segunda-feira, março 10, 2008

Quando a Rússia passou a olhar para o Brasil


Constato com satisfação que o blogue "DaRussia" tem um número cada vez maior de leitores entre os brasileiros. Há dias em que as entradas do Brasil são mais numerosas do que as entradas a partir de Portugal.
Por outro lado, reconheço que estou em dívida para com os leitores brasileiros. Na rubrica "Contributos para a História", escrevi sobre Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e, claro sobre Portugal, mas deixei de lado o Brasil. Vou ter em conta essa insuficiência e prometo que não esquecerei o país irmão sempre que possível.
Hoje, temos um bom pretexto para isso: os 200 anos da transferência da Corte de D.João VI de Lisboa para o Rio de Janeiro.

A transferência da Corte portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808, levou a Corte russa a prestar especial atenção à situação no Brasil e na América Latina e apostar seriamente nos contactos directos com essa colónia portuguesa.
A 10 de Dezembro de 1809, o chanceler russo Nikolai Rumiantsev escrevia ao Imperador Alexandre I para o aconselhar a “utilizar as circunstâncias criadas em que se encontra agora a Europa para estabelecer relações comerciais directas, permanentes e sólidas entre o Império Russo e as possessões de Portugal na América, o que significaria edificar um monumento ao actual Czar”.
Alexandre I nomeou Fiodor Palen, embaixador russo nos Estados Unidos, enviado na Corte do Rio, encarregando-o de estudar “as vantagens incontestáveis” para o comércio russo. Porém, rapidamente se tornou claro que Fiodor Palen não tinha capacidade de representar a Corte de São Petersburgo em dois países tão grandes e decidiu nomear um cônsul para a capital do Brasil.
O facto de Nikolai Rumiantsev se ter dedicado pessoalmente à elaboração de instruções para o futuro cônsul são mais uma prova da atenção prestada pelas autoridades russas ao problema.
“Mostrar aos brasileiros as vantagens que lhes traz o comércio (com a Rússia)... e mostrar aos mercadores russos todas as vantagens que eles podem tirar do comércio com o Brasil” – escrevia o chanceler russo.
Além disso, ele considerava ser necessário estudar as mercadorias brasileiras, recolher informações sobre privilégios e taxas, analisar a legislação comercial brasileira “até ao mais pequeno pormenor”.
“As informações que seriam consideradas exageradas na Europa, tornam-se importantes em relação ao Brasil” – considerava Rumiantsev, acrescentando ser também útil a recolha de dados sobre a situação política e económica do Brasil e da América Latina.
Este documento e o diplomata que tentou realizar as tarefas nele enumeradas tiveram honra de estudo na obra “Ensaios sobre a História do Serviço de Reconhecimento da Rússia”, recentemente publicada em seis volumes.
A Corte russa apostou em Kssaveri Labenski, comerciante polaco que ocupava o cargo de cômsul-geral da Rússia em Paris, para cumprir esse programa, mas os círculos pró-ingleses conseguiram fazer com que a Corte portuguesa não aceitasse essa proposta, a pretexto de que ele seria “espião de Napoleão”.
Ao ter conhecimento do plano russo de desenvolvimento das relações com o Brasil, Georg Henrich von Langsdorf (na foto), cientista e enciclopedista alemão, ofereceu os seus serviços à Corte de São Petersburgo, sublinhando que tinha vivido em Portugal cinco anos, que conhecia bem o seu povo e língua, bem como sabia francês, alemão, inglês e russo.
O Imperador Alexandre I aceita a proposta e Langsdorf chega ao Rio de Janeiro em Abril de 1813, acompanhado da esposa e de quatro estagiários. O novo cônsul estabeleceu sólidos contactos entre a alta sociedade do Rio não só porque sabia português, mas também porque era um excelente médico.
Na altura em que chegou ao Brasil, decorria uma guerra entre Inglaterra e os Estados Unidos, o que dificultava a chegada de mercadorias desses países ao Brasil. Langsdorf tenta aproveitar o momento para abrir caminho às mercadorias russas. Secretamente, reuniu dados sobre todos os navios que entraram no porto do Rio de Janeiro entre Janeiro e Abril de 1813, incluindo os tipos de barco, que cargas transportavam, o nome dos capitães, as empresas que enviam e recebiam as mercadorias. Além disso, com base nas informações obtidas junto de oficiais e marinheiros, definiu a melhor época para a navegação dos navios russos entre os portos do Báltico e o Brasil, bem como o tipo de mercadorias a exportar para a colónia portuguesa.
Para conseguir informações fidedignas, empregou os seus quatro estagiários em empresas comerciais inglesas. Um deles, Piotr Kilhen, veio depois a ocupar o cargo de vice-cônsul da Rússia no Rio.
Em Maio de 1815, Langsdorf entrega o cargo ao seu sucessor e, com o apoio do Imperador Alexandre I, entrega-se completamente ao estudo dos povos indígenas, dos minérios, flora e fauna do Brasil, tendo percorrido numerosas regiões inóspitas do país.
Eleito membro da Academia de Ciências de São Petersburgo, os materiais por ele recolhidos continuam expostos nos mais importantes museus russos.

