Texto escrito e enviado pelo leitor António Campos:
"Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades", lá diz o velho ditado português, que parece reflectir o encanto que, de quando em vez, para nós vão tendo as politiquices entre quistos totalitários regurgitados das cinzas da União Soviética. Refiro-me neste caso à recente guerra mediática entre o Kremlin e o seu antigo compadre, Aleksander Lukashenka, que anda a dar que falar e garante desenvolvimentos interessantes. Especialmente tendo em conta que as próximas eleições presidenciais na Bielorrússia estão marcadas para daqui a alguns meses.
A administração russa parece ter-se cansado da rebeldia do presidente da "última república soviética", depois de uma série de bofetadas que este resolveu dar nos propósitos do seu irmão mais velho. Todos temos bem presentes as inúmeras disputas político-económicas entre estes dois vizinhos, que acabavam quase sempre em boicotes de parte a parte, e parece que a mais recente guerra do gás, em conjunto com uma redescoberta amizade entre o ditador e a União Europeia, levaram a que o Kremlin tenha tirado as luvas e passado ao ataque abaixo da cintura.
No dia 16 de Julho, a cadeia de televisão NTV, propriedade da Gazprom, transmitiu um documentário intitulado "O Padrinho", retratando Lukashenka como um líder desonesto, ignorante e sem escrúpulos, empenhado em manter o poder a todo o custo. Entre muitos outros salamaleques do mesmo género, a reportagem revela também que o "milagre económico bielorrusso" provém fundamentalmente da subsidiação russa. As invectivas jornalísticas continuam durante largos minutos, contando com o apoio diante das câmaras de diversas figuras da oposição bielorrussa.
A verdade é que, para os observadores da realidade política e económica de ambos os países, não há aqui nada de extremamente novo. Mas para muitos dos dez milhões de bielorrussos, cuja informação é manipulada por meios de comunicação subservientes ao regime (o qual tem também vindo a contar com uma relativa benevolência dos media russos transmitidos via satélite), o que lhes entrou pelas casas adentro foi devastador. De momento, este é o principal tema de conversa nas cozinhas do país inteiro. Inquirido para comentários, Lukashenka afirma que não responde ao que apelida de “suja propaganda anti-bielorrussa”. (Estava aqui a pensar com os meus botões…de acordo com a interpretação de Lukashenka, será neste caso legítimo acusar os russos de “bielorrussofobia”?)
A retaliação não se fez esperar: jornalista bielorrussos deslocaram-se à Geórgia para entrevistarem Saakashvili. Na peça, transmitida pela televisão, este não se poupou a esforços para dissecar a natureza maléfica do regime russo. E lá veio o contra-ataque, com a transmissão da segunda parte do documentário, onde, pasme-se, os jornalistas russos fazem revelações bombásticas sobre atropelos aos os direitos humanos e os misteriosos desaparecimentos de políticos oposicionistas em finais da década de 90. Cada vez mais interessante, a troca de galhardetes continua, desta vez com a publicação na Bielorrússia de excertos do famoso relatório incriminatório de Boris Nemtsov sobre Putin (cujas cópias destinadas a distribuição em território russo foram confiscadas pelo FSB), imediatamente contraposta pela deslocação à Rússia, a convite das autoridades, de destacadas figuras da oposição bielorrussa.
Lukashenka enfrenta um problema sério, uma vez que preside a um país com uma fraca identidade nacional e pouca consciência cívica e política, o que o torna extremamente permeável à propaganda russa. Por outro lado, o apoio coxo do ocidente à oposição bielorrussa está a levá-la a procurar apoios mais a leste, o que paradoxalmente levou a uma total inversão dos patrocínios: temos hoje um cenário em que se vê Lukashenka a apelar à inteligentsia ocidentalizada com algumas cenouras apontadas a oeste, e os oposicionistas a orquestrarem campanhas suspeitamente bem financiadas, pondo-se ao lado da Gazprom durante a guerra do gás. As voltas que o mundo dá…
Qual é o verdadeiro objectivo do Kremlin com esta manobra de agitprop que lembra o negrume soviético? Shaun Walker, jornalista a escrever no Independent, dá um lamiré, quando relembra o "súbito interesse da televisão russa, no início deste ano, sobre os abusos dos direitos humanos no Quirguistão, que serviu como catalisador do descontentamento popular, levando a uma revolução que depôs o presidente Bakiyev". Há quem ande já a dizer que as deslocações de políticos oposicionistas bielorrussos a Moscovo fazem parte do processo de "casting" para seleccionar o sucessor de Lukashenka. Por outro lado, se os seus vassalos se aperceberem que o timoneiro já não cai nas graças de Moscovo, poderão virar rapidamente a casaca e tirar-lhe o tapete, uma vez que em política o cavalheirismo pouco conta. Outros afirmam que estas manobras são apenas uma tentativa de vergar o presidente sem fomentar a mudança de regime, voltando a ter a Bielorrússia como um estado satélite subserviente conduzido por um Lukashenka menos problemático.
