Cheguei à URSS alguns meses antes do Natal, em Setembro de 1977, e, não obstante os soviéticos estarem proibidos de celebrar o nascimento de Cristo, nós, os portugueses, bem como outros povos cristãos que andavamos a Leste, não queríamos deixar passar essa data despercebida. Não porque fossemos crentes, não - eu, pelo menos, naquela data, era "ateu combativo" (segundo a escala soviética anti-religiosa) -, mas apenas porque se tratava de uma festa muito especial, familiar. E todos estavamos longe de casa...
E será possível confeccionar uma verdadeira ceia natalícia sem bacalhau? Claro que não. Na URSS, havia muito bacalhau e era dos poucos peixes que apareciam à venda nas lojas, mas tratava-se de peixe fresco. Algumas estudantes tentaram salgá-lo e secá-lo nos aquecedores das residências estudantis, mas, ao que sei, sem êxito. Imaginem só o odor!
Era preciso bacalhau salgado e foi o C. que nos salvou nesta, bem como noutras situações anteriores. Por exemplo, como alguns estudantes (eu era um deles) acreditavam que quando chegasse à URSS poderiam ter acesso a roupas (recebemos apenas um gorro de pele, um sobretudo e umas botas que nos tornavam semelhantes aos idosos membros do Bureau Político do Comité CEntral do Partido Comunista da União Soviética), levavam muito pouca coisa consigo. Como o C. era prevenido, emprestou roupa a muita gente, não obstante as medidas divergirem. Eu que o diga...
Mas voltemos ao bacalhau... Os pais do C. utilizaram a vinda da equipa de futebol do Boavista a Moscovo, que devia defrontar o Dínamo, para mandar bacalhau. Artur, defesa da equipa do Bessa, foi o correio.
Deixo ao C. a oportunidade de um dia nos revelar como fomos recebidos por um senhor que já naquela altura era major, mas a dificuldade maior estava ultrapassada: tínhamos o fiel amigo.
Quando chegou o dia 24 de Dezembro, a cozinha de um dos andares da nossa residência estudantil (DAS) foi ocupada pelos portugueses, despertando com a sua azáfama e odores a curiosidade dos representantes das mais diversas nacionalidades.
Eu consegui até preparar "rabanadas à poveira" e, se bem me recordo, com algumas doses de vinho do Porto.
Naquela altura, essa bebida nacional estava representada nas lojas soviéticas a um preço muito alto: 4 rublos e 60 kopeeks (mais de sete dólares segundo o câmbio oficial) e era uma das formas do Partido Comunista da União Soviética contribuir para os cofres do seu congênere português. Numa fundo, estavamos a pagar uma quota suplementar ao Partido Comunista Português.
Uma surpresa, não sei se agradável ou não, esperavamo-nos quando decidimos cozer o bacalhau. O "fiel amigo" era tanto que não tínhamos tachos e panelas suficientes. Depois de longas meditações, decidimos pedir a três estudantes cipriotas que viviam com a portuguesa E. a bacia metálica que elas utilizavam, normalmente, para lavar a roupa.
A decisão provocou gargalhadas e piadas apimentadas, mas o certo é que conseguimos cozinhar o bacalhau. As batatas e as couves foram preparadas à parte.
E ainda bem que preparámos todo o bacalhau, porque, há última da hora, surgiram uns "penduras", mas, na noite de Natal, todos são bemvindos. Tivemos apenas de ter cuidado com o vinho georgiano, pois era pouco para tanta gente.
Foi uma festa inesquecível e longa. Talvez por isso não me lembro da última parte... No dia seguinte, os estudantes portugueses do DAS não puseram os pés nas aulas. Mas a data justificou a ausência, mesmo num país oficialmente ateu.
P.S. Escrevo apenas as iniciais de alguns dos participantes na festa, mas éramos muito mais.
E será possível confeccionar uma verdadeira ceia natalícia sem bacalhau? Claro que não. Na URSS, havia muito bacalhau e era dos poucos peixes que apareciam à venda nas lojas, mas tratava-se de peixe fresco. Algumas estudantes tentaram salgá-lo e secá-lo nos aquecedores das residências estudantis, mas, ao que sei, sem êxito. Imaginem só o odor!
Era preciso bacalhau salgado e foi o C. que nos salvou nesta, bem como noutras situações anteriores. Por exemplo, como alguns estudantes (eu era um deles) acreditavam que quando chegasse à URSS poderiam ter acesso a roupas (recebemos apenas um gorro de pele, um sobretudo e umas botas que nos tornavam semelhantes aos idosos membros do Bureau Político do Comité CEntral do Partido Comunista da União Soviética), levavam muito pouca coisa consigo. Como o C. era prevenido, emprestou roupa a muita gente, não obstante as medidas divergirem. Eu que o diga...
Mas voltemos ao bacalhau... Os pais do C. utilizaram a vinda da equipa de futebol do Boavista a Moscovo, que devia defrontar o Dínamo, para mandar bacalhau. Artur, defesa da equipa do Bessa, foi o correio.