8 comentários:

kaprov disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
kaprov disse...

Excelente post.Gosto muito dos pontos normalmente esquecidos pela história e colocados aqui.Estou à aprender e elevar meu conhecimento.

Estou à colocar um texto seu, que saiu no sítio do UOL.



http://noticias.uol.com.br/ultnot/internacional/2008/03/10/ult3680u994.jhtm

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro leitor Kaprov, é sempre agradável ver o meu trabalho chegar ao Brasil. Irei ter em linha de conta os meus leitores brasileiros. Lembre-me sempre que me esqueça. Obrigado

kaprov disse...

Caro José Milhazes,

Para curiosidade e conhecimento do blog, tem um sítio governamental do Estado de Santa Catarina que em breves apontamentos comenta sobre à colonização russa na cidade de Witmarsum.

http://www.sc.gov.br/portalturismo/Default.asp?CodMunicipio=417&Pag=2

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro leitor, obrigado pela sua achega

Unknown disse...

Caro Milhazes,
Obrigado pelo post e por teu esforço de reproduzir capítulos importantes da história das relações Brasil e Rússia. O Brasil é muito grato ao cônsul Langsdorf, sobretudo por sua expedição ao interior do Brasil, quando zelosamente catalogou espécimes da fauna e da flora virgem de nosso país, produzindo as paisagens brasileiras de forma original e pioneira.
Acaso saberias se, na internet, teríamos acesso à obra citada por você ("“Ensaios sobre a História do Serviço de Reconhecimento da Rússia”"), particularmente sobre esse capítulo que trata das incursões russas no Brasil?

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Almir, esse livro não está disponível na net, mas há muitos artigos sobre Langsdorf e o seu trabalho no Brasil. Em termos de livros, há numerosas publicações sobre a passagem desse e de outros cidadãos da Rússia pelo Brasil. Quando da escrita da minha tese de doutoramento, encontrei muito material e utilizei algum, porque o meu tema abarca um período em que o Brasil fazia parte de Portugal (1800-1825).

Nuno Castelo-Branco disse...

"Ele foi o único soberano da Europa que teve a firmeza e a sabedoria de fazer precisamente o que devia", disse James Ligham, acerca da decisão do príncipe Regente de retirar a Corte para o Brasil.
***

Desde meados do século XVI, o Brasil surgia como uma terra da promissão, um horizonte infinito para uma expansão, que mitigada na Europa pelas contingências geográficas, políticas e demográficas, levava o reino português a procurar no além-mar, novas fronteiras propiciadoras pela aventura dos Descobrimentos. Martim Afonso de Sousa, o grande impulsionador da ampliação do domínio e da colonização lusa nas terras de Vera Cruz, foi talvez, o primeiro a vislumbrar as imensas possibilidades oferecidas pelo novel domínio, aconselhando D. João III à simples e efectiva transferência da sede da Monarquia, para a recém descoberta colónia.

Após Alcácer Quibir e reconhecendo implicitamente a primazia legal dos direitos de D. Catarina, duquesa de Bragança, à sucessão do trono, Filipe II de Espanha, parece ter considerado seriamente a entrega do domínio americano à Casa de Bragança, em troca da efectiva posse do território português na península ibérica. A Restauração de 1640, ocorreu num momento difícil de total despojamento material da nação, levando o Pde. António Vieira a preconizar a opção brasileira, garantindo a criação de um verdadeiro império, dada a extensão territorial das conquistas, a ausência de inimigos directos nas fronteiras e uma privilegiada situação no Atlântico, o novo grande palco do confronto naval pela supremacia entre as grandes potências. D. Luís da Cunha, foi outro entusiasta desta solução, procedendo a uma copiosa e exuberante enumeração das vantagens decorrentes, garantindo uma nova dimensão ao poderio português, libertado desta forma, das peias que uma situação geográfica difícil e a ausência de recursos, ditava um paulatino e inelutável declínio de Portugal como factor relevante na Europa.

