segunda-feira, maio 19, 2008

Chamem a polícia!

Durante a minha recente e breve passagem por Portugal, fui visitado por três amigos russos de Moscovo e apressei-me a mostrar-lhes a minha Pátria.
Como não podia deixar de ser, fui mostrar-lhes o Mosteiro dos Jerónimos e, junto do túmulo do nosso grande poeta Luís de Camões, falava-lhes da vida e obra do poeta, das traduções das suas obras, dos reflexos da sua obra na Rússia, ou seja, um daqueles lugares onde temos orgulho de ser portugueses. Nem todos os poetas portugueses viram as suas obras vertidas para russo, nem todos os poetas lusos tiveram o privilégio de serem citados e elogiados por russos de renome como Lomonossov, Jukovski, Puchkin, etc.
Mas, de súbito, à minha frente surgiu um homem que aparentava ser guia turístico e começou a "pregar-me um sermão" no latim moderno, ou seja, em inglês.
Os três russos ficaram estupefactos ao ouvirem o dito homem dizer que eu não tinha direito de estar com eles ali, ao lado do túmulo de Camões, nem no Mosteiro dos Jerónimos.
Quando ele terminou o discurso, virou a costas e foi ter com os seus turistas, mas, quando eu reatei o relato, voltou para trás e dirigiu-se uma vez mais a mim novamente em inglês.
Olhei para ele e perguntei-lhe se falava português. Quando me respondeu que sim, perguntei-lhe que me explicasse o que é que queria de mim. Ele respondeu-me: "Você não tem direito a estar aqui a falar com essas pessoas, porque não é guia turístico!"
Não obstante eu lhe ter dito que, daquela vez, eu não estava a servir de guia, mas que estava apenas a acompanhar os meus amigos, o guia voltou à carga e disse-me: "Vocês não podem ser mais de três".
Comecei-me a rir porque me lembrei do velho hábito russo de beber vodka a três, mas o homem é que não achou graça nenhuma à minha reacção.
"Vou chamar a GNR! Vou trazer aqui a GNR!" - disse homem com um ar claramente nervoso.
"Chame, eu vou ficar aqui à espera!" - respondi eu.
Os meus amigos russos perguntaram se não era melhor a gente se ir embora para não ter problemas, mas eu expliquei que não estava a cometer crime nenhum e que, provavelmente, o guia já tinha abandonado a ideia de ir chamar o agente da GNR. O que veio a acontecer.
Para que o leitor compreenda a "acção patriótica" do guia, tenho de fazer uma adenda a este texto. Efectivamente, em Portugal, só pessoas devidamente autorizadas é que podem fazer excursões com turistas e isso até teria sentido se o nosso país estivesse preparado para reagir atempadamente aos desafios do mundo moderno.
Na realidade, as escolas de turismo limitam-se a preparar guias com o conhecimento das línguas portuguesa, inglesa, espanhola, francesa, e pouco mais. Os novos mercados praticamente não são levados em conta.
Por exemplo, os russos visitam Portugal como destino turístico há pouco mais de dez anos. No ano passado, o Ministério da Economia registou quase 20 mil turistas russos, mas no nosso país há apenas seis (repito, seis!) guias que sabem falar língua russa. Tendo em conta a legislação rígida portuguesa face ao trabalho dos guias, a maioria desses turistas deveria ficar "a ver navios", isto porque os russos preferem que falem com eles na língua deles no estrangeiro, vendo nisso um motivo de orgulho. Além disso, há muitos russos que não falam outra língua.
Nesta situação, as pessoas que sabem russo e conhecem a História de Portugal vêem-se obrigadas a trabalhar "clandestinamente", o que é um profundo absurdo.
Lanço daqui um apelo directo ao Dr. Bernardo Trindade, Secretário de Estado do Turismo. O doutor Bernardo tem feito muito para fazer de Portugal um país de turismo para os russos. Na última exposição de turismo de Moscovo, o doutor esteve entre os que organizaram um pavilhão de que não podemos ter vergonha.
Porém, considero que é preciso resolver o problema dos guias para línguas exóticas como o chinês, russo, polaco, japonês, etc.
E aos guias portugueses de turismo apenas posso dizer. As pessoas que trabalham com turistas russos não são vossos concorrentes, porque falam uma língua que muito poucos de vocês falam. Seria mais importante que contribuissem para que as nossas escolas de turismo acompanhem o progresso. Isso seria bom para todos. Penso eu!...

4 comentários:

Anónimo disse...

José Milhazes:
Essa postura corporativista do guia português proporcionou uma cena dessas que deliciariam a criatividade literária de gênios como Gogol ou Dostoievsky. Ficaria ainda mais interessante se a polícia de fato viesse e você fosse obrigado a provar tratar-se de amigos russos e não clientes. Temos que entender essas coisas pelo seu lado cômico, caso contrário não valerá a pena consumir-mos nossos fígados com tal tipo de irritação.
Mas, imagino eu, que depois de tantos anos de URSS+Rússia, você está mais do que preparado para esse tipo de surpresa burocrática. A própria tranquilidade como, segundo a descrição, reagistes ao inconveniente patrulheiro, bem demonstra que a vida na Rússia te acrescentou muito de tolerância e paciência com a má-vontade alheia.
Abraços do Brasil,
ALMIR

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro Almir, só fico triste pelo facto de nós, portugueses, demorarmos tanto tempo a reagir aos desafios do tempo. Eu até achei divertida a cena, mas os russos, que consideram já ter visto tudo, ficaram bastante perplexos.
Saudações lusas de Moscovo

Anónimo disse...

A situação é a seguinte: não passa pela cabeça de ninguém que se vá com amigos para o Mosteiro dos Jerónimos. Com amigos vai-se beber um copo, aos fados, comer caracois.
Daí ter sido confundido com um guia turistico clandestino a roubar trabalho a honesto "trabalhador" oficial.
Essa da GNR é do melhor e o facto de o guia falar só em inglês, um prova da sua cultura universal. Quem é que em Portugal, em local turistico, fala português?
É claro que é o retrato do pais que somos, e tem muita razão, onde está a actualização nas linguas "exóticas?" Queremos ser um pais de turismo e com turista, mas... ainda falta um pouco para lá chegar.

Da Rússia, de Portugal e do Mundo disse...

Caro leitor Maremoto, eu falei nos Jerónimos, porque foi lá que aconteceu a estória. Também fomos aos restaurantes e bares. Estivemos numa excelente marisqueira da Almirante Reis, mas lá, nem os patrões, nem os empregados de mesa se interessaram se eu era guia turístico. Talvez seja resultado da economia de mercado.
Não fomos ouvir fado porque não houve tempo, mas também aí não me iriam pedir o cartão de guia. E ainda bem.