Deixo ao C. a oportunidade de um dia nos revelar como fomos recebidos por um senhor que já naquela altura era major, mas a dificuldade maior estava ultrapassada: tínhamos o fiel amigo.
Quando chegou o dia 24 de Dezembro, a cozinha de um dos andares da nossa residência estudantil (DAS) foi ocupada pelos portugueses, despertando com a sua azáfama e odores a curiosidade dos representantes das mais diversas nacionalidades.
Eu consegui até preparar "rabanadas à poveira" e, se bem me recordo, com algumas doses de vinho do Porto.
Naquela altura, essa bebida nacional estava representada nas lojas soviéticas a um preço muito alto: 4 rublos e 60 kopeeks (mais de sete dólares segundo o câmbio oficial) e era uma das formas do Partido Comunista da União Soviética contribuir para os cofres do seu congênere português. Numa fundo, estavamos a pagar uma quota suplementar ao Partido Comunista Português.
Uma surpresa, não sei se agradável ou não, esperavamo-nos quando decidimos cozer o bacalhau. O "fiel amigo" era tanto que não tínhamos tachos e panelas suficientes. Depois de longas meditações, decidimos pedir a três estudantes cipriotas que viviam com a portuguesa E. a bacia metálica que elas utilizavam, normalmente, para lavar a roupa.
A decisão provocou gargalhadas e piadas apimentadas, mas o certo é que conseguimos cozinhar o bacalhau. As batatas e as couves foram preparadas à parte.
E ainda bem que preparámos todo o bacalhau, porque, há última da hora, surgiram uns "penduras", mas, na noite de Natal, todos são bemvindos. Tivemos apenas de ter cuidado com o vinho georgiano, pois era pouco para tanta gente.
Foi uma festa inesquecível e longa. Talvez por isso não me lembro da última parte... No dia seguinte, os estudantes portugueses do DAS não puseram os pés nas aulas. Mas a data justificou a ausência, mesmo num país oficialmente ateu.
P.S. Escrevo apenas as iniciais de alguns dos participantes na festa, mas éramos muito mais.
14 comentários:
OFF TOPIC:
ONDE ESTÁ O AQUECIMENTO GLOBAL? A EUROPA TÁ UM VERDADEIRO FREEZER E O INVERNO MAIS RIGOROSO DO QUE DE COSTUME!
Os Eco-fanáticos estão de cabelo em pé!
Belíssima história meu caro! Um abraço e festas felizes ;)
Que bela história!
Aproveito para recomendar a água mineral georgiana de Borjomi (http://www.borjomi.ge/en), os georgianos dizem que Borjomi é uma água que não consegues parar de beber.
Gostei de ler caro JM, gostei de ler.
Aproveito para desejar a si e aos leitores/participantes do seu blogue, umas festas felizes.
PortugueseMan
Essa história lembra-me minha estadia no Pushkin.
Já agora, as "piadas apimentadas" não tinham nada a ver com o "bacalhau", ou teriam ;o)
Um muito bom Natal, JM.
Ab,
Caro Pippo, as piadas tinham a ver com a bacia das estudantes cipriotas!
Ainda não conhecia o Quim Barreiros!
Bacana as estórias dos ex-estudantes mias antigos. :)
No meu primeiro Natal na Rússia, em 2002, a realidade foi um pouquinho melhor que a do caro Milhazes. hehe
Fizemos uma senhora ceia na residência estudantil que me fez sentir-me um pouco no Brasil.
Ao todo éramos somente 6 brasileiros, mas convidamos alguns amigos latino-americanos, entre os quais, colombianos, chilenos e peruanos.
Eu e meu colega de quarto fomos responsáveis por um dos perus(Sadia) da ceia. Mas teve também pernil de porco, lombo de porco, chester(Sadia), um prato com filé que não lembro qual era o molho, costelas bovinas... farofa, frutas secas, castanhas, etc.. Muito vinho e champagne, e para matar a saudade, caipirinha(encontramos cachaça no supermecado).
A ceia teve um sabor especial para mim porque como cheguei a Moscou também em setembro, desde então não havia tido uma refeição decente. Só comendo porcarias de estudante, e porcarias nos cafés da universidade.
Nos anos seguintes já morava em apartamento com outro amigo brasileiro, e organizávamos em casa, tinha menos gente, só os amigos mais chegados, mas foram Natais muito animados também.
Agora moro só e infelizmente, há uns 3 anos que não celebro o Natal. As responsabilidades aumentaram, e aqui na Rússia o dia 25 é um dia como outro qualquer... Apesar de ateu, sempre gostei dessa data, da festa e da confraternização -- e claro, da comida!
Um Feliz Natal a todos! Comam, bebam e se divirtam com seus amigos e familiares!
O grande e mítico Quim Barreiros, do qual assisti tantos concertos em festas de estudantes, tendo inúmeras vezes me baladado aos estudos para participar nessas inesquecíveis festarolas.