No século XVIII, a instabilidade no precário equilíbrio europeu, fez eclodir guerras nas quais todo o continente se envolveu de forma directa - Guerras da Sucessão da Espanha e da Áustria e intervenção dos Bourbon espanhóis na Itália, para nos referirmos apenas aos principais conflitos -, que inevitavelmente perturbaram a já tradicional política portuguesa de não envolvimento nos conflitos continentais. Se excluirmos uma breve e quase simbólica participação da Armada portuguesa (1717) na guerra Liga cristã contra o Império Otomano, Portugal manteve-se coerentemente ausente dos campos de batalha europeus, durante mais de cinco décadas.

A indirecta intervenção na Guerra dos Sete Anos, deveu-se sobretudo, a uma tentativa bourbónica de neutralizar o importante ponto de apoio da Royal Navy na península, essencial para o controle da navegação atlântica e colonial. Considerando seriamente as hipóteses decorrentes de uma invasão das tropas do Pacto de Família, Pombal ponderou a transferência da corte e do governo - a Soberania -, para o vice-reino do Brasil, a fonte dos recursos que permitiam a existência do próprio Estado português.

A Revolução Francesa de 1789 e a posterior ascensão de Bonaparte, destruiram a velha ordem estabelecida ao longo de séculos. Preceitos, doutrinas, convenções e modus operandi universalmente aceites pela velha diplomacia europeia, volatilizaram-se diante dos disparos da artilharia, ou jazeram para sempre esmagados pelas cargas dos couraceiros franceses que arrasaram tronos, pisotearam Estados antigos e fizeram movimentar massas populacionais de uma forma jamais vista. É hoje difícil imaginarmos o espanto e a tragédia vivida por milhões, que assistiram impotentes, ao desabar de um mundo que para a imensa maioria, era o fruto de uma ordem natural ou divina.

As sucessivas tentativas da manutenção da neutralidade, encontraram no alvorecer de 1800, uma real impossibilidade de concretização. O génio militar de Napoleão e a violência dos seus ímpetos, fizeram dissipar qualquer veleidade de estabelecimento de alianças consistentes no continente, susceptíveis de permitir, pelo menos, a contenção de um expansionismo que não conhecia limites e nem sequer garantia uma razoável moderação, no sentido da criação de uma nova ordem negociada e aceite pelo conjunto dos Estados.

Os ministros portugueses - entre os quais destacamos Domingos de Sousa Coutinho, Rodrigo de Sousa Coutinho e o marquês de Alorna -, instaram com o Regente no sentido de fazer pender Portugal, para a fidelidade à já antiga aliança com a Grã-Bretanha. Conhecendo bem a dependência portuguesa do comércio além-mar e a supremacia inglesa - hegemónica após Trafalgar (1805) - nos mares, consideravam qualquer aproximação de facto à política continental napoleónica, como pressuposto para a imediata perda das possessões ultramarinas. Os ingleses não tardariam muito em proceder à ocupação ou anexação da Madeira, Açores, Goa e Macau. Eram bem conhecidas as ambições expansionistas na América do Sul que surgia como um perfeito sucedâneo das ainda recentemente perdidas Treze Colónias norte-americanas. Em "A Decadência do Ocidente", Oswald Spengler sublinha o projecto de Hobbes, que visava a conquista inglesa de todo o continente, como condição de uma efectiva hegemonia imperial.

Em 1807 e após o decretar do Bloqueio Continental, a Inglaterra encontrava-se ameaçada e sem aliados na Europa. Não parece lícito trabalhar sobre meras hipóteses. A História faz-se sobretudo, da análise dos factos e da documentação, mas também - e este aspecto tem sido ostensivamente negligenciado desde há mais de um século -, com o estudo comparado de eventos demonstrativos de tendências de políticas, situação económica e social dos Estados e doutrinas prosseguidas por estes. Desta forma, poderemos seguramente proceder a uma análise comparativa de situações ocorridas durante os conturbados anos de 1799-1807: a anexação do Piemonte e de Parma (1802), a ocupação de Viena (1805), de Berlim (1806), a anexação da Holanda e destituição da Casa de Orange (1806), a deposição dos Bourbon de Nápoles (1806) e a destruição da frota dinamarquesa e bombardeamento de Copenhaga pela armada britânica, como represália pelo alinhamento da Dinamarca com a França de Napoleão (1807).

Em Novembro de 1807, a barra do porto de Lisboa, já se encontrava bloqueada por uma poderosa frota britânica, onde os sinais de impaciência pela não clarificação da atitude do governo português - sempre confiante até ao fim na obtenção da manutenção de uma neutralidade negociada -, poderiam ter conduzido a um irreparável desenlace: a captura ou destruição da frota portuguesa e o consequente bombardeamento de Lisboa. Estas chegaram a ser opções ponderadas, no caso do prolongamento de uma já insuportável situação dúbia. Sabia-se da rápida aproximação do exército invasor de Junot e era urgente a concretização daquilo que fora acordado pela chamada Convenção Secreta luso-britânica (22 de Outubro de 1807) que indicava a transferência da família real e do governo para o Rio de Janeiro. Para os ingleses, era crucial a manutenção de um aliado no concerto dos Estados europeus, propiciador de um exemplo de sucesso face às ambições expansionistas da França.