Seja qual for o verdadeiro plano do Kremlin, encurralado entre Moscovo e Moscovo, o querido Batka (rebaptizado Krestni Batka – padrinho - pela televisão estatal russa) tem à sua frente uns quantos meses que prometem ser cativantes para nós, que adoramos estas intrigas, e mais importante que tudo, meses que talvez sejam decisivos para o futuro a longo prazo dos bielorrussos. Mas a capacidade de sobrevivência de um ditador que se conseguiu cravar no poder durante 16 anos sem contestação de maior, num país com a economia de pantanas e um dos mais baixos níveis de vida da Europa, não é certamente de subestimar.
11 comentários:
António
Já tinha também lido sobre esta última guerra mediática entre Lukachenko e o Kremlin, que é de facto apaixonante.
O teu texto está perfeito, brilhante como sempre.
Este ditador, qual Salazar do século XXI, ziguezagueia pelo mundo à procura de apoios ora de gente tão louca como ele (tipo Hugo Chávez, a quem resolveu comprar petróleo, porque é muito mais fácil transportá-lo da Venezuela para a Bielorrússia do que da Rússia), ora de gente aceitável mas que odeia Moscovo.
Provavelmente, tal como escreveste, Moscovo irá tentar substituí-lo, conservando o regime, devendo isso acontecer nas próximas eleições. Afinal, basta apenas repetir a "operação" ucraniana.
Cara Cristina, a Bielorrússia é diferente da Ucrânia e, por isso, Moscovo terá muito mais dificuldade em conseguir os seus intentos. Só com um golpe de Estado poderá conseguir derrubar Lukachenko, o que poderá desestabilizar a situação na região.
Caros amigos,
A haverem mudanças, estas jogarão sempre a favor do Kremlin, a avaliar pela "flexibilidade" dos oposicionistas em relação às suas alianças, bem como ao facto de o sentimento nacional no país ser, no máximo, residual. A maioria da população, à excepção de algumas minorias de origem báltica e polaca, não se oporia de todo à conversão do país numa província do império russo, tanto pela quase perfeita identidade cultural como pela percepção de vantagens trazidas pela união a um país rico em recursos naturais (mesmo que tal seja na realidade uma aspiração vã, já que nem os próprios russos ganham com as suas riquezas).
Por outro lado, o Ocidente está-se nas tintas para a Bielorrússia, já que está demasiadamente assoberbado em quezílias internas sobre como lidar com a crise e com as guerras para que foi arrastado. Além do mais, não me parece que os "aliados" internacionais de Lukashenka virem as costas aos seus interesses económicos com a Rússia para correrem em seu auxílio.
A verdade é que desde o início que Lukashenka tem a agradecer a sua estabilidade no poder à conivência, tolerância e auxílio russos, e este ataque diz-nos claramente que o Kremlin está muito empenhado em lhe dar um pontapé no traseiro. Na minha humilde opinião (nesse aspecto, estou alinhado com a opinião do José Milhazes), a facilidade com que o presidente será deposto depende essencialmente da facilidade com que os seus acólitos mais próximos virem a casaca, o que, a acontecer, configuraria na prática um golpe de estado. E parece-me que tal já esteve muito mais longe, mau grado os ardis do escorpião Lukashenka.
Quanto à desestabilização da região, a avaliar pela proverbial passividade política dos bielorrussos, cheira-me que a mudança de regime, a ocorrer, será fundamentalmente palaciana. Um bocadinho como a "revolução" bolchevique, na qual praticamente ninguém deu por nada, ao contrário do que mostram os filmes propagandísticos de Eisenstein.
Aconteça o que acontecer, vai ser muito giro.
António Campos
*LukashenkO
Lukachenko é igual uma prostituta: Ganha quem paga mais! Uma hora está do lado da União européia, outra hora está do lado russo.
