morte de milhões de pessoas e de trabalho escravo na rede de campos de trabalho forçado, onde outros tantos morreram. Industrializar um país desta forma é fácil. Fazê-lo sem matar ninguém é que deveria ser considerado uma “conquista”. Chamar “conquista” à forma como foi feito é insultar a memória de todas as famílias destruídas que sofreram durante gerações a mão pesada de um regime totalitário desprovido do mais básico respeito pelo indivíduo.
De facto, até o falhanço da transição para o sacrossanto capitalismo na melhoria das condições sociais da população russa tem as suas raízes no regime que antes vigorava. Paul Klebnikov explica-o de forma elegante: “A propriedade privada ou a liberalização dos mercados por si só não garantem um elevado nível de civilização. Mesmo os países mais pobres têm propriedade privada e mercados liberalizados. O que eles não têm é um estado e uma sociedade saudáveis, condições necessárias à civilização.
Existem diversas características essenciais que definem um estado saudável: boa legislação e formas de a fazer cumprir; igualdade de todos os cidadãos perante a lei e o estado; uma base financeira sólida que permita a prestação de serviços públicos tais como a defesa, o policiamento, os transportes, a educação, a saúde e a segurança social. Uma sociedade saudável não é corrompida por gente rica, empresários poderosos ou lobbies; é uma mediadora honesta de interesses sociais em conflito. Por fim, um estado saudável protege os fracos da predação pelos fortes.
Um estado saudável não deve ser confundido com um estado poderoso. A URSS era poderosa mas doente. O seu poder baseava-se em medo, governação arbitrária, burocracia, corrupção e desrespeito pela lei, bem como na ausência de governos locais ou organizações cívicas independentes. A doença terminal da URSS foi o resultado da sua incapacidade, apesar da propaganda maciça, de encorajar sentidos de dever ou responsabilidade cívica, tanto nas massas como na elite. A URSS não conseguiu produzir cidadãos. Os que acreditam que um estado saudável é sinónimo de um governo central forte esquecem-se de que este é apenas o topo da pirâmide. As bases são a rede de governos locais e associações cívicas independentes a competir com o governo central na abordagem das necessidades locais e nacionais. Sem uma ampla base formada por estas instituições, um governo central é uma estrutura frágil: uma torre alta assente numa base oca. Durante sete décadas, a ditadura comunista destruiu igrejas, governos locais eleitos e sindicatos independentes, bem como associações profissionais e de caridade – por outras palavras, instituições independentes que poderiam ter desafiado o monopólio do poder comunista. Ao final do dia, a URSS colapsou devido à hipertrofia do poder do estado.
Uma sociedade saudável pode ser definida pelo seu sistema de valores, um factor tão importante como difícil de medir. A nação que Yeltsin herdou carecia dos valores em que se fundamentam a prosperidade e a democracia. Como pode a iniciativa privada florescer quando a sociedade está impregnada de inveja? Como pode a economia crescer quando o valor do trabalho honesto é universalmente ridicularizado? Como pode a democracia florescer quando ninguém quer assumir a responsabilidade pelo bem comum? Este niilismo tão disseminado na Rússia é o resutado da destruição, pelo regime comunista, de bases tão fundamentais para uma sociedade saudável como a família, a religião e as associações cívicas independentes. A Rússia de Yeltsin não era uma nação de cidadãos, mas um a massa de famílias fracturadas e indivíduos isolados.
Os russos eram súbditos, não cidadãos. O facto de Yeltsin ter herdado um estado e uma sociedade doentes tornou difícil o sucesso das suas reformas. No entanto, aquele e os seus ministros pouco ou nada fizeram para resolver o problema. O estado russo ficou mais corrupto, mais ineficiente e mais arbitrário no exercício do poder. A sociedade russa ficou ainda mais doente do que durante o regime comunista; houve lugar a um declínio tanto dos valores familiares como do sentido de responsabilidade cívica. O desprezo pelo valor de outros seres humanos, já profundo durante o comunismo, acentuou-se durante o governo de Yeltsin. Muitas vezes parecia que o sistema pervertido de valores na Rússia recompensava actividades que vitimizavam o próximo; este estado de espírito criminoso tornou-se tão dominante que a adesão a princípios de honestidade, decência ou cumprimento da lei se tornou equivalente a dissidência moral.(...)
(...) A propaganda comunista sustentou sempre a ideia de que fazer dinheiro num mercado livre era uma actividade predatória e criminosa. As crianças soviéticas aprendiam na escola que os Estados Unidos, a epítome do capitalismo, eram controlados por uma elite super-rica e cruel e que os grandes impérios financeiros e industriais tinham origens imorais: todas as fortunas tinham atrás de si um rasto de roubos, mentiras e assassínios. Os novos magnatas russos tinham todos absorvido na escola esta imagem do capitalismo ocidental. Quando chegou a sua vez, agiram em conformidade.”
O resto, todos nós sabemos.
Talvez este texto, escrito por um jornalista assassinado em Moscovo em 2004, à saida do seu escritório, ajude a esclarecer as mentes daqueles que ainda nutrem a ideia ingénua de que se a simples substituição de um sistema social por outro, na tentativa de curar uma sociedade doente, é votada ao fracasso, tal se deve a superiores virtudes do sistema substituído.

