Texto traduzido e enviado pelo leitor António Campos
"Doktor Strannoyu Lyubov’yu - Como aprendi a deixar de me preocupar e a amar as Brigadas
Inúmeras vezes foi a liberdade dos meios de comunicação e da internet na Rússia alvo de acesas discussões neste blog. Talvez seja então interessante partilhar com os leitores uma análise resumida do ciberespaço russo, oferecida pela ONG Repórteres sem Fronteiras, a qual classificou a Rússia com o termo deliciosamente eufemista de "pais a vigiar". Especialmente fascinante é a parte referente ao tratamento das discussões nos blogs e fóruns, que soará certamente familiar a muitos dos leitores do darussia. Esperemos então tranquilamente, refastelados no sofá, que a "Brigada" (termo cujo significado será oportunamente explicado na tradução abaixo) apareça para nos presentear com os enxovalhos da praxe.
Já agora, e em atenção às almas menos cinéfilas, o título que escolhi para esta tradução é um trocadilho com o da conhecida sátira cinemática da guerra fria e obra-prima de Stanley Kubrick, “Dr. Strangelove”. Título esse que também reflecte indirectamente a minha fascinação, a roçar o doentio, pelo país em apreço.
"Após o assalto aos meios audiovisuais pelo Kremlin nos primeiros tempos da era Putin, a Internet passou a ser o mais livre espaço de discussão e partilha de informação na Rússia. No entanto, a sua independência está a ser ameaçada por encarceramentos e processos judiciais contra bloggers, bem como pelo bloqueio de websites independentes rotulados de "extremismo". A web tornou-se igualmente numa esfera fundamental para actividades de propaganda governamental, existindo o potencial de a mesma se tornar num mecanismo de controlo político.
O acesso à web expandiu-se largamente nos últimos anos, com apoio governamental. O projecto da criação de um Silicon Valley russo foi lançado no dia 31 de Dezembro de 2009, por decreto do presidente Medvedev.
A internet é regulada pelo Serviço Federal para a Supervisão das Comunicações, cujo director é nomeado pelo primeiro-ministro. Desde o início, o governo assegurou a existência de meios para realizar vigilância na internet. Em 2000, foi exigido a todos os prestadores de serviço de internet que instalassem o software "Sorm-2" (acrónimo em língua russa para "Sistema para Actividades Operacionais de Investigação"). Este programa permite ao FSB aceder às actividades de navegação e ao tráfego de emails dos utilizadores. Uma lei de 2007 autoriza o governo a interceptar dados da web sem ordem prévia do tribunal. As redes sociais tais como o Vkontakte e a plataforma bloguista LiveJournal foram compradas por oligarcas próximos do regime.
Sites "problemáticos" bloqueados, alvos de processos judiciais ou vítimas de ataques informáticos
A internet não está sujeita a um sistema de filtragem automática. No entanto, os sites independentes e os próximos da oposição têm sido tornados inacessíveis nos últimos meses. Em 2008, o site www.kompromat.ru foi bloqueado por diversos prestadores de serviços de internet antes das eleições presidenciais, tendo sido posteriormente desbloqueado. Em Dezembro de 2009, os sites de Garry Kasparov (www.kasparov.ru e www.rusolidarnost.ru) e o www.nazbol.ru, o site do partido nacional-bolchevique, foram bloqueados para os utilizadores do prestador Yota. Este refutou as alegações, citando problemas técnicos, tendo os sites sido mais tarde desbloqueados. A gestão da operadora Skartel, detentora do Yota, admitiu que a empresa bloqueia sites que o ministério da justiça classifica como "extremistas". A lista de conteúdos "extremistas", publicada pela procuradoria-geral, inclui quase 500 termos, sendo constantemente actualizada sob a vigilância apertada dos "e-centros" responsáveis pela eliminação do extremismo. O artigo 282º do Código Penal russo define "extremismo" como "xenofobia e incitação ao ódio por parte de um grupo social". Foi esta a justificação dada para encerrar o site www.ingushetiya.ru, o único portal de notícias na língua inguche. O site www.ingushetiyaru.org foi então criado. No mesmo contexto, em Fevereiro de 2010, a polícia russa abriu uma investigação sobre o portal www.grani.ru, uma plataforma para jornalistas independentes e activistas de direitos humanos. O mesmo tratamento foi dado ao www.kompromat.ru e ao site do Moscow Post, que tinham relatado uma disputa violenta entre altos funcionários policiais embriagados.
Muitas vezes, basta uma chamada das autoridades para obter permissão para apagar conteúdos, ou para bloquear um site. Aleksandr Ovchinnikov, director da empresa de web hosting Masterhost admitiu a existência desta prática.