Tudo isso devido o seu país, Belarus, ser totalmente insignificante no cenário geoestratégico mundial!Um país totalmente dependente de financiamentos internacionais, sem saída para o mar, encravado entre a Polonia e a Rùssia... Se não me engano, o nome Belarus significa em portugues "Rússia Branca".
Este ditatorzinho de araque, Lukachenko, está dando um tiro no próprio pé dando as costas para a Terra-Mãe... Corre o risco de ficar isolado do mundo e fazer do seu país uma Sérvia da vida, com seu território sendo desmantelado semana após semana!
Belarus seria um país perigosíssimo, se tivesse posse de ogivas nucleares, mas essas foram entregues para os russos em 1994.
A única solução para este país seria unificar o seu território ao russo, se tornando uma república, algo parecido com o que é hoje a Karélia, no extremo norte russo. Essa é a única solução!
Belarus é um filho rebelde de Moscow, um cachorrinho que quer se soltar da coleira, mas morrerá de fome, vivendo sozinho!!!
E com relação á este ditatorzinho de araque, o destino dele será o mesmo de Slobodan Milosevic: um infarto fulminante, dentro de uma cela de cadeia na península de Kamchatka!!!
"Por outro lado, o Ocidente está-se nas tintas para a Bielorrússia, já que está demasiadamente assoberbado em quezílias internas sobre como lidar com a crise e com as guerras para que foi arrastado. Além do mais, não me parece que os "aliados" internacionais de Lukashenka virem as costas aos seus interesses económicos com a Rússia para correrem em seu auxílio."
Caro Antonio,
O ocidente ou diga-se melhor a Otan(em relação aos países originais da organização), não foram arrastados para a guerra mas sim os responsáveis pelas guerras nas quais hoje se encontram atolados, que como já era do conhecimento na época, o motivo não era o combate ao terrorismo e sim o interêsse nos recursos naturais destes países, hoje mais que provado tanto no Iraque pelo petróleo e no Afeganistão o Lítio, além de várias outras riquezas minerais, as quais já eram de conhecimento dos americanos e aliados desde a invasão do Afeganistão pela União Soviética.
Luksahenko, assim como vários outros oportunistas que chegaram ou permaneceram no poder com o fim da União Soviética resolveu escolher a política de "subir no muro", e descer para o lado que lhes fosse mais favorável a cada rodada do jogo. Assim como outros, caiu no "conto" do ocidente e assim como outros, agora encontra-se na encruzilhada que ele mesmo escolheu.
O ocidente assim como o caro amigo citou, segue os seus interêsses como sempre o fez em toda a sua história, se alguém, principalmente políticos tarimbados e há muito no poder acreditaram em benevolência, só se foram acometidos da síndrome de Peter Pan.
Grande abraço,
Wandard
Caro Gilberto Mucio,
Na língua bielorrussa, o nome do presidente escreve-se "Аляксандр Лукашэнка" e o "a" final é efectivamente pronunciado como tal no país.
A transliteração para "Lukashenko" não é mais do que a habitual russificação do nome que, a meu ver, resulta numa conversão fonética incorrecta.
António Campos
António, vá lá, o Gilberto tem razão...
Se escreves Lukachenka, parece que estás a falar de uma mulher...
O nosso português tem destas nuances...
A sério, Cristina?
Então quer dizer que os Sousas, Silvas e Ferreiras deste país têm todos nomes que soam a mulher?
Lukashenka é como se diz na Bielorrússia (quel aliás, devia dizer-se "Belarus", que é o nome correcto). A outra fonética é uma perversão russificante com contornos imperialistas :)
António Campos
António
Se calhar tens razão. O homem é um animal de hábitos e quando nos habituamos a ver as palavras escritas de certa maneira...
Mas ainda bem que há pessoas não-conformistas...
Gostei da opinião do Caçador Solidário, é um belo exemplo de rectidão jornalística russa, ontem Belarus era “um exemplo de seguir para a Ucrânia”, hoje “Lukachenko é igual uma prostituta”, amanha, se calhar, outra vez será um belo exemplo à seguir, e assim sucessivamente.
p.s.
Todos os anti – imperialistas (salvo seja não são apenas os anti-americanos) devem escrever o nome do líder da Belarus como: Aliaksandr Ryhoravič Lukašenka, pois assim determina a transliteração fonética belarusa.
Enviar um comentário