"No dia 19 de Agosto de 1991 (que era uma Segunda – Feira) eu, o estudante e jornalista – aprendiz, por razão que já não consigo recordar foi visitar a secção de registo de domicílio na fábrica onde trabalhava o meu pai. Naquela época, todo o cidadão soviético deveria viver registado em algum domicílio, acto comprovado pelo carimbo que o mesmo cidadão recebia no seu passaporte interno (o BI soviético com muitas páginas onde as autoridades controladores registavam o seu estado civil, registo domiciliar e até o grupo de sangue, embora este último só ao pedido do portador do passaporte).
E lá, na secção do registo, ouvi na rádio a notícia, que já tinha ouvido naquela mesma manha, mas em cuja veracidade não quis acreditar. Mikhail Gorbachev (o presidente auto-proclamado da URSS, pois não foi votado em escrutínio popular), retirou-se para a Crimeia por questões da saúde (qualquer cidadão soviético percebia que homem foi detido) e todo o poder na URSS passava para as mãos de junta político – militar, que tinha um nome complexo de pronunciar: Comité Estatal de Situação de Emergência, ou GKChP.
O meu primeiro pensamento foi algo do género: “Meu Deus, a minha vida acabou, a Perestroica acabou, o meu país (acho que ainda sentia a URSS como meu) irá viver uma terrível ditadura comunista”. Agora, olhando para trás, entendo claramente que o poder soviético (acredito que foi com o total aval de Gorbachev), preparava a opinião pública para a necessidade de “aperto de parafusos”. Desde oReferendo Soviético de 1991 as medias estatais assustavam os “pequenos – burgueses” soviéticos com as informações sobre o “crescimento do nacionalismo” nos Estados Bálticos, Geórgia, Moldova e Ucrânia. As imagens preferidas eram de alimentos racionalizados (açúcar, sabão, cigarros), mas também de ovos, frangos, carne, “achados” nas lixeiras municipais. Dava-se entender que a URSS estava à beira de colapso e que apenas boa velha ordem conseguirá nós salvar “deles”, quem eram “eles” não se dizia, mas no entender da propaganda pró – soviética não era a gente boa.
Deixei tudo por trás e imediatamente foi para a Praça Central de Kyiv (o actual Maydan, ou a Praça de Independência), que ainda tinha o nome de, salvo erro, Revolução de Outubro e era vigiada pela enorme estátua de Lenin de granito, cercado pelo marinheiro, soldado – camponês e uma trabalhadora de bronze, de cima de uma colina subjacente.
A Praça era conhecida na época de 1987-1991 como Hyde_Park de Kyiv, servia de espaço de liberdade onde eram vendidos revistas e jornais independentes: liberais ou democratas moscovitas, imprensa democrata ou nacionalista ucraniana de Kyiv, Kharkiv ou Lviv.
Naquele dia na Praça eram distribuídas os panfletos vindos da Rússia, assinados pelas pessoas próximas do Bóris Yeltsin, que exortavam os cidadãos a não aceitar a autoridade da junta militar. No mesmo dia, mas a tarde, apareceram os primeiros panfletos ucranianos, da autoria da plataforma política nacionalistaAssembleia Inter-Partidária Ucraniana (UMA) e do Movimento Popular da Ucrânia (Rukh). O Governo regional ucraniano manifesta-se bastante tardiamente no sentido do que os decretos da junta não tem a força jurídica na Ucrânia, pedindo os cidadãos para “não agravar a situação social e política da República, evitar o confronto e conflitos”. Discursando na tarde do dia 19, o chefe do parlamento, comunista e futuro 1º Presidente da Ucrânia Independente, Leonid Kravchuk exorta a população ucraniana manter a “paz e tranquilidade”, para não dar motivos de instalar na República o estado de emergência.
Naquele mesmo dia 19 escrevi a reportagem sobre os acontecimentos na Praça, mas o pessoal do jornal onde habitualmente publicava as minhas primeiras notícias disse que sou um jovem bom e corajoso, mas nada disso poderia ser publicado por causa da censura restabelecida pela junta militar.
Assim dirigi-me para casa, chegando exactamente para assistir ao meio a famosa entrevista em directo com a liderança da junta, mais tarde apelidada de Bando dos Oito. O chefe nominal da junta, o vice – presidente soviético Gennady Yanayev tinha mãos tremidas, por vezes respondia as perguntas dos jornalistas balbuciando frases sem nenhum nexo. Todos os outros membros da junta pareciam muito nervosos, o que obviamente foi lhes fatal, os telespectadores percebiam que algo não bate certo.