:o)
Cumpts
Manuel Santos
Um abraço amigo para si, Gilberto!
Manuel Santos
Sempre nos juntávamos e comemoravamos uma festa que era mais do que religiosa: era a nossa identidade. Com um benfiquista a torcer pelo porto, etc.
Realmente as roupas era o pior, não prestavam, mas a malta sempre se desenrascava. O pior eram as botas, peça crítica naquela zona.
Apesar de tudo, bons tempos.
Feliz natal a todos
Foi com muitas saudades que li o post do JM sobre a residência DAS em Moscovo, onde vivi também vários anos. Tempos inesquecíveis! Por um lado, havia a euforia da juventude, o convívio com pessoas de todas as partes do mundo mas, por outro, tínhamos de “resistir” às mil e uma regras que o sistema nos impunha, às normas incompreensíveis para quem vinha de Portugal, às tradições estranhas, à rigidez ideológica que aceitávamos com ligeireza e ingenuidade.
Recordo-me da história (foram muitas histórias!) da minha colega de quarto, a Ritsa, natural da Grécia, que tinha um namorado russo, um estudante de Belas-Artes que devido ao namoro “proibido” com uma jovem “de país capitalista”, acabara por ter de abandonar os estudos….
Nessa altura, no DAS não se podia entrar de qualquer maneira. Só lá entrava quem lá vivia e, para todos os restantes (antigos estudantes, amigos, visitantes, familiares) era necessário fazer um discurso dramático, sem garantias de sucesso, perante umas senhoras anafadas e histéricas que faziam a segurança à entrada. Eram diários os conflitos dos estudantes com estas senhoras habituadas a gritar e a chamar a polícia se alguém “estranho” teimava em entrar e a coisa dava para o torto.
O namorado da minha colega já não era estudante, não era familiar e, por isso, não podia entrar. Depois de vários meses a medir forças com as senhoras da entrada, a única opção foi utilizar a escada de incêndio, uma estrutura metálica que acompanhava a empena do prédio. O pior era o frio, o vento no Inverno e … a necessidade de subir e descer diariamente 14 andares por aqueles degraus metálicos gelados…. Só sei que passaram a viver assim durante dois anos…
Algum tempo mais tarde, a Ritsa casou com o namorado e conseguiu obter um quarto individual no edifício central da Universidade. Mas os problemas não acabaram. Embora o marido fosse legítimo, não podia entrar no edifício do MGU, ou melhor, poder podia mas, de cada vez a Ritsa tinha que preencher um formulário e pedir uma autorização especial “para visita de familiar”. Só com essa autorização, concedida no máximo para duas semanas, o marido podia entrar na residência, cuja entrada, aliás era guardada por polícias bem treinados. Assim sendo, “visitas diárias” eram impensáveis. A solução foi altamente criativa. Todos os estudantes de pós-graduação tinham uma espécie de “salvo-conduto” vermelho com fotografia para entrar no edifício. O marido da Ritsa achou, já que ninguém oficialmente lhe autorizava a entrada, que a melhor solução era “fazer” um “salvo-conduto” para si, idêntico aos outros mas com a sua fotografia.
De referir que, nessa altura na União Soviética, não havia máquinas de fotocópias (só existiam nos serviços oficiais e o público em geral não tinha acesso). A verdade é que o criativo marido da Ritsa conseguiu, com a ajuda de uma máquina de revelação de fotografias amadoras que tinha em casa, fazer um documento bastante semelhante aos originais para entrar na Universidade. Acreditem ou não, mas todos os dias os polícias à entrada verificavam a fotografia, os carimbos e as datas imprensas, devolvendo o documento sem fazer perguntas….
Tudo estaria bem não fosse o quase pânico diário que ambos experimentavam ao entrar. Qual seria o dia em que a Polícia desconfiaria? Uma tal criatividade podia acabar em prisão…
Graças a Deus, isso nunca aconteceu. Eu e a Ritsa terminámos a Universidade e hoje eles têm dois filhos e vivem em Atenas. Felizmente que os tempos mudaram.
Cristina Mestre
Deliciosa história.
Essa da bacia para lavar roupa das colegas cipriotas, não é nada, se comparado com a "técnica" utilizada por um conhecido meu (exímeo pescador).
Ele guardava os robalos, no bidé da casa dele, - naturalmente em água salgada do mar - alegadamente para que eles se mantivessem vivos, e, portanto, frescos :D
Eles costumava dar-me lulas (fresquíssimas e deliciosas) que pescava.
Escusado será dizer, que a partir de certa altura, mais concretamente logo que tomei conhecimento do modo como ele "conservava o pescado fresco" :D deixei de aceitar as gentis ofertas dele :D
Também achei curioso o financiamento do PC, via, Vinho do Porto. ;-)
E bem assim, como das vãs tentativas de salga com recurso ao aquecedor, que, pese o engenho, não tiveram êxito. E imagino o pivete a bacalhau, nos quartos! :D
Enviar um comentário