Os ataques informáticos são um lugar-comum. Em Janeiro de 2010, o site www.ingushetiya.org foi atacado imediatamente após a publicação da última entrevista a Natalia Estemirova, a activista de direitos humanos assassinada em Julho de 2009. O mesmo aconteceu ao site da revista chechena Dosh, apenas alguns dias após este ter recebido o prémio Liberdade de Imprensa, atribuído pela Repórteres sem Fronteiras em Dezembro de 2009. O site da Novaya Gazeta esteve inacessível durante mais de uma semana em finais de Janeiro, na sequência de um ataque "altamente organizado e poderoso".
Propaganda e intimidações
Vladimir Putin afirmou em Janeiro de 2010 que "50% do conteúdo da internet é pornografia. Para que é que então nos precisamos de preocupar?", tendo negado acusações formuladas na internet que os resultados nas eleições regionais de Outubro de 2009 teriam sido falsificados. Não obstante, o governo está omnipresente na net e optimiza a utilização do meio. Uma das vedetas bloguistas da RuNet (a versão russa da Internet) é nada mais nada menos do que o presidente Dmitry Medvedev. Em Março de 2008, as autoridades locais inguches criaram um site com um endereço quase idêntico ao do site de notícias www.ingushetiyaru.org, cujo objectivo é apresentar uma versão diferente das notícias que este apresentava.
Os apoiantes do governo são rápidos a reagir às críticas publicadas online, "afogando-as" num mar de comentários positivos. Os mais virulentos de entre eles formaram um grupo chamado a "Brigada", sendo alguns deles membros pagos. Estes infiltram-se visivelmente nos fóruns de discussão, discutindo os assuntos por vezes violentamente, não hesitando mesmo em usar insultos e ameaças. Em Junho de 2009, o economista Evgeny Gontmakher revelou no Moscow Times que tinha sido alvo de "ataques maciços" por bloggers pagos pelo governo, após ter criticado Vladislav Surkov, director-adjunto da equipa presidencial. Na sua opinião, "a moderna máquina de propaganda russa infiltra-se em praticamente todos os principais meios de comunicação, estendendo-se mesmo à blogosfera."
Bloggers cada vez mais alvos de processos judiciais
Em Julho de 2008, o blogger Savva Terentyev foi acusado de "achincalhar a dignidade humana de um grupo social" (neste caso, a polícia), tendo sido condenado a um ano de pena suspensa. Irek Murtazin foi condenado a uma pena de prisão de 21 meses por "difamação e incitamento ao ódio", por ter publicado uma mensagem sugerindo que Mintimer Shaimiev, chefe do executivo to Tatarstão na altura, tinha morrido. O caso foi objecto de recurso para o Supremo Tribunal.
O blogger Dimitri Soloviev foi investigado por ter "incitado ao ódio contra a polícia e o FSB". As acusações foram retiradas em Janeiro de 2010, após dois anos de processo judicial. Em 1 de Setembro de 2009, o Ministério do Interior da República da Khakássia (no sudoeste da Sibéria) retirou as acusações contra Mikhail Afanasyev, editor do site Novy Focus, que tinha sido acusado de espalhar "falsos rumores". Este tinha publicado uma notícia sobre a explosão fatal de uma turbina na central eléctrica Sayano-Shushenskaya, que levou à morte de 73 trabalhadores, a qual incluía críticas à forma como as autoridades tinham lidado com a tragédia.
Em Dezembro de 2009, o blogger Ivan Peregorodiev foi preso e acusado de "disseminar informações falsas relativas a um acto de terrorismo" porque tinha discutido, no seu blog, boatos de acordo com os quais vítimas do vírus H1N1 tinham realmente morrido. Por seu lado, o blogger Dmitri Kierlin foi acusado de "apelar ao derrube da ordem política vigente e formular comentários desrespeitadores sobre funcionários incumbentes, nomeadamente o primeiro-ministro Vladimir Putin."
Alexei Dymovsky, um polícia que denunciou corrupção policial num vídeo disseminado pela internet, foi alvo de uma investigação criminal em Dezembro de 2009 por "abuso de poder e fraude", de acordo com o ministério público. Arrisca-se a uma pena de 6 anos de prisão.
Vadim Charushev, o criador do Vkontakte, uma das mais populares redes sociais russas, foi internado contra a sua vontade num hospital psiquiátrico em Março de 2009.