6 comentários:

Naguib disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Naguib disse...

A Revolução de Outubro, de que agora se comemoram 90 anos, resultou num avanço civilizacional mundial de forma rápida e sem precedentes.
Quem faz da exploração do trabalho alheio o seu modo de vida não pode nunca aceitar de bom grado a tomada do poder pelos antigos explorados.
Foi assim… e sempre assim será. Basta lembrar-nos dos acontecimentos da Comuna de Paris.
Poderia argumentar-se muita coisa, mas não vale a pena: constatemos apenas que com fim da URSS começa todas as tropelias mundiais, comandadas pelo imperialismo, originado mais pobreza, mais desemprego, mais tortura, mais invasões, mais mortes…
E o caminho não acaba aqui: faz parte da sua génese a exploração do trabalho e das riquezas naturais, apenas em seu proveito.
Mas, ao mesmo tempo arrasta consigo uma contradição: é o seu avanço que origina a sua contestação.
Nessa contestação, como sempre, estão os progressistas, os que acham que não podemos ficar paralisados, que a história não acabou… e à cabeça estão como sempre, os comunistas, não porque tenham nascido biologicamente assim, mas porque, como serem humanos pensantes, acham que o homem sozinho pouco consegue… e juntando a sua voz a outros seres, vão conseguindo algumas mudanças positivas.
Aqui e ali, começa a cheirar que algumas coisas já começam a mudar… continuemos a fazer força para que se confirme esta mudança. Espero que estes 10/15 anos sejam o tal passo atrás na história e os novos avanços sejam feitos com menos erros.
Ousar andar em frente e errar é humano. O capitalismo, pelo contrário, nunca erra, porque está errado na sua essência.
António Lopes

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro António, os comunistas "são seres pensantes". Isso significa que os outros não são? Só é pena que com tanto pensamento tenham construído regimes que mataram muitas dezenas de "seres não pensantes". Essa estória de que condenar o comunismo é elogiar ou aceitar o capitalismo já tem barbas muito brancas e compridas.
O seu problema, bem como dos seus camaradas, é só pensar a preto e branco, num mundo em que é preciso pensar a cores.
Não houve e não há nenhum país comunista que tenha feito os seus cidadãos felizes, mas há países não comunistas que conseguiram isso: Suécia, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Islândia, etc., etc.Se lhe quiser chamar países capitalistas, isso não altera a sua natureza muito mais humana do que os regimes comunistas.
Como dizia Den Ziao Ping, correlegionário seu que começou a transição da China do comunismo para o capitalismo selvagem, "não tem importância se o gato é preto ou branco, o importante é que cace ratos".
Caro António, quanto ao futuro, ele a Deus pertence. No meu texto, eu frisei que o fim da União Soviética provocou uma ofensiva contra os direitos sociais nos países ocidentais, o que é de lamentar e condenar. O resultado dessa política pode ser muito negativo, mas o comunismo não é uma alternativa. É preciso continuar a procurar novos caminhos. Os velhos mostraram ser becos sem saída.

Anónimo disse...

Chamar "avanço civilizacional" a uma tragédia social de proporções épicas é como chamar cebolas a batatas à espera que o destinatário nunca tenha visto uma cebola na vida. Para não falar no desrespeito à memória das sua vítimas.

Felizmente, para quem se interssa pela realidade, optando por não sonhar acordado com o país das maravilhas da Alice, existe documentação histórica e testemunhos que demonstram a realidade do "avanço civilizacional" mencionado, deitando por terra retóricas não sustentadas por factos.

António Campos

antonieta disse...

Ainda bem que, realmente, o mundo não é a preto e branco e que os Antónios não são todos iguais!
Infelizmente, alguns - Antónios ou não - continuam a preferir usar, não apenas uma palas, mas um verdadeiro capacete com um circuito fechado de desinformação e degação das evidências.
Como diz o José Milhazes, há várias pessoas felizes,ou a tender para isso, em países que não funcionam em circuito fechado. Os dados da verificação empírica são indisputáveis, meu caro António Campos.

antonieta disse...

Errata do comentário anterior: onde se lê 'degação' deve ler-se 'negação';
onde se lê'Campos', deve ler-se'Lopes'.