Cerca de 100.000 moscovitas saíram às ruas para defender o edifício do Governo russo, a “Casa Branca” foi cercada pelas barricadas improvisadas, as pessoas usavam para isso todo o tipo de material de construção que conseguiam usar, incluindo também vários carros eléctricos e viaturas de limpeza municipal. Uma Centena Ucraniana bem organizada, empenhando as bandeiras da Ucrânia participou na defesa da Casa Branca, assegurando a defesa da parte sudoeste do edifício. Entre as três pessoas que morreram no dia 21 de Agosto, quando a Divisão Motorizada da Infantaria Tamanskaya começou o ataque contra a Casa Branca, foi ucraniano Ilya Krichevskiy, sepultado mais tarde envolto na bandeira ucraniana. Ele e mais dois companheiros mortos durante o golpe de Estado receberam a título póstumo o título dos Heróis da União Soviética.
O que aconteceu depois é do domínio público: uma parte do exército passou para o lado do governo federativo russo, os líderes da junta foram presos, um deles suicidou-se conjuntamente com a esposa. No dia 24 de Agosto a Ucrânia proclamou a sua Independência, seguida pela Moldova (27 de Agosto), no dia 6 de Setembro a URSS reconheceu as independências da Letónia, Lituânia e Estónia. A desintegração da URSS era apenas a questão de dias.
Outra vez, olhando para trás, acho que o maior erro e a tragédia da jovem – democracia russa, foi a incapacidade dos seus líderes de revogar para sempre o chauvinismo imperial russo. A tentativa de usar o nacionalismo russo para amedrontar e controlar os Estados vizinhos foi mais forte do que a luta e o sofrimento conjunto, que os dois povos sentiram durante 74 anos da ditadura bolchevique, que terminou exactamente em Agosto de 1991.
No dia 24 de Agosto de 1991 estive com milhares de outros ucranianos no “cerco” pacífico do edifício do Parlamento ucraniano, tendo a vontade firme permanecer lá até que a Independência seja proclamada. Mas é uma outra história.
Moscovo, golpe comunista na noite de 19 para 20 de Agosto de 1991:
Fotos de Agosto de 1991:
11 comentários:
Resistência húngara em 1956:
http://www.youtube.com/watch?v=
81lWTl9p0lA
As crónicas de Praga 1968:
http://www.youtube.com/watch?v=
ciYceY3Wsuk
Os checos optam (maioritariamente) pela resistência não armada, eles gritam “Liberdade” e “Dubcek”, tentam falar com os soldados soviéticos, “para que vocês fazem isso”, tudo em vão…
A obrigatoriedade de um domicilio continua hoje em dia a ser praticada na Rússia e em Portugal também, assim como na maioria dos países civilizados, se não é na Ucrânia é porque estão mais avançados.
Quanto ao golpe de 19 de Agosto, quem o praticou foram todos homens da confiança de Gorbachov, e com a quase anuência dele, para afastar Ieltsin, só que no momento decisivo ele demarcou-se.
Quanto à sua querida e amada Ucrânia gostava que me explica-se o seguinte (se conseguir).
Porque razão o seu país quando da independência era a 10 -ª economia mundial, dez anos depois situava-se já na "cómoda" posição de 32-ª e hoje é considerada o país mais pobre da Europa depois da Moldávia.
Isso deve ter uma explicação? Ou também é culpa dos comunistas?
2 Francisco Lucrécio
1. Instituto de “propiska” (registo de domicílio), que a URSS herdou da Rússia czarista não existe em nenhum país civilizado, no BI português se escreve (por exemplo): Local de Nascimento – Lisboa / Lapa e nunca: Local de Residência: Lisboa, Av. XYZ, Casa № 12, apartamento № 52. Como se diz em russo, sinta a diferença.
2. Sobre a posição da Ucrânia na economia mundial já lhe tinha explicado pelo menos 3 vezes, mas como FL não se cansa de perguntar, eu não tenho problemas de explicar novamente.
a) Na época da URSS a Ucrânia produzia imensa maquinaria pesada civil e militar; possuía indústria aérea e de automóveis com os índices baixíssimos de competitividade ao nível mundial (extrema durabilidade – baixo conforto). Uma parte significativa desta produção a URSS vendia a crédito (que depois nunca recebeu) / oferecia aos países – amigos: de Vietname à Moçambique, de Cuba à Angola. Hoje produzimos muitíssimo menos, como tal isso se reflecte no índice da produtividade industrial.
continua...
continuação...
b) Tal como Portugal ressentiu-se após 1975, perdendo os mercados preferenciais em África, Ucrânia ressentiu-se após 1991, quando os laços económicos no espaço pós – soviético ficaram abalados. Na URSS era normal que um determinado produto final era montado com as peças produzidas em 2-3 ou mais repúblicas: economicamente inviável (elevados custos de transporte, armazenamento, perdas, etc.), mas politicamente desejável, pois garantia integração soviética e fazia a eventual separação da União sofrível.