Jornalista online assassinado
Magomed Yevloyev, um dos criadores e o proprietário do site de notícias inguche ingushetiyaru.org foi assassinado em Agosto de 2008 enquanto se encontrava detido pelos agentes de segurança do ministério do interior. O jornalista foi preso no aeroporto de Nazran, pouco depois da sua chegada. No avião por ele utilizado, viajava também o então presidente da república da Inguchétia, Murat Zyazikov. Poucas horas depois, Yevloyev, baleado na cabeça, deu entrada no hospital, tendo falecido mais tarde na mesa de operações. O assassínio continua impune.
Uma blogosfera dinâmica
Em Novembro de 2009, os bloggers Oleg Kozyrev e Viktor Borb criaram um "sindicato dos bloggers" para proteger os direitos e liberdades dos cidadãos da net, tendo também conduzido campanhas em auxílio dos bloggers presos ou processados judicialmente.
Por vezes, a internet pode preencher o vácuo criado pelos meios de comunicação tradicionais. Em 2008, uma notícia sobre a demolição de edifícios históricos em Moscovo, cujos residentes foram despejados, para dar espaço à construção de escritórios e centros empresariais novos, foi parcialmente censurada pelas autoridades, tendo sida passada confidencialmente no canal NTV. Por outro lado, o vídeo foi publicado no RuTube (um clone do YouTube), tendo-se tornado num enorme sucesso, com mais de 200.000 visualizações em poucos dias.
A internet é também um espaço para a mobilização política. Roman Dobrokhotov, líder do movimento dos jovens democratas russos "Nós", um partido da oposição, afirmou que todas as suas actividades são realizadas através da internet usando um grupo do Google. É mais fácil mobilizar pessoas online do que nas ruas.
A internet tornou-se hum espaço onde a população pode denunciar a corrupção dos funcionários russos. Marina Litvinovich, uma das líderes da Frente Cívica Unida, um partido da oposição, publicou no seu blog um artigo onde criticava a impunidade que beneficiou a filha de uma funcionária pública da região de Irkutsk que, apesar de ter sido a causadora de um acidente rodoviário fatal em Dezembro de 2009, foi tratada apenas como se fosse testemunha. Marina Litvinovich lançou um apelo a outros bloggers, pedindo-lhes que disseminassem essa informação, criando um link para o seu artigo ou republicando-o, o que muitos utilizadores da net fizeram. A iniciativa teve o mérito de sensibilizar o público para a tragédia e a blogger crê que os tribunais terão que deixar de se esquivar de abordar seriamente estas questões.
Actualmente, o impacto destas mobilizações, blogs e novos meios de comunicação online na sociedade russa é ainda relativamente limitado. A atitude das autoridades nos meses vindouros determinará se os actos de censura, ou a intimidação e os encarceramentos constituem ou não uma indicação de uma tentativa deliberada de assumir o controlo dos novos meios de comunicação. A introdução de censura na net russa terá consequências muito mais nefastas, na medida em que se alastraria à região, tendo um impacto negativo no direito à informação no Cáucaso e na Ásia Central onde os cidadãos online censurados têm por vezes acesso à internet russa.”
Original em: http://en.rsf.org/surveillance-russia,36671.html
4 comentários:
"Os apoiantes do governo são rápidos a reagir às críticas publicadas online, "afogando-as" num mar de comentários positivos. Os mais virulentos de entre eles formaram um grupo chamado a "Brigada", sendo alguns deles membros pagos"
Francamente, nunca ouvi de alguma "brigada", mas é uma posição muito cómoda: se o sr. Campos não gosta da opinião de alguem, então este comentarista é proclamado logo um agente do Kremlin pago. Uma posição de um verdadeiro democrata.
E mais um pouco sobre alguns sites caucasianos. O sr. autor tem a certeza de que realmente não eram extremistas? Devo dizer que em certas condições para os extremistas é indeferente a quem matar ou explodir, ou cortar a cabeça: aos russos ou mais alguns turistas ou a cidadãos estrangeiros.
O resto é a mesma canção velha destas organizações não governamentais. Resta saber quem os subsidia.
A existência da brigada é largamente conhecida, o artigo sobre o funcionamento da Brigada foi publicado e republicado por uma sentena de páginas russas...
Não contesto a necessidade de controlar os movimentos verdadeiramente extremistas, especialmente os do Cáucaso, que apelam à luta armada e à "guerra santa". O grande problema é quando se utiliza as leis do extremismo para combater a oposição política, para reprimir quem protesta contra o poder. Quem define quem é extremista e quem não é? Onde estão os critérios? Não havendo critérios é meio caminho andado para a arbitrariedade. Basta um autor dizer "Putin é fascista" ou algo do género para ser considerado extremista. Isso é que é preocupante
José L.
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