Conhecemos bem os detalhes do embarque e ao longo de um século e meio, sobrevalorizaram-se os aspectos anedóticos que eram aliás, inevitáveis, devido às condições precárias do momento. No entanto, a alegada "fuga" - que jamais ocorreu -, faz--se de uma forma inédita em toda a História europeia: é todo um aparelho de Estado que embarca, a quase totalidade do tesouro e uma inquantificável quantidade de documentos, 60.000 livros da Biblioteca Real e bens sumptuários, enfim, uma sociedade inteira que se traslada para um território longe da rapina inimiga e que se exime também - talvez o aspecto mais relevante para a mentalidade da época -, ao vexame da capitulação. Seria bastante útil, procedermos ao completo levantamento e apreciação da reacção da ainda incipiente opinião pública dos diversos países europeus que, naquele momento de todas as incertezas e temores, decerto vislumbrou o bruxelear da chama de uma resistência à prepotência, latrocínio e violência a que os povos estavam submetidos. Foi na verdade, a primeira vez que Bonaparte não venceu e disso deu testemunho nas suas Memórias.

Muito mais tarde, decorridos cento e trinta anos, outros governos e soberanias imitariam, de uma forma ainda mais apressada e sobretudo, menos digna, o exemplo dado pelo Regente D. João, encontrando novos portos de abrigo onde se eximiram aos ditames do vencedor do momento. A rainha Guilhermina da Holanda e os reis Haakon, Pedro II e Jorge II da Noruega, Jugoslávia e Grécia, respectivamente, puderam organizar a resistência nacional à invasão nazi. A derrota militar foi apenas uma batalha perdida e possibilitaram com essas "fugas", o forjar de armas e exércitos que desafrontaram as suas nações. O Armistício francês de Junho de 1940, foi prenhe de consequências nefastas, das quais a França jamais se libertou e podemos legitimamente imaginar, como teria evoluído a II Guerra Mundial, no caso do governo francês não ter ido à Canossa indicada pela vencedora Wehrmacht.

Podemos apenas imaginar o que teria sucedido se Junot tivesse conseguido executar as ordens recebidas das mãos do seu imperador. O Regente e toda a sua família, conheceriam o mesmo destino dos Bourbon de Espanha, partindo coactos para um incerto exílio em França, onde uma abdicação era a hipótese mais provável. O Brasil tal como hoje o conhecemos, jamais existiria na sua grandeza territorial e talvez, até na sua estrutura e multiplicidade étnica. As ilhas atlânticas, seriam hoje, possíveis territórios da coroa britânica, à semelhança de Gibraltar. Embora a derrota final de Napoleão fosse inevitável - dada a relação de forças em presença e a hegemonia inglesa nos mares -, é lícito questionar, se Portugal não teria um destino semelhante ao da Noruega, Finlândia ou Polónia, que no Congresso de Viena, foram sacrificadas às razões do equilíbrio de poder na Europa e à política de simplificação do mapa e de compensações.

Pelo contrário, a declaração de guerra à França - assinada já pelo Regente na sua nova capital além-mar -, possibilitou a manutenção da legitimidade e existência do Estado como entidade soberana. O levantamento nacional, a organização de um exército que foi um instrumento precioso sob o comando de Wellington, garantiram a presença de Portugal na Grande Mesa do Congresso, ao lado da Inglaterra, Rússia, Áustria, Prússia, França e Espanha. Foi talvez, o momento áureo da velha aliança luso-britânica e do efectivo nascimento do Brasil como nação internacionalmente reconhecida, com o nome de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

O Regente D. João prestou um grande serviço ao país, e ao fazê-lo, criou uma segunda uma segunda Pátria que é também de todos nós. O Brasil, como diz aquele bem conhecido Fado Tropical, talvez ainda se ..."vai tornar num imenso Portugal"... É esta a nossa garantia de sobrevivência como cultura, língua e destino, que são ímpares na Europa. No passado sábado, estava - sei eu lá porquê? - hasteada uma bandeira brasileira na grande varanda do Palácio de S. Bento. Naquele momento de passeio por Lisboa, recordei agradecido, a decisão tomada numa hora de grande comoção nacional. Se pudesse ter visto a fachada do Parlamento, D. João VI teria sorrido com bonomia. A prudência e a memória eram duas das suas grandes qualidades. Saibamos aproveitar o precioso legado.