c) O que importa é a qualidade de vida e não os números, pois se consultaremos este índice: (http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal_per_capita) veremos que o PIB nominal per capita da Ucrânia é superior ao da China e da Moldova (lista da FMI de 2008); superior ao da China (Banco Mundial de 2008); e outra vez ao da China e da Moldova (CIA World Factbook 2008).
d) Para saber se a Ucrânia vive melhor ou pior em relação ao 1991, nada melhor que visitar a Ucrânia para ver como vivem as pessoas, o que vestem, o que comem, que carros conduzem, onde passam as férias, o que compram, etc
Lucrécio, por q n se muda pra Coreia do Norte então?
Mas não volta, tá?
MORTE AO COMUNISMO. PARA SEMPRE.
Ítalo
Parabéns, Jest. Um dia a coragem de pessoas como vc será reconhecida de verdade.
Comunismo nunca mais.
2 Anónimo 23:44
Obrigado, mas a minha coragem na altura era uma coragem, digamos, mínima, não sei se seria capaz me meter em frente dos blindados, como fez Ilya Krichevskiy e os seus companheiros. Mas entre não fazer nada e fazer alguma coisa, sempre achei que faz todo o sentido fazer alguma coisa que seja…
Para descontrair, filme israelita Kirot, com a ucraniana Olga Kurylenko no papel principal:
http://www.youtube.com/watch?v=ivakzl88MVk
Descobri agora que a Itália é um país comunista... é que no BI deles vem a morada COMPLETA!
Jest, triste de ti... se näo fosse o Milhazes ninguém saberia da tua existência... e viveríamos MUITO mais felizes!
Enquanto houver nacionalistas haveräo problemas! E este, que näo vê que o seu país se afunda a cada ano que passa, continua a culpar os "comunistas" em vez de culpar os dirigentes actuais, da esquerda à direita ucraniana, ou melhor, da direita à extrema-direita!
Caro Zuruspa, (ou Francisco Lucrécio)
A questão não é a morada completa ou incompleta estar indicada no BI. A questão é que na Rússia, para se obter ou alterar um registo de residência quando se muda de casa tem que se pedir AUTORIZAÇÂO. (existem normas muito rigorosas de quem se pode ou não registar, com quem, onde e quando).
Para além disso, se quiser mudar-se de outra cidade para Moscovo (em casa alugada) vai encontrar grandes dificuldades de obter registo de residência e, quase de certeza que só consegue obter registo temporário (por 6 meses ou 1 ano). Com esse registo temporário não pode, por exemplo, arranjar emprego em organismos oficiais, contrair um empréstimo ou obter assistência médica permanente.No fundo, a capital tem cidadãos de primeira,que possuem registo definitivo, cidadãos de segunda, que têm registo temporário, e cidadãos de terceira, que não têm qualquer registo. Estes últimos podem ser chamados à responsabilidade pela Polícia e arriscam-se a pagar multas.
Como vê, o problema é muito mais complexo do que pensa.
Para além disso, o sistema de registo (nas casas do Estado, que são muitos milhões)condiciona os direitos de usufruto e tem implicações no direito sucessório, quando se trata de os filhos herdarem os bens dos pais. Segundo a lei actual, a privatização destas casas está condicionada às pessoas nela registadas, o que faz com o registo seja muitas vezes utilizado em guerras familiares (por exemplo, pessoas que se divorciam e continuam "registadas" à força na mesma casa para não perderem o direito ao seu usufruto; ou jovens casais que ficam na viver com pais e estes se recusam a registar os genros ou as noras por temerem que estes possam vir reclamar o direito à casa. Neste caso, o jovem fica a viver "ilegal", não podendo indicar a sua morada verdadeira)
Enfim, um monte de problemas desnecessários e que só complica a vida das pessoas.
2 Zuruspa 19:55
Eu, francamente falando, também nunca iria desconfiar da existência da V. Excia, se não fossem as suas lamentações nas páginas deste blogue e a boa disposição de o aturar por parte do José Milhazes.
Também não sabia, nem desconfiava que o actual governo ucraniano que tem como a base de apoio o Partido de Regiões & Partido Comunista é formado pela gente de “direita à extrema-direita”, mas se calhar, eles conseguem disfarçar muito bem as suas preferências clubistas, digo ideológicas.
Se Itália, REALMENTE, usa o BI assim, deve ter as suas próprias razões... que se calhar se prendem à luta contra o terrorismo de esquerda: Brigadas Vermelhas, contra o crime organizado, etc).
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